quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Calvino e a Lei Natural

   Resta a consideração daquele terceiro elemento quando a conhecer-se a regra de dirigir a vida probamente, a que chamamos, com razão, de conhecimento das obras da justiça, onde a mente humana parece ser algum tanto mais aguda do que nas coisas superiores, pois que testifica o Apóstolo [Rm 2.14-15] que os Gentios, que não tem Lei, quando praticam as obra da Lei, são por Lei para si e mostram a obra da Lei escrita em seu coração, dando-lhes testemunho a própria consciência e entre si acusando-os ou excusando-os os pensamentos diante do julgamento de Deus. Se os Gentios têm a justiça da Lei de natureza gravada na mente, por certo que não os diremos inteiramente cegos na maneira de conduzir a vida. E nada mais é generalizado que ser o homem suficientemente assistido para com a reta norma da vida pela lei natural, de que o Apóstolo aqui fala,
   Consideremos, porém, para que propósito este conhecimento da Lei há sido infundido aos homens. Então, evidenciar-se-á de pronto até onde conduzi-los-á à meta da razão e da verdade. Isto, se alguém lhes observa a sequência, faz-se claro também das palavras de Paulo. Havia ele dito pouco antes que aqueles que sob a Lei pecaram, segundo a Lei são julgados, os que sem lei pecaram, sem a Lei perecem, Porquanto isto poderia ser absurdo, que os Gentios pereçam sem qualquer julgamento prévio, acrescenta imediatamente que sua consciência está no lugar da Lei e, por isso, lhes é suficientemente justa para a condenação.
   Portanto, a finalidade da lei natural é tornar o homem inexcusável. Nem será ela mal definida desta maneira: que seja a apreensão da consciência a suficientemente discernir entre o justo e o injusto, de sorte a alijar aos homens o pretexto de ignorância, enquanto são incriminados pelo seu próprio testemunho. Esta é a auto-indulgência do homem: que, em perpetrando o mal, até onde é permissível, sempre de bom grado aparte a mente do senso de pecado. Razão pela qual, Platão, no PROTÁGORAS, parece haver parece haver sido impelido a pensar que se não peca senão por ignorância. Isto, sem dúvida, teria sido por ele dito com propriedade, se a hipocrisia humana tanto avultasse em encobrir os vícios que a mente não se fizesse cônscia de sua culpabilidade diante de Deus. Como, porém, esquivando-se o pecados ao julgamento do bem e do mal em si impresso, é para com ele constantemente recambiado, nem se lhe permite sequer assim cerrar as pálpebras que não seja obrigado, queira ou não, a abrir por vezes os olhos, diz-se falsamente que ele peca pela só ignorância.
CALVINO - Institutas. Tomo II. II.22

All Hallowes; Ou: A Vitória de Todos os Santos

   Datas celebrativas são em geral problemáticas no meio protestante de uma vertente mais linha dura. Tecnicamente tal vertente evangelical mais purista é geralmente aliada a um pensamento mais anabatista ou puritano. Refratários ao desenvolvimento teológico, tais alas em seu desenvolvimento mais radical tendem a manifestar tendências semelhantes àquelas que vemos em grupos como os Amish, que ao fraudar o princípio do Sola Scriptura, confundem esse princípio reformador que serviria como ferramenta de juízo a tudo aquilo que se diz Cristão para defender uma aberrante "Scriptura Solus", negando o desenvolvimento lógico da revelação. Grupos como os Amish, por exemplo, afirmam ser pecado a utilização de luz elétrica, ou equipamentos eletrônicos, já que não há evidência nas Escrituras de que o povo de Deus se servia de tais coisas - ainda que hoje hajam grupos de Amish mais abertos a isso. E, seguindo essa lógica confusa, eles entendem que aquilo que a Escritura não permite explicitamente o uso, logo é proibido. Isso é um estreitamento grotesco da vida e de todo o potencial humano que nos foram instilados por Deus. Mas sigamos!
   O princípio do Sola Scriptura é um princípio epistemológico, e não serve para a negação da tradição, do desenvolvimento teológico ou litúrgico. Se, por tanto, não serve para a negação em um primeiro plano, isso significa que o princípio da Sola Scriptura serve para a afirmação de todo o desenvolvimento teológico compatível com o espírito da Escritura, e isso significa que o desenvolvimento que é aliado da Escritura é positivamente aprovado por ela, e é bom compreendermos isso para sermos introduzidos ao assunto a que nos propomos por hora.
   Particularmente não pensei que a frase que escrevi sobre a ideia de o Halloween ser bíblico causaria uma celeuma e ataques puristas tão absurdos. Mas vamos aos elementos históricos que atestam os elementos cristãos dessa data afim de que nos desembaracemos de notórios erros quanto a essa data.
   A palavra Halloween, como é de conhecimento de muitos, é uma contração das palavras "All Hallows'Eve", e quer dizer "Véspera de Todos os Santos", que é uma dada em que se rememora todos os cristãos que já partiram deste mundo. Há controvérsias quanto à origem dessa data, se ela é uma capitulação de uma festa pagã no seio de uma cultura religiosa cristã - e existe evidências fortes de não ser esse o caso, já que os mártires eram celebrados desde o século IV d. C. É interessante que a expressão "All Hallows'Eve" é semelhante à expressão "Hallowed be Try name" que é a expressão em inglês do Pai nosso que afirma "santificado seja o vosso nome". O Halloween, portanto, é a data que antecede o dia 1º de Novembro, data em que se comemora o "All Hallows" (Allhallowtide), e se assemelha à festividade de Véspera de Natal, sendo a véspera do Dia de Todos os Santos, a data em que historicamente cristãos antigos lembravam aqueles mortos - mas que estão vivos em Cristo - salvos pela graça de Cristo. Trata-se de uma comemoração da salvação.
   Historicamente o dia 31 de Outubro também se liga ao início da Reforma Religiosa do Ocidente, dia em que Martinho Lutero pregou na Catedral de Wittenberg as 95 Teses redigidas para polemizar contra o abuso das indulgências. A catedral de Wittenberg (Schlosskirche) também é chamada de "Catedral de Todos os Santos", e é muito provável que Lutero tenha escolhido esse dia de caso pensado, já que se esperava que a essa catedral em especial afluísse a população para a celebração da véspera do "Dia de Todos os Santos", angariando mais atenção às suas teses. Essa é a razão pela qual o Halloween é celebrado no mesmíssimo dia em que se comemora a Reforma Protestante.
   Mas antes de prosseguirmos, atentemos para a razão da celebração dessa festa. Como escreveu J. B. Jordan, texto postado no site "Lecionário", a festa nos lembra justamente o fato de que uma hora escatológica desponta em que Cristo efetivará a consumação da destruição do mal já operada suficientemente na Cruz. Mas a forma dessa consumação muito nos interessa para os nossos propósitos: A "Hora Final" é o drama escatológico em que se dará uma vitória que Cristo realiza, também, como diria Agostinho, na alma dos seus santos. Mais especificamente, na interpretação do Salmo 2.3, Agostinho afirma: "'Rir-se-á deles o que habita nos céus. Deles zombará o Senhor'. É repetição. Ao invés de dizer 'o que habita nos céus', da segunda vez encontra-se 'o Senhor". Em lugar de 'rir-se-á' temos 'zombará'. Não se tomem carnalmente essas expressões, como se Deus se risse, ou zombasse, torcendo a boca ou o nariz. Mas, hão de ser entendidas no sentido da força concedida por Deus a seus santos. Estes, olhando o futuro, isto é, o nome de Cristo e o seu domínio estendido aos vindouros e alcançando todas as gentes, compreendam que aqueles tramaram em vão. Tal capacidade de previsão constitui a irrisão e zombaria da parte de Deus. 'Rir-se-á deles o que habita nos céus". Se os céus são as almas santas, por meio delas, Deus, que conhece o futuro, rir-se-á e zombará deles" (AGOSTINHO - Comentário aos Slamos. Slamo 2.3).
   Contudo, como diria o J. B. Jordan: "O conceito, conforme dramatizado no costume cristão, é bastante simples: em 31 de Outubro, o reino demoníaco tenta uma última vez alcançar a vitória, mas é banido pela alegria do Reino.
   Qual é o meio pelo qual o reino demoníaco é vencido? Em uma palavra: zombaria. O grande pecado de Satanás (e nosso grande pecado) é o orgulho. Assim, para afastar Satanás de nós, nós o ridicularizamos. É por isso que surgiu o costume de retratar Satanás em um ridículo traje vermelho com chifres e cauda. Ninguém pensa que o diabo realmente se parece com isso; a Bíblia ensina que ele é o Anjo caído. Portanto, a ideia é ridicularizá-lo porque ele perdeu a batalha contra Jesus e não tem mais poder sobre nós".
   Aqui tocamos em um ponto sensível por causa da estética absoluta, na verdade anti-histórica, que constitui o puritanismo cujo ethos perfaz grande parte do evangelicalismo do Brasil. Mas é necessário frisar que todas as dramatizações teatrais em que se encenam em muitas Igrejas é utilizado fantasias em que Satanás é representado por cristãos. O espírito do Halloween, que é uma festa popular, é buscar uma dramatização lúdica ligada à zombaria, já que os cristãos não temem o poder diabólico, nem aquele poder que se mostrará no momento que antecede o fim, no dia de irrupção da última maldade.
   Obviamente muito daquilo que entendemos por Halloween não vem da nossa cultura, e é algo estranho a ela. Obviamente, pouco se sabe da razão pela qual crianças pedem doces de casa em casa nesse dia, dizendo: "trick or treat" (travessuras ou gostosuras) - e se diz que essa festa ganhou as configurações atuais no século XIX. É lógico, no entanto, que não seria demonstração de bom senso fazer uma defesa ou uma condenação com base na nossa sensação imediata da questão. Julgamentos puramente estéticos tendem a ser julgamentos pobres. Muitos evangélicos ignoram ou acham estranha tal celebração - o que é perfeitamente compreensível. Contudo condenações como a de que se trata de uma festa que celebra "satanismo" é algo absurdo.
Enfim, a palavra "Halloween", como foi demonstrado, tem origem eminentemente cristã, e nas configurações atuais trata-se de uma festa que precede a festa de Todos os Santos, ou seja, a festa daqueles que venceram em Cristo, ou melhor, daqueles através dos quais Cristo vence, zombando, todos os poderes das trevas que dominam esse mundo. Não temamos os poderes das trevas! Mas nos alegremos acima de todos eles.

Eric Voegelin e o Docetismo; Parte II: De Kierkegaard a Schelling

   Continuando a reflexão a que me propus sobre Eric Voegelin, me estenderei aqui sobre a influência de Kierkegaard e depois passarei para a influência de Schelling, autor que é extremamente fundamental para a noção de Voegelin sobre a estrutura do desenvolvimento da história geral e da história política em específico.

   Mas para assinalar essa transição de Kierkegaard a Schelling será importante compreendermos que Voegelin adere de forma fundamental à tese de Kierkegaard de que "a verdade é subjetividade" - e é necessário que tenhamos cuidado ao interpretar a palavra 'subjetividade' evitando identificar essa palavra com arbitrariedade ou irracionalismo. Isso esclarece a crítica voegeliniana avassaladora à tentativas de hipostasiar experiências de iluminação em dogmas e doutrinas objetivas, desidratando e descaracterizando a realidade própria da experiência primária. Para Voegelin tais realidades passíveis de objetificação se mantém no nível dos fenômenos físicos, universo em que é legítima a dissecação científica e positivista, onde encontramos objetos da operação da consciência comumente nomeada de intencionalidade. A esse tipo de realidade objetificável Voegelin denominou de 'realidade-coisa'. Contudo a consciência e as experiências de participação não são passíveis de objetificação, mas são experimentadas como realidades tencionais entre os polos humano e divino, e é justamente no entremeio tensional (aquilo que Voegelin chamou de metaxis) onde surgem os símbolos das experiências de transcendência, sendo a linguagem preferencial para a descrição desse tipo de experiência não a linguagem metafísica ou positivista (que em certo sentido, para Voegelin, são deformações desse tipo de experiência primária), mas a linguagem mitopoética - linguagem característica da Bíblia e dos mitos platônicos. É no campo tensional divino-humano onde a consciência se abre para a sua própria luminosidade, vislumbrando sua participação na comunidade do ser. Esse é o universo que Voegelin denominou de 'realidade-Isso', âmbito não passível de objetificação, realidade que só é perceptível no polo subjetivo da consciência e que se situa para além do fenomenismo de tipo materialista e positivista, universo de entes objetificáveis. É justamente aqui que percebemos a influência de Kant, mas também de Schelling e, em um certo grau, a crítica ao neotomismo - e o seu apego à objetividade - empreendida por Voegelin.

   Compreendidas essas influências de Kierkegaard, passemos às ideias de Schelling que estruturaram o pensamento de Voegelin. Mas de antemão destaco a dificuldade de discorrer sobre esse tipo de filosofia que é desconhecida, mas que encontra grande eco no pensamento voegeliniano, principalmente na obra Ordem e História. De Schelling podemos derivar as categorias modernas do desenvolvimento histórico, do inconsciente nas chamadas "psicologias do profundo", da filosofia da arte e dos estudos de religião comparada. Da mesma forma a oposição mais elaborada ao pensamento hegeliano se encontra justamente em Schelling e nele o início do pensamento existencial que marcou de forma vasta e profunda todo o século XX - lembremos de Santayana, H. Bergson, Coleridge, W. Schluz, C. Jung e a escola da psicologia analítica, Tillich, Mircea Eliade, Vicente Ferreira da Silva, M. Buber, Heidegger etc.

   De Schelling, como dissemos, Voegelin herda a oposição hegeliana. De fato, o terceiro Schelling, autor da 'filosofia positiva', asseverava uma ruptura na unidade entre essência e existência tão acentuada por Hegel. Não negava, porém, a unidade da Substância Absoluta que anima todo o cosmos. Nem negava o essencialismo a partir do qual podemos conhecer a estrutura da própria realidade. Isso tinha em comum com Hegel. Descobriu, porém, ao lado da filosofia negativa (idealista), a filosofia positiva (a filosofia da existência), ou a filosofia do desdobramento das coisas na própria realidade. Se opunha ao idealismo objetivo de Hegel que afirmava ter exaurido ou manifestado a Ideia Absoluta em sua própria filosofia (ou em sua mente). À toada objetivante de Hegel, cujo símbolo mais representativo é a expressão de que "tudo o que é real é racional", se opunha Schelling por identificar na realidade campos metalógicos não objetificáveis mas apenas participáveis. No contexto da antropologia afirmou a inexauribilidade e inefabilidade do inconsciente em oposição à filosofia da consciência de Hegel - e é daqui que surge a noção romântica de inconsciente que muitos pensam ter surgido em Freud. No contexto da natureza contestou uma identidade entre método e realidade, de maneira que estabeleceu a avassaladora crítica ao cientificismo iluminista e ao conceito de res extensa cartesiano; em Hegel abominou a ideia de que a natureza segue um desdobramento lógico-dialético da Ideia Absoluta, o que acaba idealizando, por assim dizer, a natureza. No contexto da Teologia afirmou a distinção infinita entre a situação humana e a bem-aventurança do ser divino, interpondo uma ruptura trágica entre Deus e o homem - em virtude da alienação do pecado - e entre a fé e a razão, somente passíveis de serem sanadas pela intervenção do próprio Deus pela graça.

   Também importante é, para Schelling, a filosofia da liberdade, liberdade que para ele esta fundamentada em Deus e que está sujeita à auto-contradição. Afirmada aí é a ideia de pecado. No fundamento obscuro da vida (ungrund), sustentado ao lado do fundamento luminoso (como está escrito no Idades do Mundo - Weltalter) jaz a possibilidade de revolta e auto-contradição. Aplicada a revolta a história do retorno a Deus por parte da humanidade começa. Essa é a história da religião expressa nas mitologias. Voegelin via com especial apreço essa intuição existencialista sobre a liberdade de Schelling e no "Ordem e História" afirma que é justamente sob o fundo do 'nada' (o ungrund schellinguiano) que as distorções espirituais/ideológicas - ou pneumopatológicas -, geradas pela ansiedade da existência para reter o fluxo da realidade, começam. A filosofia de Hegel é a expressão moderna dessa pneumopatologia gerada por esse tipo de ansiedade sob o fundamento obscuro, já que ela busca reter o fluxo da história com a sua síntese absoluta - e é bom percebermos que Hegel experimentou a devastação civilizacional napoleônica. Mas uma distorção clássica e equivalente à de Hegel é aquela que Voegelin chamou de "Historiogênese", onde os simbolistas imperiais traçaram uma linha genética dos imperadores ou reis até o início do cosmos, como se os reis ou imperadores, sendo os "filhos dos deuses", e unidos ao propósito do cosmos, pudessem estabeleceu uma base firme para domar o fundamento caótico e indomável (ungrund) da história política, tal como Hegel que buscou parar a história no contexto da devastação napoleônica. A segunda distorção é o gnosticismo que afirma malignidade congênita do mundo concluída a partir das experiências de devastação civilizacional e do avanço dos impérios ecumênicos. Tais devastações geram por sua vez a devastação psíquica perceptível na degradação dos sistemas gnósticos. Mas tais distorções também provém de uma perturbação da liberdade em relação não somente ao 'fundamento obscuro', mas também em relação ao 'fundamento luminoso', pois em Hegel o essencialismo metafísico é tão acentuado que engole as condições da existência (o fundamento obscuro e selvagem). Os fundamentos se contradizem aqui. Disso também provém as distorções metastáticas e apocalípticas daqueles que realmente tiveram uma teofania divina (fundamento luminoso), mas que ficaram obcecados por essa iluminação, e por força dessa iluminação passaram a conceber, na linguagem de Anaximandro, uma 'gênesis' (nascimento) sem 'phtora' (perecimento). As experiências teofânicas podem ser desequilibradoras, e com a iluminação trazida pela teofania de que a estrutura da realidade se move para além de si mesma em uma direção escatológica e aponta para uma realidade livre das perturbações da existência, começam a pulular movimentos metastáticos que apostam na transfiguração da realidade temporal em um paraíso sem sofrimento. Entram em crítica aqui os quiliastas (milenaristas) antigos e modernos, sendo os milenaristas antigos os montanistas, Joaquim de Fiori e seus discípulos e os franciscanos radicais; do período moderno temos os socialistas, comunistas, positivistas comteanos, nazistas, nacionalistas chauvinistas e ultra-liberais - todos aqueles que prometem um paraíso de gênesis sem phtora. É importante notar, no entanto, que para Schelling tanto o fundamento luminoso como o fundamento obscuro se encontram em perfeita coesão no campo do Absoluto (Deus), mas se encontram em ampla contradição - como é evidente nas perturbações destacadas - no campo da história (a descrição da estruturação coesa desses fundamentos está absolutamente clara nas últimas três páginas do 'A Era Ecumênica', e reflete a filosofia das três potências elaborada no 'As Idades do Mundo' de Schelling). E é justamente aqui que se encontra o pensamento existencialista de Schelling, que é o pensamento que reconhece o fato da ruptura entre essência e existência no campo da história, e que marca o pensamento de Voegelin.

Eric Voegelin e o Docetismo; Parte I: A Influência de Kierkegaard na Filosofia de Eric Voegelin

   Eric Voegelin é um filósofo muito mais famoso pelo uso panfletário de determinados aspectos do seu pensamento do que, de fato, por ser alguém estudado de forma integral. É interessante o uso que muitos apologistas católicos fazem de trechos de sua obra, especialmente do livro IV do História das Ideias Políticas - na parte em que ele trata da Reforma (A Grande Confusão) -, partes do livro V e do "Nova Ciência Política", em especial o uso polêmico - e não compreendido em todos os seus aspectos - do termo gnosticismo. Escamoteada é a crítica duríssima de Voegelin ao pensamento neotomista (nem citadas são por aqui as oposições entre Voegelin e Lonergam, conforme são retratadas por Eugene Webb no livro "Filósofos da Consciência"), as críticas que ele faz de Francisco de Assis (como o promotor no Ocidente dos movimentos de massa), de Thomas More (que ele afirmava ser um santo sem fé), e de que o papado foi quem promoveu a primeira estrutura totalitária do Ocidente (já que o papa assumiu a figura do Paráclito que fez desaparecer a totalidade da Igreja na sua pessoa, transformando-a em uma estrutura piramidal ao moldes das seitas gnósticas). É incrível que muitos católicos achem em Voegelin um ativo à sua causa - a não ser que façam cherry picking ao lidar com sua obra; coisa que qualquer protestante poderia fazer também, ao lidar de forma temerária com a obra dele.

   No mais, a obra do filósofo alemão é constituída fundamentalmente por influência de autores protestantes de vertente luterana, além da influência de K. Jaspers e dos filósofos gregos, sobretudo Platão. Tragamos à mente a influência de Kierkegaard e de Schelling à sua obra.

   De Kierkegaard Voegelin herda a distinção entre fé eminente e de fé no sentido comum, assim como elabora com base em Kierkegaard a sua noção de "Salto no Ser". A fé em seu sentido comum é fundada, por sua vez, em uma compreensão anti-iluminista - e mesmo anti-hegeliana - da operação da razão sobre os dados da história, dados para os quais não há nenhuma possibilidade de dissecação absoluta, mas apenas lacunar - o que é uma percepção anti-iluminista tipicamente alemã e romântica que foi teorizada já por Hamman, o "Mago do Norte".

   A fé no sentido eminente, por sua vez, trata-se daquela fé sobrenatural que surge do encontro do homem com Deus. Tal encontro não está sujeito à crítica histórica, pois o "evento da fé" é, em sentido próprio, "meta-histórico", embora paradoxalmente o cristão fundamente em uma ocorrência histórica a sua felicidade eterna. Um dos escritos mais elucidativos de Kierkegaard a esse respeito está no "Pós-Escrito às Migalhas Filosóficas", lá onde ele discorre a validade da bíblia para a fé e o "parênteses" do criticismo histórico - parênteses que se abre e que coloca a fé em suspeita até tudo ser resolvido pela ciência histórica. Kierkegaard diz que seria inútil para a fé alguém esperar pela investigação positivista da Bíblia para a validação de algum dado da fé, já que em relação à fé nem o homem e nem a fé podem esperar. A Bíblia é válida no contexto próprio da fé e não precisa do auxílio do positivismo histórico para validar a si mesma. É interessante que mais tarde essa perspectiva de Kierkegaard, junto com a perspectiva da escola de Erlangen, iria criar a teoria da distinção entre Geschichte (história pragmática) e Heilsgeschichte (história sagrada) em escolas como a de Rudolf Bultmann, cuja estrutura Voegelin usaria para fazer a distinção entre "História Paragmática" e "História Pradigmática" na obra Ordem e História - e que correspondem também à teorização voegeliniana sobre a 'realidade Coisa' e a 'realidade Isso', com as quais se relacionam, em ordem, as operações da consciência chamadas intencionalidade e luminosidade (mas discorreremos mais à frente sobre esses termos).

   O noção de Salto no Ser também possui influências kierkegaardianas, já que Kierkegaard é aquele que teoriza sobre a ideia do "Salto na Fé", que é uma postulação polêmica anti-hegeliana que se volta contra o conceito de mediação. Se percebermos o significado da ideia de "Salto no Ser" também perceberemos a forte oposição de Voegelin ao conceito hegeliano de História, pois para Hegel a história é uma elaboração da Ideia Absoluta que se apresenta como um circuito logicamente estruturado, se desdobrando dialeticamente. Para Voegelin o "Salto no Ser" é constituído por eventos teofânicos que deram ocasião para o surgimento da filosofia platônica-aristotélica, assim como da revelação israelita/mosaica e cristã, as quais romperam com uma compreensão compacta do cosmos, revelando aos alvos da teofania a transcendência supracósmica, não seguindo, como Hegel pensava, uma sequência lógica, já que eventos teofânicos ou se dão ou não se dão. Nisso Voegelin não seguia apenas Kierkegaard, mas também Schelling, de quem Kierkegaard herdou certa estrutura de pensamento em sua filosofia.

A Vida no Espírito Entre o Cume e os Pés do Monte Tabor

   Nos evangelhos sinóticos (Mt 17, Mc 9, Lc 9) são narrados o evento da transfiguração de Cristo, e em todos eles vemos uma estrutura única de significado.
   Quando os discípulos Pedro, Tiago e João subiram com Cristo ao monte Tabor e lá vislubraram sua glória divina, a primeira coisa que fizeram foi tentar conter a glória fundanto ali três tabernáculos, um para Jesus outro para Moisés e Elias, que foram vistos nessa manifestação de glória. O intuito dos três discípulos com a construção do tabernáculo era viver em glória triunfante sem as perturbações em que viviam - intuito ou preocupação que ainda reverberaria em At 1.6,7, quando eles perguntaram sobre o quando da restauração de Israel. Da nuvem de glória saiu a voz da advertência divina sobre a loucura desse empreendimento. Aterrados com advertência celeste logo foram socorridos por Cristo que disse: não temais!
   Com exceção do Ev. Lucas, os livros de Mateus e Marcos relatam que após a transfiguração se seguiu, em virtude da visão, o questionamento sobre a vinda de Elias, que era a ansiada vinda que antecederia o triunfo messiânico de Israel, como está registrado na última profecia de Malaquias, o que atesta o desejo pela restauração última de Israel. É óbvia a intenção da fundação de um "Império Messiânico" até em beneficio deles mesmos.
   Contudo, após essas coisas um evento relatado nos três evangelhos sinóticos assenta um significado importante para o entendimento desses eventos, e que é expresso pela luta contra um demônio que despedaçava a vida de um menino. Aos pés do monte, em cujo topo Cristo realizara a transfiguração, um pai rogou a Cristo que expulsasse esse demônio que os discípulos que não subiram ao monte não conseguiam expulsar. Após a visão da realidade da glória os discípulos foram apresentados à realidade do mundo e ali Cristo manifestou novamente o pode de Deus, expulsando o demônio.
   A tensão entre a glória divina e a realidade humana são cabalmente expressas nessa passagem e nos adverte com o ensino de que: 1) As experiência no Espírito não nos livram do mundo, mas nos possibilitam lutar nele; 2) Não há espiritualidade escapista que não seja detestada por Deus; 3) A manifestação plena do Reino de Deus é esperança cuja realidade efetiva não vem senão antes da luta e do sofrimento; 4) Não há fé que não esteja, ao mesmo tempo, arraigada de forma plena nos conflitos e contrariedades desta vida, pois é justamente assumindo as dores e conflitos dessa vida que podemos, de forma efetiva, se estivermos na fé, ver o Reino de Deus.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Considerações de Orígenes sobre o Culto aos Anjos e aos Corpos Celestes; Ou: Não Orar a Anjos ou a Seres Divinos, mas Apenas a Deus

   Orígenes (185-254 d.C), sem sombra de dúvidas, é um dos grandes teólogos do cristianismo e sua obra é um testemunho inequívoco da piedade cristã em seus primeiros séculos. E como buscarei demonstrar com as citações a baixo, a consciência da singularidade absoluta de Deus e do seu Logos implicava na forma de devoção, diferenciando as práticas cristãs das práticas pagãs do entorno, entre elas a prática da oração.
   Segue um texto significativo de Orígenes a esse respeito:
    "Em seguida, como se judeus e cristãos tivessem respondido que aqueles que descem até os homens são anjos, ele responde: Se falais de anjos, dizei-nos quem são eles: deuses ou seres de uma outra espécie? E, supondo nossa resposta, ele acrescenta: - De uma outra espécie, demônios1 [veja a nota], sem dúvida. Pois bem, vamos esclarecer este ponto. De comum acordo dizemos que os anjos são "espíritos servidores, enviados ao serviço dos que devem herdar a salvação" (Hb 1,14). Eles sobrem para levar as súplicas dos homens às regiões celestes mais puras do mundo, ou mesmo às supracelestes mais puras do que aquelas. Em seguida, eles descem de lá para levar a cada um conforme seu mérito uma das graças que Deus ordena dispensar àqueles que recebem seus favores. Portanto, aqueles que aprendemos a chamar de anjos por causa de sua função, nós os encontramos às vezes também nas escrituras sagradas com o nome de deuses, porque são divinos; mas eles não o são a ponto de sermos obrigados a venerar e adorar, em lugar de Deus, aqueles que nos dispensam e nos trazem as graças de Deus. Pois é preciso elevar todo pedido, prece, súplica e ação de graças ao Deus supremo através do sumo sacerdote que está acima de todos os anjos, o logos vivo de Deus. E oferecemos ao próprio logos pedidos, preces, ações de graças, e mesmo súplicas, se formos capazes de discernir entre o sentido absoluto e o sentido relativo da palavra 'súplica'.
    Pois invocar os anjos sem ter recebido a seu respeito uma ciência que ultrapassa o homem não é razoável [e Orígenes não diz aqui que há uma ciência a ser recebida para invocá-los, mas sim que é tolice fazer essa invocação, pois se recebêssemos a ciência celeste, não cometeríamos tal ato ilícito. É essa a razão da explicação que se segue]. Mas suponhamos, por hipótese, que tenhamos recebido esta ciência maravilhosa e misteriosa: esta ciência em si mesma leva ao conhecimento da natureza dos anjos e dos ofícios confiados a cada um deles e não permitirá que ousemos orar a qualquer pessoa a não ser ao próprio Deus supremo, que a tudo pode satisfazer perfeitamente, por meio de nosso salvador, o Filho de Deus, que é logos, sabedoria, verdade e tudo o que dele afirmam as escrituras dos profetas de Deus e dos apóstolos de Jesus"2 (Contra Celso. ed. Paulus. p. 385-386).
   Mas para dermos conta do pensamento de Orígenes nessa questão, é bom partirmos de uma ontologia que perpassa os escritos origenistas. Para isso, vou citar mais um texto e comento logo depois.
   Eis o texto:
"Sem dúvida, não desacreditamos estas imensas criaturas de Deus, nem dizemos com Anexágoras que o sol, a lua e as estrelas são apenas 'massas inflamadas', se professamos nossa doutrina sobre o sol, a lua e as estrelas. É apenas compreender a divindade de Deus que tudo ultrapassa com indizível superioridade, e a do Filho de Deus único que ultrapassa tudo mais. E quando estamos persuadidos de que o sol, a lua e as estrelas oram ao Deus supremo por meio do seu Filho único, julgamos que não devemos orar aos seres que oram: eles mesmos preferem nos remeter ao Deus a quem eles oram, e não nos abaixar até eles ou partilhar de nosso poder de oração entre Deus e eles mesmos." Orígenes - Contra Celso. p. 398
   Entendam, antes de tudo, que aqui não é importante concordar ou não com Orígenes quanto à afirmação de que corpos celestes sejam "almas racionais", ou se eles oram a Deus. Orígenes aqui concorda com a doutrina platônica de que os corpos celestes são seres inteligentes, embora não concorde que sejam deuses, como Platão professava, e com ele o pensamento grego. Importa, no contexto dessa reflexão, o fato de que segundo a compreensão origenista esses elementos possuem essa atividade orante, característica sim a anjos e homens. Entendido isso, vamos à ontologia de Orígenes.
   Como é possível perceber, Orígenes recorre aqui à sua ontologia que confere estrutura ao seu método alegórico, e isso é importante para a gente. Diz que alguns adoram esses corpos celestes por sua luz benéfica dispensada à humanidade, outros por causa da racionalidade que neles habita, enquanto deveríamos adorar a "verdadeira luz que a todos ilumina", isto é, a Deus. Aqui vemos a tripartição que confere a gradação ao método alegórico, que é a tripartição cujo nível mais baixo é o sensível, seguindo para o inteligível e findando no mais alto nível, que é o sobrenatural; a estes três níveis correspondem, em ordem, os três níveis de leitura da Escritura: o nível de leitura literal, o moral-racional e o pneumático-soteriológico. Eis a ontologia de Orígenes, ontologia que implica em uma epistemologia, uma base de cognição teológica.
   Importa perceber que, nesses dois textos, Orígenes contesta que podemos nos dirigir a seres racionais em oração em um contexto em que, ao mesmo tempo, condena também o culto aos corpos celestes. Católicos e Ortodoxos, em relação à intercessão dos santos, poderiam objetar que essa contestação só se dá em um contexto de adoração, já que na recorrência aos anjos e aos santos não há adoração em nenhum sentido. Mas notem que isso não arranha o que há de substancial na contestação, pois Orígenes condena o ato em si, já que, partindo de sua ontologia, devemos nos dirigir à fonte da Luz Verdadeira, e não àqueles seres racionais, ainda que participem desta Luz - pois oram ao Filho. O essencial é isso: os corpos celestes são seres que, possuindo alma racional, oram a Deus, tal como um anjo ora, e oram por meio de Cristo; contudo a estes mesmos é ilícito se voltar em oração, "partilhando de nosso poder de oração entre Deus e eles mesmos".
   Sendo assim não podemos nos dirigir aos seres puramente sensíveis e nem aos inteligentes em oração, mas apenas àquele que é a Luz Verdadeira, ao Ser que confere luz e realidade a todos os seres.
_____________________________________________
1) É bom ter em mente que aqui o termo demônio tem um significado diferente daquela que encontramos na angeologia cristã, pois o "demônio" a que se refere Celso é o "daimônion" grego, que tanto são espíritos bons, abençoados, como maus. Tanto o espírito inspirador de Sócrates - por meio do qual ele profetizava -, como o demiurgo platônico eram "daimônio".
2) Note que essa consideração é diametralmente oposta à prática de se dirigir a anjos, tal como é praticada tanto por Ortodoxos como por Católicos Romanos. Qualquer tentativa de reconciliação disso, ao meu ver, não passa de pura sofistaria.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Cristianismo e Espiritualidade Contemplativa

   Uma das coisas que me encantam na tradição espiritual cristã é, entre outras coisas, o seu caráter contemplativo, que, em tudo, determina uma forma de espiritualidade a partir da qual a realidade humana é transfigurada em seu existir no mundo. A junção do melhor da teologia contemplativa e da espiritualidade dá em coisas como as que podemos ver em pessoas como Atanásio. Segue um texto exemplar do que estou dizendo - apesar de uma certa cisão presente entre o sensível e o inteligível em sua visão de espiritualidade contemplativa:
   "Porque Deus o Criador e soberano rei do universo , que subsiste além de toda essência e pensamento humano, segundo a sua própria imagem e pelo seu próprio verbo, nosso Salvador Jesus Cristo [...]. Porque, nada havendo que o impeça de conhecer a divindade, sua pureza lhe permite contemplar sem cessar a imagem do Pai, o Verbo de Deus, à imagem do qual ele foi feito; e ele [,o homem,] está repleto de admiração considerando a sua providência com relação ao universo. Ele se eleva acima das coisas sensíveis e de toda representação corporal, e se une, pelo poder do seu espírito, às realidades divinas e inteligíveis que estão nos céus. Quando então o espírito humano não tem comércio com os corpos e não recebe de fora mistura alguma das paixões corporais, mas está totalmente no alto, vivendo com ele, ultrapassa todas as coisas sensíveis e todas realidades humanas para viver lá no alto nos céus, e vendo Verbo, ele vê também o Pai Verbo; esta contemplação o alegra e o renova no desejo que o leva até ele [Deus]."

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Diálogo Sobre Schelling, Hegel, Eric Voegelin e a "Terceira Era do Espírito" de Joaquim de Fiori

Eu: Eu tenho aqui em casa o livro "Filosofia da Revelação" onde Schelling fala dessa teoria das três igrejas. Em certo sentido, é um teoria paralela à teoria do Joaquim de Fiori - não idêntica, mas paralela. E essa ideia é, de fato, maravilhosa.
Amigo 1: Mas Schelling criou essa teoria tendo por base a de Fiori?
Eu: Não necessariamente ou diretamente. No movimento romântico alemão já havia uma ideia assim ventilada por Lessing no "cartas para a educação estética da humanidade" onde ele periodizava a história em 5 grandes momentos. Mas a teoria de Schelling ainda é mais complexa, pois envolve a teoria das três potências que forma, por assim dizer, a ossatura da filosofia dele. Ele sempre dizia que de uma legislação mais rígida se seguia a um período mais ameno (coloque aí as duas igrejas), e da tensão dialética desses dois momentos se seguiria uma espécie de momento absoluto. Desde a filosofia da arte, à filosofia da identidade e seguindo para a filosofia da natureza, tudo é caracterizado por esses três momentos. É um negócio de gênio. Contudo, nessa filosofia da história dele, Schelling busca uma síntese dialética entre a igreja de Pedro e a de Paulo, sendo que a Igreja de Paulo, a da liberdade, dizia ele que era uma Igreja necessária em razão do movimento do espírito, pois era o resultado de uma cobrança do espírito pelos direitos da liberdade do homem. É interessante notar como nesse período houve uma valorização do Evangelho de João, sendo que o próprio Dawson dizia que o "Evangelho Joanino" dava o tom da "Era do Espírito" como foi chamado esse terceiro período. Sendo que esse terceiro período, o período do Espírito, era o período da liberdade que também foi reclamado pela própria teologia liberal. Dawson dizia que essa "quinta era" de Lessing, ou a "Terceira Idade do Espírito" não era a negação do Evangelho, mas a sua plenitude, e coincide coma profecia de Jeremias que vaticinou a aliança da "nova lex" inscrita no coração do homem. Há aí um paralelo com Joaquim de Fiori pois o franciscano dizia que a história era dividia em três períodos: a era do Pai, correspondente ao Antigo Testamento; a era do filho, correspondente ao período sacerdotal da igreja institucionalizada; e a era do Espírito, correspondente ao período monástico, onde os monges dotados do espírito já não necessitariam do peso da autoridade, pois eles seriam autoridades para si mesmos, já que haviam internalizado em si mesmos a "nova lex" - e também poderíamos periodizar assim: a era dos "servos de Deus", dos "Filhos de Deus" e dos "Amigos de Deus" . Essa foi uma especulação famosa na Idade Média.
Você não ficou triste não, né? Pois se se fala de Fiori, tem gente que dá três pulos para trás.
Amigo 1: Muito bom. Vou pesquisar mais sobre.
E não fiquei triste não. Na verdade eu tenho dificuldades em fazer a associação que Eric Voegelin faz do Fiore com o gnosticismo.
Eu: Mas o Eric Voegelin aceita, na verdade, essa teoria do Joaquim de Fiori "schelinguianizado". Ele não aceitava, na verdade, a especulação de Hegel, pois ao contrário de Schelling Hegel colocava o momento absoluto, ou a "Terceira Idade do Espírito", como algo atual no período da sua própria filosofia.
...
Amigo 2: Caro Juliano Chaves Baptista, vi que o senhor tinha comentado em outro lugar que nesse caso do Schaff, que adere à teoria da Igreja tripartite de Schelling, não se está com o problema que Voegelin aponta em Fiori. Pode comentar mais sobre isso?
Eu: Fiz o comentário em relação a dois autores, que foi o Dawson e o Voegelin. A observação do Voegelin é que Schelling fez suas especulações em paralelo com Fiori. De certa forma, ele não é contrário em sentido estrito à especulação que não torna a efetividade da terceira era como algo atual, como Hegel e, seguindo o mesmo espírito, Marx (ainda que em Marx isso é menos acentuado que em Hegel ainda). Isso é sintomático da especulação voegeliniana porque o sentido das considerações que Voegelin faz de Bodin no História das Ideias Políticas corre também em paralelo com suas especulações sobre o profeta Jeremias no Ordem e História. Em ambos os casos, o que ocorre é o mesmo que sucede com o filósofo místico: em épocas de degradação o Espírito se contrai das esferas públicas, não encontrando aí a sua representação, e encontra acolhida na alma do profeta, do filósofo ou do santo, lá onde o profeta o filósofo ou o santo se encontram imediatamente sob Deus. Voegelin foi acusado de "pietista extremado" por causa dessa sua noção de "imediatidade sob Deus", e há de se considerar, por outro lado, o espírito dessa crítica a Voegelin porque ela nos informa muito mais do que aparenta. A questão é que é reconhecida a influência do pietismo alemão sobre luminares do movimento romântico, como no caso Hamman - a fonte de muitas especulações schelliguianas - e Schelling. Nesse caso o pietismo acusava a formalidade árida em que havia caído a piedade da época muito em função - assim se afirmava - do racionalismo luterano em razão do seu período escolástico (o período ortodoxo). Eles reclamavam que a formalidade da doutrina não provocava a vivificação por si mesmo (e isso marcou para sempre a piedade luterana e protestante também) e deu início aos grandes eventos de avivamento.
Amigo 2: Ah sim! Não era tanto sobre Schaff. Pois então, essa questão da influência pietista é bem interessante.
Eu: Então, ao que parece, nessa luta entre pietismo e ortodoxia se estabeleceu um dualismo entre "vida" e "forma", ou entre "forma e dinâmica", duas polaridades ontológicas que pessoas como Shcelling tentaram reconciliar, o que seria reconciliado na na intuição absoluta no universo da arte. Contudo, Schelling na última fase do seu desenvolvimento filosófico, o período da filosofia positiva, argumentou que a suposta síntese absoluta de Hegel entre a forma e os movimentos da vida era uma ficção mental, e é interessante notar que o próprio Hegel colocava as figuras da religião e da arte não no universo do pensamento puro ou absoluto, restando um hiato na religião entre a essência e aparência, na figura final da coisa tal como ela era, coisa que havia sido reconciliado em sua própria filosofia (ele realmente achava que havia suprassumido o cristianismo, ou o elevado a uma configuração superior), e não pelo aperfeiçoamento pela graça depois da morte, como se afirma no pensamento cristão. Hegel, por tanto - como eu costumo dizer -, andava por aí no mundo com o absoluto na cabeça - para ele a terceira era do espírito era atual na sua própria filosofia, repetindo em si, na verdade, a encarnação do Verbo. Schelling via a falsidade nessa colocação hegeliana - pois a história continuava depois dele - e contra isso desenvolveu toda a sua "filosofia positiva" que se encontra em obras como "Filosofia da Mitologia" e a "Filosofia da Revelação". A ideia do "positivo" tem que ser bem considerada, pois é diferente do "idealismo positivo" do último hegel, e defende, por tanto, o hiato entre essência e aparência, já que o "momento absoluto" ainda não veio na história - e é daí onde Kierkegaard encontrou toda a base teórica do seu existencialismo cristão. O período da filosofia positiva em Schelling, portanto, afirmava essa disjunção ou esse hiato entre razão e fé no homem atual, cuja unidade foi tão enfatizada em Hegel, dizendo que a fé comporta um elemento característico de desconhecimento. Voegelin usaria aí a ideia de Schelling de que a fé deu ao homem o conhecimento da transcendência absoluta em relação a si mesmo, e que por isso Deus excederia a razão meramente finita, por ser Deus infinito, varrendo do mapa os deuses intracósmicos. Com isso a imediatidade do homem sob Deus mediante a revelação pneumática israelita - ou o salto no ser - concedeu aos israelitas a liberdade de entenderem a absoluta transcendência de Deus em relação ao mundo e que voltar ao imanentismo tirânico e estreito dos deuses intracósmicos era o mesmo que retroceder - a queda no ser (cujo símbolo é satã) -, finitizando Deus (seja em proposições ou dogmas políticos, filosóficos, científicos e até mesmo eclesiásticos), e desumanizando o homem. No Filosofia da Revelação Schelling diz que o evento de Cristo deu um upgrade na história da consciência justamente porque a transcendência de Deus encontrou acolhida na consciência de Cristo. É a partir daí que vemos que Schelling realiza suas especulações paralelas a Fiori, não porque acredita na atualidade da "Terceira Era", mas porque a joga para um futuro, para a "Igreja de João" - seguida da Igreja Petrina (Católica) e Paulina (Protestante), lá onde há a unidade de essência e aparência por meio da unidade do homem com Deus - que é a realidade de um momento de qualidade escatológica. Cristopher Dawson dizia que a "Era do Espírito", a era da nova lex inscrita no coração do homem, tal como vaticinou o profeta Jeremias (lembre do que eu disse que Voegelin especulou sobre Jeremias ser o representante do Espírito) ou a terceira era que tanto despertou os espíritos na Alemanha do XIX, não era a negação do Evangelho, mas sim a sua plenitude.
Amigo 2: Juliano Chaves Baptista, excelente explicação!
E seguindo esta linha e unindo ao texto sobre Schaff, podemos dizer que o último escapa da crítica de Voegelin? (Já que se baseia em Schelling e diz que a era joanina ainda está por vir, se bem que no plano terreno, com a Unidade da Igreja - num sentido pós-milenista).
Eu: Olha, eu acho que sim - ainda que é suspeito se isso se dará no plano histórico ou não. Tenho que ver isso.
Amigo 2: Pois é, eu mesmo teria que ler mais dos dois para saber. Esses temas de "Teologia da História" são muito interessantes!
Eu: São mesmo.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Schelling, a Realidade e a Corrupção da Intoxicação Doutrinária


Quem não sente nada real em si e fora de si - quem em geral apenas vive de conceitos e joga com conceitos -, aquele cuja capacidade de intuir há muito foi morta pela memória, pela especulação estéril ou pela corrupção social - para quem sua existência mesma não é senão um pensamento opaco -, como pode falar sobre a realidade (assim como o cego fala de cores)?


F. W. J. von Schelling - Propedêutica da Filosofia

A Palavra de Deus como Axis Mundi


   Em momentos de grande mudança da história mundial, a consciência histórica do homem é fortemente estimulada. A relatividade de nossos padrões e opiniões tradicionais manifesta-se claramente. Aqueles que consideram a base firme de suas vidas pessoais e sociais e não vivem segundo a Palavra de Deus podem ser facilmente vitimados por um estado de desenraizamento espiritual, entregando-se a um relativismo radical e perdendo toda fé em uma verdade absoluta. 

Herman Dooyeweerd. No Crepúsculo do Pensamento Ocidental. p. 107

Hegel e a Tradição

Assim como as artes da vida exterior, a quantidade de meios e habilidades, as instituições e hábitos da convivência social e da vida política são um resultado da reflexão, da invenção, da desdita, da indigência e da esperteza da história anterior ao nosso presente, assim o que somos na ciência e mais precisamente na filosofia deve tributar-se à tradição que, através de tudo o que é mutável e o que, por conseguinte, desvaneceu, se entrelaça e uma cadeia sagrada e nos conserva e transmite o que o mundo precedente produziu.

HEGEL, G. W. F. - Introdução à História da Filosofia. p. 23

Calvino, Agostinho e a Iluminação Temporária, Ou a Fé Evanescente


   Há tempos atrás, na controvérsia entre o Yago Martins e o Olavo de Carvalho - controvérsia na qual o Bernardo Küster tomou parte, como aquele homem número zero que estava representando a onipotência do Olavo de Carvalho contra o Yago, aquele homem que era, podemos dizer, o mesmo que mil teólogos -, B. Küster colocou em pauta aquilo que declarou ser um absurdo teológico de Calvino, ou seja, a estranha ideia da iluminação temporária, ou fé evanescente.

   Contudo, estranhamente a ideia não é nova no cristianismo, tendo lastro na tradição e, mais especificamente, em Santo Agostinho. Pego aqui como exemplo a interpretação alegórica que Agostinho faz do Salmo 3, quando compara Absalão, de quem o rei Davi fugia quando escreveu o Salmo, a Judas Iscariotes, aquele que traiu o Senhor.
   Essas são as palavras de Agostinho:
   "'Salmo de Davi, quando fugia de seu filho Absalão'. A loução: 'Adormeci, caí em sono profundo. Despertei porque o Senhor me me acolherá' persuade-nos a aplicar este salmo à pessoa de Cristo. De modo mais adequado se refere à paixão e ressurreição do Senhor do que à história de Davi a fugir do filho, em guerra contra ele (2Sm 15,17). Estando escrito a respeito dos discípulos de Cristo 'os amigos do esposo não jejuam enquanto o esposo está com eles' (Mt 9.15), não é de admirar que esse filho desnaturado [Absalão] represente o discípulo impiedoso que o traiu. Embora seja possível o sentido histórico relativo à fuga de Cristo da presença do traidor, quando havendo Judas saído ele [Cristo] se apartou com os demais para o monte, no entanto, espiritualmente o Filho de Deus, isto é, a virtude e a sabedoria de Deus, abandonou o espírito de Judas e o diabo o invadiu totalmente, conforme está escrito: 'O diabo entrou em seu coração' (Jo 13.2). Com razão entende-se Cristo ter fugido dele. Não quer dizer que Cristo cedeu ao diabo, mas quando Cristo se afastou, o diabo se apossou de Judas. Penso que neste salmo deu afastamento se denomina fuga por causa da pressa com que se realizou. A palavra aparece na declaração do Senhor: "Fazei depressa o que tens de fazer" (Jo 13.27). Nós também costumamos dizer: Fugiu-me [sic], quando não nos lembramos de alguma coisa; e de um homem muito douto afirmamos: Nada lhe escapa. A verdade, por tanto, fugiu da mente de Judas, ao deixar de iluminá-lo." 1
   Esse trecho afirma muito mais do que se pode captar à primeira vista. Ao dizer, por exemplo, que a fuga não se trata de um fugir por parte de Cristo da face do diabo, mas um deliberado "retirar-se" do espírito do Judas, Agostinho ressalta, nesse contexto, a soberania de Deus. No fim do texto se afirma que: "A verdade, por tanto, fugiu da mente de Judas, ao deixar de iluminá-lo". Agostinho tem a complicada tarefa de conciliar a iluminação com a soberania de Deus ou a teologia da predestinação, e, ao que parece, ele ressalta que deliberadamente Cristo retirou-se do espírito de Judas, como nos afirma este trecho: "espiritualmente o Filho de Deus, isto é, a virtude e a sabedoria de Deus, abandonou o espírito de Judas", e como resultado dessa deliberação "o diabo o invadiu totalmente". E não é nenhum ilogismo concluir que, se Cristo se retirou de Judas, é óbvio que Cristo já esteve em Judas.
   Por tanto, ainda que não se faça aqui um juízo teológico de tal asserção, fica posto que a ideia da iluminação temporária, ou da fé evanescente, não é uma estranheza original ditada pela pena de Calvino, como nos faz acreditar B. Küster - e isso sem falar da interpretação de Calvino da parábola do semeador, onde no solo espinhoso a semente plantada parece que vigará, mas é afogada pelo espinheiro, tal como a fé temporária é apagada pelos cuidados da vida. Antes essa ideia pode até mesmo ser encontrada entre as especulações teológicas de um grande pai da Igreja como Agostinho de Hipona, .

1 AGOSTINHO DE HIPONA - Comentário aos Salmos - 1-50, vol. 1; ed. Paulus. p. 30.

A Singularidade da Invocação de Deus como 'Abba*


   O judaísmo antigo dispunha de uma grande riqueza de modos de se dirigir a Deus. A "oração" ('teffilah', mais tarde chamada de oração das dezoito [preces]), que já na época do Novo Testamento se rezava três vezes ao dia, por exemplo, termina cada benção com uma nova interpelação de Deus. A primeira benção reza em sua forma supostamente mais antiga:

"Louvado sejas, Javé,
Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó (cf. Mc 12.26 par.), Deus altíssimo, 
Senhor do céu e da terra (cf. Mt 11.25 par.), nosso escudo e escudo de nossos pais. 
Louvado sejas, Javé, escodo de Abraão".
   Vê-se: a uma forma de invocar a Deus segue outra. Se quiséssemos catalogar todas as interpretações que ocorrem na antiga literatura devocional judaica, a lista seria enorme. 
   Quanto à interpelação de Deus como 'Pai', não a encontraremos em nenhuma passagem do Antigo Testamento, Com certeza lhe estão muito próximos o apelo a Deus chamando-o de 'abinu 'attah (tu és nosso pai - hebr) numa situação desesperadora, ou 'abi 'attah' (tu és meu pai - hebr), mas trata-se aí de sentenças afirmativas, e não da invocação de Deus usando do nome de Pai para ele. Na literatura pós-canônica do judaísmo, há testemunhos isolados no judaísmo da diáspora de invocação de Deus como páter [pai - greg] [Eclo 23.1,4], em que se segue simplesmente a influência do mundo grego. No meio palestinense, só nos tempos do começo do cristianismo é que encontramos duas orações que usam interpelação de Deus como pai, ambas no forma 'abinu malkenu [nosso pai, nosso rei - hebr]. Todavia é preciso observar que se trata do orações litúrgicas, nas quais Deus é invocado como pai da comunidade, e que aí se usa linguagem hebraica e que, além disso, se usa 'abinu ligado com malkenu: o pai, que a comunidade invoca, é o rei celestial do povo de Deus. Toda via, em vão procuraríamos aí a invocação pessoal individual de Deus como "meu Pai". Esta aparece (visto que o texto original de Sir. 23.1,4, que se deduz de uma paráfrase hebraica, rezava 'el 'abi, e, por isso, não se deve traduzir por "Deus, meu Pai", mas por "Deus de meu Pai") pela primeira e uma única vez no escrito surgido cerca de 974 d.C. no sul da Itália, chamado 'Seder Eliyyahu Rabba', na formulação 'abi shebashamayim' (meu pai que está nos céus - hebr); por tanto em hebraico e com complemento. Isso significa que, na literatura do judaísmo palestinense antigo, até agora ainda não se comprovou a existência de uma invocação individual de Deus por "meu Pai". Ela só iria surgir na Idade Média no sul da Itália.
   Se já era algo totalmente incomum o fato de Jesus se dirigir a Deus chamando-o de "meu Pai", isso vale tanto mais para o emprego da forma aramaica 'Abba. Ela foi transmitida expressamente apenas em Mc 14.36, mas duas outras observações falam em favor de que Jesus usava esse modo de se dirigir a Deus como 'Abba também no restante de suas orações. EM primeiro lugar, a tradição da interpelação de Deus como Pai representa uma estranha oscilação em suas formas. Encontramos, de um lado, a forma grega correta do vocativo 'páter', acompanhado do prenome pessoal em Mateus (páter mou), e, do outro lado, o nomitativo com artigo (ho patér) como vocativo. Chama especialmente a atenção que numa só e mesma oração encontramos lado a lado páter e ho patér vocativo, a saber em Mt 11.25s. par. Lc 10.21. Essa estranha oscilação aponta para um 'Abba subjacente, que no tempo de Jesus era usado tanto como interpelação omo para o 'Estado determinado ou enfático' ("o pai"), como também para a forma com o sufixo em primeira pessoa ("meu Pai, nosso Pai"). Em segundo lugar: através de Rm 8.15 e Gl 4.6 ficamos sabendo que na igreja primitiva estava espalhada a invocação operada pelo Espírito 'Abba ho patér [Abba pai], e de tal modo que Paulo não pressupõe apenas para suas próprias comunidades (Gl 4.6), mas conta também com o fato de que esse 'Abba soava também como invocação na oração de uma comunidade não fundada por ele (Rm 8.15). O caráter incomum dessa invocação de Deus comprova que ela é um eco da oração de Jesus. Temos, pois, todos os motivos para contar com o fato de que páter (mou) [meu pai] ou ho patér das orações de jesus subjaz em todo lugar um 'Abba.
   Embora haja testemunhos esporádicos da invocação de Deus como páter - se bem que sob influência grega - no campo do judaísmo helenístico, pode-se dizer com segurança que em toda vasta literatura do judaísmo antigo não se encontra em parte alguma um testemunho para a invocação de Deus com 'Abba, nem em orações litúrgicas nem em orações privadas.
   Mesmo à parte das orações, o judaísmo evita conscientemente aplicar a palavra 'Abba a Deus, como se pode estudar no Targum. Das três passagens do Antigo Testamento em que Deus é chamado de 'abi, o Targum reproduz duas com ribboni [meu Senhor] (Targ Jr 3.4,19); somente no Targ do Sl 89.27 é que o tradutor se viu obrigado pelo sentido a colocar 'Abba. No restante do Targum, aplica-se 'Abba (hebr. 'ab - pai) a Deus só mais no Targ de Ml 2.10; também aí o tradutor, por causa do conteúdo, não viu outra possibilidade de tradução. Fora do Targum, só há um lugar na literatura rabínica em que se usa 'Abba com referência a Deus. Trata-se de um ahistória a respeito de Hanin ha-Nehba, que viveu por volta do fim do século I a.C. e era tido como homem que orava eficazmente por chuva:
"Hanin ha-Nehba era filho da filha de Honi, o traçador de círculos. Quando o mundo precisava de chuva, os nossos mestres costumavam mandar a ele as crianças da escola, que agarravam a orla do seu manto e lhe diziam: /'abba, 'abba, hab lan mitra/ [Paizinho, paizinho, dá-nos chuva!] . E ele falava diante dele (Deus): 'Senhor do universo, faze-o por causa destes que ainda não sabem distinguir entre um 'Abba que pode dar chuva e um 'abba, que não pode dar chuva alguma.
   Hanin aplea à misericórdia de Deus, retomando com humor o confiante " 'abba, 'abba" que as crianças da escolha lhe gritam e designando a Deus - em contraposição a si mesmo como o " 'Abba que pode dar chuva". Pode-se considerar essa história como prelúdio a Mt 5.45, onde Deus é nomeado como o Pai celeste que dá o dom da chuva para justos e injustos sem distinção - mas elas não oferece o testemunho judaico que falta para a invocação de Deu como 'Abba. Pois, note-se bem, Hanin não se dirige a Deus com a invocação 'Abba; sua interpelação é antes "Senhor do universo".
   Com tudo isso estamos diante de um dado de fundamental importância: ao passo que não temos nenhum testemunho de que no judaísmo Deus tenha sido invocado com 'Abba, Jesus sempre o invocou assim em suas orações, sendo a única excessão o grito na cruz em Mt 15.34 par. Mat 27.46, o que se justifica pelo caráter de citação dessa passagem.
   O notável silêncio da literatura devocional judaica se explica a partir do dado linguístico: 'abba é, poe sua origem, uma forma de balbucio, motivo pelo qual não se flexiona e nem recebe nenhum sufixo [pois no hebraico os artigos que antecedem os substantivos aparecem como sufixos nos próprios substantivos]. "Somente quando uma criança experimenta o gosto do trigo (isto é, quando ela é desmamada), é que ela diz 'abba, 'imma [mãe] (ou seja, estes são os primeiros balbucios). Originalmente um balbucio, 'abba tinha ganho, já antes do Novo Testamento, ampla base no aramaico palestinense. Tinha abafado em toda linha o 'abi, aramaico puro e hebraico-bíblico, tanto como forma de interpelação como de asserção, tinha-se colocado no lugar do 'estado determinado ou enfático' 'abba e se tinha afirmado largamente como expressão para "seu pai" e "nosso pai". Nos dias de Jesus, já há muito tempo que 'Abba não mais se restringia à linguagem das criancinhas. Também os filhos adulto se dirigiam então a seu pai, chamando-o de 'Abba. Além do pai, também se interpelava pessoas adultas de respeito com a expressão 'Abba, o que é mostrado, p. ex., pela história (que se passa em período pré-cristão) de Hanin ha-Nehba. Uma fonte judaico-cristã recentemente descoberta diz que é uma propriedade da língua hebraica que "filho" pode designar um escravo fiel e probo e "pai", o senhor e dono. O Midrash confirma isso: "Assim como os alunos são chamados de filhos, assim ta,bém o mestre é chamado de pai" [Sifre Dt 34 sobre 6.7]. Na casa do rabino Gamaliel II (cerca do ano 90), até mesmo o escravo Tobi era chamado de " 'abba Tabi" [Tp. Nidda 49b 42s. Bar.].
   Tendo em vista esse Sitz in Leben [lugar vivencial, ou lugar vital] de 'abba, compreende-se porque o judaísmo palestinense não usava 'abba como interpelação de Deus: 'abba era linguagem de crianças, falar do dia-a-dia, expressão de cortesia. Para a sensibilidade dos contemporâneos de Jesus, teria parecido irreverente, até mesmo inimaginável, invocar a Deus usando essa palavra familiar.
   Jesus ousou empregar 'Abba como invocação de Deus. Esse 'Abba é ipsissima vox de Jesus.

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* Joachim Jeremias - Teologia do Novo Testamento. ed. Hagnos. p. 114-120

O Poder do Maligno e a Vitória sobre Satã

[...] Portanto, Jesus não considerava o mundo do mal como algo atomizado, mas como uma unidade. Assim, o mal perde o caráter de algo de isolado e fortuito; ele é radicalizado. Por detrás de suas várias formas fenomênicas está o extrós [inimigo - grego] por excelência, o destruidor da criação. Os seres humanos estão indefesos à mercê do seu exército de maus espíritos (Lc 10.19). Este conhecimento da realidade do mal culmina na ceteza de que o poder do mal ainda não atingiu seu ápice: Satã haverá de se levantar como Deus e exigir adoração (Mc 13.14). Só então, no fim dos dias, é que será posto abaixo o pseudodeus: tunc Zabulus finem habebit [então Zabulos terá um fim - latim] (AssMois 10.1).
   Neste mundo escravizado por Satã, Jesus entra com autoridade de Deus, não só para exercer a misericórdia, mas obretudo para assumir a luta contra o mal. O. Bauernfeind demonstrou que o Evangelho de Marcos descreve as expulsões de demônios por Jesus como lutas, como é o caso p. ex. em Mc 1.23-28. Temos aí o seguinte esquema: o possesso se aproxima com uma palavra de rejeição contra Jesus (v. 24 que deve ser lido como duas perguntas); a rejeição cresce a ponto de tornar-se um ataque e depois segue uma esconjuração feita pelo demônio contra Jesus (oidá se tís éi, ho agios tou Teou [sei quem és: o santo de Deus - grego), v. 24b). À ordem de Jesus para que se cale e se retire (v. 25) o demônio opõe uma última resistência antes de obedecer (v. 26). O mesmo esquema retorna em Mc 5.6-10. Também Jesus partilha da ideia de que as expulsões de demônios são lutas contra poderes maus, como o evidencia a paráboa do duela em Mc 3.27 pr. Lc 11.21. Emprega-se aí a figura da luta escatológica, que os textos essênios (principalmente 1QM) evidenciam como ideia corrente. Com essa parábola, Jesus interpreta suas expulsões de demônios como lutas, e, mais exatamente, como tomada dos espólios após a vitória sobre o homem forte, em que tal vez tenha servido de pano de fundo Is 53.12 ("e fará dos poderosos os seus despojos"). Em Lc 13.16 emprega a figura do romper as cadeias das vítimas de Satã, a fim de descrever a cura.
   Essas vitórias sobre o poder do mal não são apenas irrupções isoladas no reino de Satã. Significam mais. São manifestações da aurora do tempo salvífico e do começo da aniquilação de Satã (cf. Mc 1.24: apolesai [destruir - grego]). É o que afirma Lc 11.20: eidé en daktülô (Mt 12.28: pneumati) Téou ekbanlô tá daimonia, ara ephtasen eph hümas he basiléia tou Teou [se com o dedo (Mt 12.28: espírito) de Deus expulso demônios, então veio sobre vós o reinado de Deus]. Cada expulsão de um espírito mau operada por Jesus significa uma antecipação da hora em que Satã será visivelmente dominado. As vitórias sobre os seus instrumentos são prolepses [antecipações] do éschaton.
   Jesus afirma o mesmo das expulsões de demônios que os discípulos realizam por sua ordem. Ele os envia para anunciar o reino e lhe [sic] dá poder sobre as potestades do mal (Mc 3.14s.). A plenipotência sobre os espíritos retona sempre nos ditos de envio e até mesmo é característica deles (Mc 6.7 par.; Mt 10.8; Lc 10.19s, cf. Mc 6.13 par.; Mt 7.22; Lc 10.17). Trata-se de tradição antiga, pois a incumbência do envio dos missionários das origens cristãs soava diferente: tinha um teor cristológico,. A razão pela qual Jesus atribui tanta importância às expulsões de demônios pelos seus enviados evidencia-se no grito de júbilo com que ele responde à notícia dos discípulos que retornam e contam que à sua palavra os espíritos bateram em retirada: 'Eteoroun ton satanan os astrapen ek tou ouranou pesonta (Lc 10.18). Visto que nesta passagem 'piptein', como um quase-passivo semítico, deve ser traduzido como "ser expulso", então o dito significa: "Vi Satanás ser expulso do céu e cair commo um raio sobre a terra". A expulsão de Satanás do mundo celeste pressupõe uma luta prévia no céu, como a descrita em Ap 12.7-9. O grito visionário de júbilo de Jesus ultrapassa o intervalo de tempo antes da reviravolta final e vê nas expulsões de demônios pelos discípulos o início da aniquilação de Satã. Isso já está acontecendo: os espíritos maus estão impotentes, Satã está sendo aniquilado (Lc 10.18), abre-se o paraíso (v.19). os nomes dos eleitos constam no livro da vida (v. 20).
   Não se acha afirmação análoga ao judaísmo daquele tempo. Nem a sinagoga nem Qumran conhecem uma vitória sobre Satã que já esteja acontecendo no presente; Com certeza, tudo isso é dito de modo paradoxal e só é visível àquele que crê. Satã ainda exerce o seu poder. Por isso as erga [obras - grego] não oferecem nenhuma legitimação; podem até mesmo ser entendidas como obras de Satã (Mc 3.22). Mas onde os homens acreditam em Jesus, soa o grito de júbilo que perpassa todo o Novo Testamento: o poder de Satã foi quebrado! "Satana maior Cristus" [Cristo é maior do que Satanás - latim] (Lutero).

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Joachim Jeremias - Teologia do Novo Testamento. ed. Hagnos. p. 157-159.