A ideia de considerar o corpo uma propriedade tem um quê de maligno, já
que não existe uma separação entre o eu e o corpo pois o meu eu e o meu corpo
somos uma coisa só. Isso por si só já deveria nos prevenir da ideia tipicamente
moderna de que o corpo é uma propriedade a nossa disposição para fazermos dele
o que bem quisermos.
Há aqui um pensamento perigoso e destrutivo, pois se o meu corpo é minha
propriedade eu posso vendê-lo, rasgá-lo, deformá-lo, desfigurá-lo, riscar ele e
inserir objetos cortantes como bem quiser nele e tudo bem: meu corpo, minhas
regras. Na raiz deste pensamento destrutivo está a razão da destruição do nosso
próprio mundo: não há razões para distinguirmos entre a ideia de posse do nosso
corpo e do nosso mundo longe da destruição consequente de ambos.
Na medida em que entendemos o mundo e nosso corpo como propriedade,
proclamamos a soberania de nossa vontade sobre o nosso corpo e sobre o mundo.
Nesse sentido é que agem aqueles que destroem a face do mundo, picham muros,
enchem as ruas de lixo, destroem construções e paisagens urbanas que trazem em
si uma harmonia que embeleza a cidade, tal como pessoas que picham e entulham
de metais seus corpos, deformando-o e desfigurando-o.
Já alguém disse que o ódio à beleza é sempre totalitário, e não há nada
mais totalitário do que proclamar a nossa vontade soberana sobre o nosso corpo
e o nosso mundo, entendendo-os como escravos a existirem a serviço dos nossos
caprichos.
Essa foi a própria mentira com a qual a serpente enganou o primeiro
casal: sereis como deuses; e como deuses, podeis fazer o que vocês quiserem sem
prestar contas a ninguém. Quem duvida que é essa ideia mesma que traz o caos e
o inferno para a superfície da história?