sexta-feira, 26 de agosto de 2016

A Destruição do Corpo e a Destruição do Mundo


   A ideia de considerar o corpo uma propriedade tem um quê de maligno, já que não existe uma separação entre o eu e o corpo pois o meu eu e o meu corpo somos uma coisa só. Isso por si só já deveria nos prevenir da ideia tipicamente moderna de que o corpo é uma propriedade a nossa disposição para fazermos dele o que bem quisermos.

   Há aqui um pensamento perigoso e destrutivo, pois se o meu corpo é minha propriedade eu posso vendê-lo, rasgá-lo, deformá-lo, desfigurá-lo, riscar ele e inserir objetos cortantes como bem quiser nele e tudo bem: meu corpo, minhas regras. Na raiz deste pensamento destrutivo está a razão da destruição do nosso próprio mundo: não há razões para distinguirmos entre a ideia de posse do nosso corpo e do nosso mundo longe da destruição consequente de ambos.

   Na medida em que entendemos o mundo e nosso corpo como propriedade, proclamamos a soberania de nossa vontade sobre o nosso corpo e sobre o mundo. Nesse sentido é que agem aqueles que destroem a face do mundo, picham muros, enchem as ruas de lixo, destroem construções e paisagens urbanas que trazem em si uma harmonia que embeleza a cidade, tal como pessoas que picham e entulham de metais seus corpos, deformando-o e desfigurando-o.

   Já alguém disse que o ódio à beleza é sempre totalitário, e não há nada mais totalitário do que proclamar a nossa vontade soberana sobre o nosso corpo e o nosso mundo, entendendo-os como escravos a existirem a serviço dos nossos caprichos.


   Essa foi a própria mentira com a qual a serpente enganou o primeiro casal: sereis como deuses; e como deuses, podeis fazer o que vocês quiserem sem prestar contas a ninguém. Quem duvida que é essa ideia mesma que traz o caos e o inferno para a superfície da história? 

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A Desordem do Mundo e a Agonia do Espírito



"[...] Platão tinha desenvolvido o conceito de 'nosos' para indicar a desordem de um espírito que tinha perdido a sua orientação religiosa e espiritual; agora, com a ruptura da pólis [a cidade-estado grega], o 'nosos' se torna um mal social disseminado e atinge o ponto de uma deformação patológica da mente. O 'nosos' da mente é, assim como o surgimento da psicologia, um sintoma de desintegração política. A principal função do 'cósmion' político [ordem política onde se é possível fruir uma vida que veja o seu sentido existencial, ou de vida, realizado] é [...] diminuir a ansiedade existencial do homem ao dar à sua alma, pela evocação mágica de comunidade, a garantia de ter um lugar significativo em um cosmos [ordem da realidade] bem-ordenado. Quando o encantamento mágico perde a sua força [ou quando a ordem política perde autoridade por causa de ameaças internas ou externas], as inquietações primordiais são novamente liberadas; o mundo circundante torna-se uma vastidão desordenada, cheia de perigos desconhecidos, pressionando a alma humana; e o espírito que é exposto a essa experiência de desordem pode romper-se com a tensão; pode tornar-se desorganizado ao ponto de tatear em busca de qualquer ideia ou pessoa que pareça deter uma promessa de proteção e apoio. Os fenômenos sociais que acompanharam esse período [da desintegração do sentido conferido pelas ordens políticas] foram, assim na época helênica como na nossa, um aumento prodigioso no número de círculos esotéricos, de clubes, de comunidades espirituais semirreligiosas e escolas do pensamento, a ascensão de novos movimentos religiosos e seitas, o aparecimento de salvadores e líderes e a fundação da filosofia de conduta."

Eric Voegelin. História das Ideias Políticas Vol. I. Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. Ed. É Realizações. p. 113,114.