domingo, 31 de outubro de 2021

A Escritura Hebraica e a Distinção Semântica entre Matar e Assassinar

    O mandamento não matarás, que está presente em Êx 20.13, é bem melhor compreendido como não cometerás assassinato (לֹ֥֖א תִּֿרְצָֽ֖ח), e aqui se abre um leque de discussão interessante sobre a distinção entre matar e assassinar no Antigo Testamento, discussão à qual buscarei contribuir com algo neste texto e que evidentemente pode esclarecer dúvidas a cerca desse assunto que causa certas dificuldades entre os vários grupos cristãos.

    Aqui, com a promessa de ainda trabalhar em um texto maior, farei uma análise singela de termos hebraicos, assim como o seu emprego no texto bíblico, tentando extrair o substrato semântico pelo qual iluminaremos a questão, terminando por expor com maior clareza possível qual o significado do Sexto Mandamento e o que isso implica para a fé cristã que tem no texto da Escritura a expressão máxima da sua regra de fé.

    No texto hebraico podemos notar uma variedade de palavras empregadas tanto para o que compreendemos como matar, assim como assassinar. Estou fazendo uma distinção semântica entre essas duas palavras, dando um significado de licitude para a primeira palavra e de ilicitude para a segunda. Isso não significa que não usamos a palavra matar para designar um crime, mas sim que estou, por motivos de conveniência, dando os significados já expostos às palavras que escolhi para clarear o que quero com esse texto - levando em consideração que a palavra assassinar tem sempre evidente significado de ilicitude.

    Mas vamos às palavras:

    A palavra רָצַח (ratsah) de onde vem תִּֿרְצָֽ֖ח (tirtsah), quer dizer propriamente, segundo Strong, um homicídio (Dt 5.17; 1Rs 21.19; Jr 7.9), ou mesmo um assassinato acidental (Nm 35.11; Js 20.3) ou mesmo um ato de vingança (Nm 35.27). Uma flexão desse verbo em רֶצַח leva à sua substantivação para significar assassino.

    Já a palavra הָרַג, mesmo flexionada, é menos negativa, e envolve, de certo modo, algo como um "justiçamento" que não implica necessariamente em um ato pecaminoso, indicando até atos divinos (Dt 13.09 - 13.10 BHS; Jr 15.3; 2Sm 4.10), mas também pode se referir a atos francamente iníquos (Jz 9.5; 1Sm 22.21; 1Rs 2.5; Sl 94.6). Especificamente no Sl 94.6, há um paralelismo interessante entre as palavras הָרַג e רָצַח, ambas usadas em sentido evidentemente negativo.

    Entre palavras que possuem variação semântica, e que podem identificar tanto o sentido de matar quanto de assassinar, podemos identificar שׂחט (Jr 39.6; 2Cr 35.1,6). Também a palavra קטל, que significa matar, pode ser aplicada a Deus (Sl 139.19; Jó 13.15), e quando associado ao verbo רצח indica um ato iníquo como o assassinato (Jó 24.13).

    Preste atenção que para além do campo gramatical, há aqui evidente variação semântica, e mesmo palavras que evidentemente congregam em si um sentido apenas negativo, nos deixa patente a noção que no texto bíblico há uma distinção axiológica (de valor) entre o ato de matar e o ato de assassinar. Compreender isso é atentar para a verdade, um tanto quanto não evidente para alguns, sendo tida até mesmo como um contra-senso para outros, que há atos de matar como que permitidos pela Escritura, e atos como o assassinato que são vedados por ela. Notamos assim um nível interessante de abstração que levam à compreensão de atos empiricamente semelhante são, no entanto, axiologicamente distintos.

    No campo da reflexão sobre ética, é importante notar que, apoiados nos dados da Escritura Sagrada, nem todo matar é pecado ou transgressão contra a lei divina, e poderíamos expandir esse assunto para saber quais casos constitui matar, e quais casos constitui realmente um ato de assassinar. Evidentemente isso nos leva para longe da interpretação um tanto unilateralista, de certos grupos fundamentalistas, de Êx 20.13, a ponto de proibir qualquer pertença de cristãos às Forças Armadas, à polícia, condenando até mesmo o ato de legítima-defesa como ato de transgressão aberta contra Deus. Tenhamos em conta que às vezes é necessário o uso da força para proteger a sua própria vida por inúmeras razões, entre elas preservar a sua vida em função da educação dos filhos, para proteger a família etc. O uso da força que não visa tirar uma vida, mas proteger outra, não é ato condenável por Deus.

    Mas nunca é demais lembrar que a vida cristã é também um convite ao sacrifício, sendo o que o ato do sacrifício é tido até mesmo axiologicamente superior à legítima defesa. A escolha entre esses dois atos possíveis é uma escolha a ser feita entre algo bom e algo ainda melhor. A legítima-defesa é boa, e verdadeiramente boa; contudo o ato de sacrifício é ainda melhor, e o cristão está isento de culpa se escolhe ou uma coisa ou outra, tendo em mente que ainda assim é bom escolher o melhor.

Comentário em Tiago 4.1-10: (Πόθεν πόλεµοι καὶ πόθεν µάχαι ἐν ὑµῖν) De onde vem a guerra entre vocês?

Texto de Tiago 4.1-10:

1 Πόθεν πόλεµοι καὶ πόθεν µάχαι ἐν ὑµῖν; οὐκ ἐντεῦθεν, ἐκ τῶν ἡδονῶν ὑµῶν τῶν στρατευοµένων ἐν τοῖς µέλεσιν ὑµῶν; 2 ἐπιθυµεῖτε, καὶ οὐκ ἔχετε· φονεύετε καὶ ζηλοῦτε, καὶ οὐ δύνασθε ἐπιτυχεῖν· µάχεσθε καὶ πολεµεῖτε. οὐκ ἔχετε διὰ τὸ µὴ αἰτεῖσθαι ὑµᾶς· 3 αἰτεῖτε καὶ οὐ λαµβάνετε, διότι κακῶς αἰτεῖσθε, ἵνα ἐν ταῖς ἡδοναῖς ὑµῶν δαπανήσητε. 4 µοιχαλίδες, οὐκ οἴδατε ὅτι ἡ φιλία τοῦ κόσµου ἔχθρα τοῦ θεοῦ ἐστιν; ὃς ἐὰν οὖν βουληθῇ φίλος εἶναι τοῦ κόσµου, ἐχθρὸς τοῦ θεοῦ καθίσταται. 5 ἢ δοκεῖτε ὅτι κενῶς ἡ γραφὴ λέγει, Πρὸς φθόνον ἐπιποθεῖ τὸ πνεῦµα ὃ κατῴκισεν ἐν ἡµῖν; 6 µείζονα δὲ δίδωσιν χάριν· διὸ λέγει, Ὁ θεὸς ὑπερηφάνοις ἀντιτάσσεται, ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν. 7 ὑποτάγητε οὖν τῷ θεῷ· ἀντίστητε δὲ τῷ διαβόλῳ, καὶ φεύξεται ἀφí ὑµῶν· 8 ἐγγίσατε τῷ θεῷ, καὶ ἐγγιεῖ ὑµῖν. καθαρίσατε χεῖρας, ἁµαρτωλοί, καὶ ἁγνίσατε καρδίας, δίψυχοι. 9 ταλαιπωρήσατε καὶ πενθήσατε καὶ κλαύσατε· ὁ γέλως ὑµῶν εἰς πένθος µετατραπήτω καὶ ἡ χαρὰ εἰς κατήφειαν. 10 ταπεινώθητε ἐνώπιον κυρίου, καὶ ὑψώσει ὑµᾶς.

Tradução e Comentário:

1, 2 - 4) Πόθεν πόλεµοι καὶ πόθεν µάχαι ἐν ὑµῖν; οὐκ ἐντεῦθεν, ἐκ τῶν ἡδονῶν ὑµῶν τῶν στρατευοµένων ἐν τοῖς µέλεσιν ὑµῶν; ἐπιθυµεῖτε, καὶ οὐκ ἔχετε· φονεύετε καὶ ζηλοῦτε, καὶ οὐ δύνασθε ἐπιτυχεῖν· µάχεσθε καὶ πολεµεῖτε. οὐκ ἔχετε διὰ τὸ µὴ αἰτεῖσθαι ὑµᾶς· αἰτεῖτε καὶ οὐ λαµβάνετε, διότι κακῶς αἰτεῖσθε, ἵνα ἐν ταῖς ἡδοναῖς ὑµῶν δαπανήσητε. µοιχαλίδες, οὐκ οἴδατε ὅτι ἡ φιλία τοῦ κόσµου ἔχθρα τοῦ θεοῦ ἐστιν; ὃς ἐὰν οὖν βουληθῇ φίλος εἶναι τοῦ κόσµου, ἐχθρὸς τοῦ θεοῦ καθίσταται. - De onde vem as guerras e as rixas entre vocês? Não vem dos prazeres que guerreiam em seus membros? Cobiçam e nada tem; matam e invejam e nada podem obter; lutam e guerreiam. Vocês não tem porque não pedem; pedem e não recebem porque pedem mal, para desperdiçarem nos prazeres de vocês. Adúlteros, vocês não sabem que a amizade do mundo é inimiga de Deus? Quem, pois, quiser ser amigo do mundo se transforma em inimigo de Deus.

    Existe aqui nesse texto um discernimento fino sobre psicologia teológica. Tiago estabelece uma etiologia* da guerra, situando a sua causa nas pulsões concupiscente que militam na alma do homem caído ou pós-lapsário. Por assim dizer, a causa da guerra e das lutas entre os homens está na deformação da alma, na anomia (injustiça) presente nos desejos, no descontrole e imoderação cega pelos quais os homens, na busca dos seus objetivos, passam por cima de Deus e do mundo. Todo o Novo Testamento é concorde com o fato de que essa desordem da alma é causa de vários atos maus, como adultérios, roubos, assassinatos etc. É essa defecção na nossa alma a responsável pelo fato de o homem desabar sobre si mesmo, sendo causa da própria ruína. Assim, a justiça seria, no homem, a reta ordenação dos afetos, ou a ordo amoris, como diriam os pais da Igreja, pela qual podemos andar com a nossa alma unida a Deus sem qualquer espécie de agressão a essa união. Também essa a razão pela qual Deus se opõe radicalmente contra o homem, pois a anomia da alma é também oposta à vontade de Deus, e mesmo o castigo pela nossa rebelião, pois o desejo concupiscente que muitas vezes nos impede o desenvolvimento contínuo e sem ruído em direção à santidade é tanto uma forma de pecado (não necessariamente pecado atual) como castigo pelo pecado. Também temos aqui a razão pela qual Deus delibera uma guerra santa contra nós, pois sua justiça não pode ver o mal.

    Portanto, a presença do prazeres (ηδοναι) que guerreiam (τῶν στρατευοµένων) em nossos membros (µέλεσιν) já é sinal de derrota e sucumbência, mas não de desesperança, pois tal defecção pode ser vencida pela graça de Deus. Contudo, temos estabelecido diante de nós a causa da nossa ruína. Assim, os homens defectivos cobiçam e nada tem (ἐπιθυµεῖτε, καὶ οὐκ ἔχετε), matam e invejam não podem obter (φονεύετε καὶ ζηλοῦτε, καὶ οὐ δύνασθε ἐπιτυχεῖν). De certo, não há posse pacífica de bens obtidos de forma ilícita, nem paz na conquista mediante atos de injustiça.

    Mas o conflito se estabelece até nos fins que estabelecemos para as nossas ações, e Deus não pode estar alheio nem aos fins, nem ao processo pelo qual estabelecemos tais fins, pois tanto um quanto outro nascem do centro do nosso eu, do nosso coração. É certo que todo objeto enquanto desejado é bom por simplesmente existir. Dizemos que o ser é bom enquanto ser, e o mal, seja na desmedida, seja na vontade viciosa, está na defecção da vontade e na colisão contra a justiça de Deus. E nisso deve ser guiado o nosso entendimento em relação à nossas orações. Paulo afirma que não oramos como convém (Rm 8.26), e Jesus nos promete responder todas as nossas orações, com a condicional que estejamos nele e as Palavras dele estejam em nós (Jo 15.7). Com essas coisas entendemos que a unidade da nossa intencionalidade à intencionalidade divina (unidade formal) constitui a medida da justiça pela qual queremos o que Deus quer em nossas orações. Mas se há um hiato entre a nossa intencionalidade e a intencionalidade de Deus, isso pode ser em função da distinção entre dois propósitos, que podem, ao seu modo, ser particularmente bons - podemos desejar um bem que embora bom, não seja da vontade de Deus, o qual pode desejar algo melhor -; ou no descompasso entre a santidade da intenção divina e a viciosidade da nossa intencionalidade. Assim Tiago afirma que podemos pedir (αιτεω), mas que em função dos vícios da nossa vontade, pedimos (αιτεοσιν) mal (κακως) para desperdiçarmos (δαπανομεν) os bens divinos em nossos prazeres (ηδοναι). Por isso pedimos e não recebemos, como já percebemos isso à luz de Jo 15.7.

    A corrupção da vontade se constitui em um desvio da nossa intencionalidade em relação à intencionalidade de Deus, que para nós é o nosso τελος, o nosso fim absoluto. É por isso que o desvio da vontade é a adulteração do fim sobrenatural posto em nós por Deus. Essa é a razão pela qual Tiago chama os desviantes de adúlteros (µοιχαλίδες), e ainda qualifica esse desvio como amizade do mundo (φιλία τοῦ κόσµου). É importante perceber aqui que a noção de amizade do mundo não quer dizer uma amizade natural do mundo criado, pois τοῦ κόσµου está no genitivo e indica que tal amizade provém do mundo. Assim, sabemos que mundo (κοσμος) na tradição da Escritura não significa necessariamente mundo criado, ou o mundo físico, mas sim a uma ordem de coisas, e mais especificamente um modo de ser que se constitui em rebelião contra Deus. Mundo é, grosso modo, a realidade pós-lapsária, o estado de coisas pós-Queda de um mundo cujos laços de afeto e graça foram rompidos em relação a Deus. Mundo, por tanto, é στασις (stasis), rebelião e revolta contra a vontade e o Ser de Deus. Não se trata de amor à vida, mas de devoção à morte. É injustiça, niilismo. Assim, participar desse modo de ser do mundo é se estabelecer como inimigo de Deus. É odiar o que Deus ama e amar o que Deus odeia. E como disse o apóstolo João, mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba da vida (1Jo 2.16). E como Deus não pode condescender com a injustiça da vontade viciosa, Deus não pode atender à oração injusta do homem vicioso.

5 ἢ δοκεῖτε ὅτι κενῶς ἡ γραφὴ λέγει, Πρὸς φθόνον ἐπιποθεῖ τὸ πνεῦµα ὃ κατῴκισεν ἐν ἡµῖν; µείζονα δὲ δίδωσιν χάριν· διὸ λέγει, Ὁ θεὸς ὑπερηφάνοις ἀντιτάσσεται, ταπεινοῖς δὲ δίδωσιν χάριν. - Ou vocês pensam que em vão diz a Escritura: É com ciúmes que anseia o Espírito que ele fez habitar em nós? Antes nos concede graça. Por isso diz: Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes.

    Esse versículo é de difícil tradução, pois não se sabe ao certo qual o sujeito de ἐπιποθεῖ (anseia), assim como não se sabe se a locução πρὸς φθόνον (com ciúme) tem conotação positiva ou negativa, ou seja, se se trata de um vício ou algo alguma virtude. Mas em todo caso damos preferência para falar sobre uma postulação de Tiago se referindo a uma noção equívoca em relação ao modo de operação do Espírito Santo. Desse modo, Tiago postula um pensamento equívoco mediante uma pergunta provocativa, como: "Vocês pensam que é com ciúme que o Espírito que Deus fez habitar em nós anseia por nós?" A pergunta em questão tem um discernimento teológico absolutamente interessante em relação à perfeição de Deus, pois em Deus não existe disputa, já que sua vontade é absoluta. Se não há imperfeição não há lacuna entre desejar e obter em Deus - Deus tem tudo o que quer e quer tudo o que tem. Deus, por assim dizer, não disputa com coisa alguma. Assim, o Espírito que habita em nós é, por natureza, incondicionalmente soberano. Ele de nós nada obtém, mas concede absolutamente todas as coisas. Entender isso é fundamental para nossas considerações sobre o Espírito de Deus, pois ele, o Espírito, é ato puro. Assim, "Antes, dá concede graça (µείζονα δὲ δίδωσιν χάριν). Assim Deus concede a graça (χάριν), e não faz com mão remissa, pois ao dar Deus não perde.

    Tiago faz uma consideração teológica sobre o caráter de Deus: Deus resiste aos soberbos (Ὁ θεὸς ὑπερηφάνοις ἀντιτάσσεται), ou seja, Deus estabelece uma antítese radical em relação aos soberbos. Aqui temos afirmado o caráter insubornável e inexorável de Deus, pois Deus é aquele que por nada pode ser torcido; não recebendo nada, Deus não é alterado por nada. Mas isso não significa que Deus não se agrade de certas coisas, pois a impassibilidade de Deus não implica que ele não ame, apenas demarca a impossibilidade de Deus declinar da plenitude de sua perfeição. Mas se há coisas com as quais Deus se deleita, porque as quer, há também aquelas que Deus repugna, odeia e não quer, como é o caso do mal moral. Deus assim resiste os soberbos (ὑπερηφάνοις), porque o constitutivo formal do ato vicioso (a intencionalidade má) é contrário ao Ser de Deus e ao seu modo de Ser - que perfazem uma unidade absoluta, já que em Deus não há distinção entre essência e existência.

    Também afirma-se que Deus concede graça ao humilde. Aqui humilde provém de ταπεινος palavra que dá origem ao termo humilhado, ou mesmo a ταπεινοφροσυνη que se trata de uma disposição mental que parte do curvar-se, a qual é a disposição adequada do homem diante de Deus, a disposição de não elevar-se além da conta. Assim, o humilde tem a disposição mental necessária para apreender a verdade tanto de si quanto de Deus. Já o υπερηφανος carece dessa possibilidade pois cheio de si, se vendo acima dos outros no que diz respeito aos seus poderes ou méritos. O soberbo tem uma visão turvada de si mesmo, uma visão pela qual ele se torna impossibilitado de se compreender como carecente da graça. Obviamente sabemos que Deus pode reduzir o homem ao nada ressuscita-lo pelo seu poder. Mas é assim que Deus preenche o homem de graça reduzindo-o a nada, pois só do nada é que Deus costuma criar. O homem inchado se encontra desabilitado à graça, pois ele é atrofiado quanto a ser cheio de si.

7, 8 - 10) ὑποτάγητε οὖν τῷ θεῷ· ἀντίστητε δὲ τῷ διαβόλῳ, καὶ φεύξεται ἀφí ὑµῶν· ἐγγίσατε τῷ θεῷ, καὶ ἐγγιεῖ ὑµῖν. καθαρίσατε χεῖρας, ἁµαρτωλοί, καὶ ἁγνίσατε καρδίας, δίψυχοι. ταλαιπωρήσατε καὶ πενθήσατε καὶ κλαύσατε· ὁ γέλως ὑµῶν εἰς πένθος µετατραπήτω καὶ ἡ χαρὰ εἰς κατήφειαν. ταπεινώθητε ἐνώπιον κυρίου, καὶ ὑψώσει ὑµᾶς. - Sujeitem-se a Deus e que resistam ao diabo e ele fugirá de vocês; chegue-se a Deus e Ele se chegará a vocês. Limpem as suas mãos, pecadores, e purifiquem seus corações, vocês de duplo ânimo. Aflijam-se, pranteiem e chorem. Se converta o riso de vocês em pranto e a alegria em tristeza. Humilhem-se diante do Senhor e Ele exaltará vocês.

    Da constatação Tiago saca um direcionamento: Sujeitem-se humildemente a Deus, e se oponham absolutamente ao diabo tal como Deus se opõe ao soberbo. Assim satanás fugirá de vocês tal como ele foge da verdade. Aqui Tiago preceitua a busca para nos unirmos a Deus, pois é na unidade nossa com Deus que afugentaremos todos os males que afligem a nós, sejam esses males internos, como as paixões que guerreiam em nossos membros, sejam os males externos, como o diabo que busca nos desviar em direção ao mal. A solução, assim, é estar unidos a Deus; assim, teremos corrigidos os nossos vícios internos pelos quais podemos cair nas seduções externas. Se "humilhar" diante de Deus é adquirir a verdade a respeito de nós mesmos, ou a verdade a respeito da nossa própria medida, e assim, adquirindo a verdade sobre nós simultaneamente adquirimos a visão de Deus, e Deus é a verdade. Não podemos conceber a verdade senão sob Sua iluminação. Assim temos aqui um duplo benefício: adquirir ciência a respeito da nossa própria medida e, ao mesmo tempo, visualizamos certa verdade de Deus. Feito isso afugentamos o diabo, cuja vida é a mentira e, consequentemente, a destruição.

    Cheguem-se e peçam a Deus, e ele se achegará a vocês. Essa sentença não deve nos levar à consideração de que, por nós mesmos, temos tal poder para nos achegarmos a Deus. Tiago é o mesmo que afirma que toda boa dádiva e todo dom perfeito vem de Deus (Tg 1.17). Como podemos nos chegar primeiro a Deus, então, se é Deus que nos ama primeiro? (Jo 1.4-19) Aqui Tiago, novamente, não está indicado um caminho pelo qual obtemos a graça de Deus, mas sim o caminho pela qual se vive essa graça, pois Não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus (2Co 3.5). Tal como a capacidade vem, a salvação também vem de Deus. Mas Aqui Tiago indica um caminho pelo qual vivemos a graça, pois de fato a graça divina não anula a nossa reação a essa graça, ou seja, a reação de se achegar a Deus e obter, assim, mais graça como certa recompensa por mérito congruente. Não negamos isso, mas afirmamos isso com as devidas distinções.

    Também o presbítero preceitua: limpem suas mãos, pecadores (ἁµαρτωλοί), purifiquem seus corações, vós de duplo ânimo (δίψυχοι). Aflijam-se, pranteiem e chorem. Convertam o riso de vocês em pranto e a alegria em tristeza. Humilhem-se diante do Senhor e Ele os Exaltará. Vemos nesse texto todo o caminho da conversão, assim como a tomada de consciência em função do estado lamentável que nos encontramos como pecadores, estado cuja realidade e cujas consequências que desse estado vem sequer imaginamos. Mas mesmo sob risco do incômodo da redundância, não devemos desconsiderar que toda consternação marcada com o sinal da verdade só é possível pela força da graça de Deus pela qual devemos orar. Devemos até mesmo para nos humilhar ter um coração disposto, e para que o requisito se torne realidade e presença devemos por isso orar. Pedir a Deus para que possamos nos achegar a Deus; pedir para que possamos nos humilhar, prantear e realmente considerar a verdade de Deus que ilumina nosso estado de miséria, de duplicidade de disposição que hora nos leva a queremos a Deus e hora a repudia-lo. Mesmo para nos arrependermos em Deus necessitamos de Deus, afim de que humilhados na presença d'Ele possamos n'Ele sermos exaltados segundo a glória da Sua eternidade.

    Busquemos, para o fim de todas as guerras em nós, a graça do arrependimento no Senhor!

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[*] A etiologia é aquilo que podemos chamar de ciência das causas. Assim, nas várias ciências, quando se busca a causa de alguma coisa se faz etiologia, p. ex: a etiologia de uma sociedade humana, a etiologia de uma certa doença (se da herança genética ou de certo male adquirido por um comportamento ou mesmo pelo consumo de determinada substância etc.). O termo etiologia é formado por dois termos gregos, que seriam aition e logos, sendo o significado de aition causa e de logos discurso, razão, ciência.

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 11ªResolução

11ª Resolução: Resolvi que ao pensar em qualquer problema teológico que precise ser esclarecido, farei imediatamente o que puder para esclarece-lo, caso as circunstâncias não me impeça de fazê-lo.

Esta Resolução do Pr. Jonathan Edwards parece estar um tanto quanto distante da maioria de nós. É como se algo assim fosse algo que dissesse respeito apenas a pastores estudados em teologia, não tendo tanta importância para a maioria dos cristãos que desconhecem o estudo teológico, ou que não possuem formação acadêmica na área etc. Mas nada mais enganoso do que uma consideração como essa, e isso é assim pelo fato de que todos nós que cremos - pelo menos é isso que se supõe de quem realmente crê e ama a Deus - temos nossos pensamentos a respeito de Deus, e todo pensamento sobre Deus, do mais elaborado ao menos elaborado é, de uma forma ou outra, teologia, pois todo pensamento sobre Deus é uma afirmação sobre Deus. Como diria R. C. Sprou, conhecido pastor reformado,Somos Todos Teólogos.

Consideremos os fatos: todos nós que oramos, finalizando a oração com os dizeres em nome de Jesus Cristo, implicitamente acreditamos que Deus atende a nossa oração por amor a Cristo. De certa maneira entendemos que, no mínimo, Deus nos ouve. Uma consideração simples assim é, em tudo, uma consideração teológica, pois é uma afirmação e uma crença que temos a respeito de Deus. No entanto, a bem da verdade, sabemos que enganos podem entrar e torcer certas considerações a respeito de Deus. O preceito da humildade deve nos convencer de que Deus é maior do que nossos pensamentos, e por vezes é até contrário a eles. Não sabemos de todas as coisas, e aqui a consciência da dúvida e do desconhecimento deve nos conduzir a certo esclarecimento a respeito de Deus. Quem acha saber tudo, não sabe corretamente, como diz o Apóstolo Paulo: Quem pensa que sabe alguma coisa, ainda não sabe como convém saber (1Co 8.2). Paulo aqui fala à comunidade de Corinto que se encontrava inchada por se supor detentora de certa ciência superior de Deus, mas que na realidade lidava com dissensões e brigas. É dessa mesma carta que vem os dizeres de Paulo: E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria (1Co 13.2), ou seja, esse conhecimento sem o amor não é o conhecimento que salva.

    A questão em pauta, no entanto, trata a respeito da dúvida a respeito de Deus que humildemente devemos reconhecer para que uma vez sanada, possamos melhor crer e, dessa forma, melhor agir. Existem muitas pessoas que possuem conceitos errados a respeito de Deus, sustentando tal pensamento errôneo por mero capricho e orgulho, errando e fazendo o outro errar. Esse é um caso drástico e que certamente deve ser evitado. Há também há outro erro comum no qual consideramos Deus mais rigoroso do que ele realmente é, o que nos leva a uma severidade cruel consigo mesmo e também com o próximo, nos esquecendo do grande amor de Deus - o maior de todos - por nós revelado na cruz. Tais noções erradas podem nos machucar e, mesmo que involuntariamente, nos levar a machucar. Mas também é comum algumas pessoas guardarem dúvidas por acharem que ao seu pastor ou irmão ouvir, acharem essa dúvida tola ou então achar que somos fracos na fé etc. Tais medos nos afastam de certos esclarecimentos que podem nos trazer uma vida mais feliz ao lado de um Deus amoroso e que nos quer melhor do que nós mesmos podemos querer.

    Assim, segundo a resolução do pastor, não tenhamos medo de expor nossas dúvidas, de buscar esclarecimento, de falar abertamente a respeito de nossas angústias em relação à nossa vida com Deus. Sejamos livres e oremos para que possamos sanar as nossas dúvidas por meio da verdade de Cristo, pois ele diz: E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará (Jo 8.32).

A Reforma, a Palavra, o Paradigma da Unidade e a Realidade da Pluralidade

    A Reforma existe para nós, evangélicos/protestantes, como um evento que sinaliza tanto a primazia da Escritura sobre toda consideração humana - Escritura que deve levar a nossa mente cativa a Cristo -, como também a verdade de que a graça se eleva eternamente acima das nossas obras, ou seja, sinaliza a soberania da Palavra e a misericórdia do perdão dos pecados e santificação.

    Mas além disso a Reforma é um evento de crise e também de autocrítica à luz da palavra de Deus, e posso dizer, à luz da definição da Igreja feita pelos holandeses como Ecclesia reformata et sempre reforma da est, que a Reforma deveria sinalizar, mesmo para os mais conservadores dos cristãos, o fato de que é sempre possível em um mundo fragmentário um discernimento superior a respeito da vontade de Deus.

    Se por um lado a Palavra é um princípio eternamente fixo, tal princípio ilumina um mundo móvel que pode sempre ser formado e reformado pela Palavra, incluindo um dos principais mundos que é o intelecto e o coração dos homens. Esse princípio é importante e deve ganhar sempre mais relevância à luz da unidade desejada por Deus aos cristãos no contexto de uma pluralidade de Igrejas, contexto que deveria pôr em nossa mente o fato da não perfeição das igrejas.

    Mesmo com todos os perigos que isso pode acarretar, devemos considerar isto atenta e firmemente: a Reforma continua, pois a continua sempre a obrigação de nos considerarmos à luz da Palavra, da presença do Espírito e da obra de Deus através da Palavra. E mesmo que a perversão dos homens possa vir a deturpar o fato de que a Reforma continua, devemos considerar essa verdade sempre à luz da unidade dos fiéis pelos quais Cristo entregou sua vida.

    Se o desejo da unidade é aquilo que podemos não ver cumprido em vida, nem por isso devemos deixar de orar para que o paradigma da unidade ganhe concreção entre nós, não a unidade na mentira, mas sim aquela que se faz segundo a verdade do Senhor, o qual nos aponta o caminho: Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros (Jo 13.5).

    Senhor, nos conduza, pela verdade e pela graça, à unidade amada e desejado pelo Senhor!

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 10ª Resolução

10ª Resolução: Resolvi que ao sentir dor, pensarei nas dores do martírio e do inferno.

A experiência da dor é comum a todos nós em algum nível. Não precisamos experimentar todas as dores possíveis para entender do que se trata quando alguém enuncia seu estado pessoal de dor. Da mesma forma, as reações às dores dependem em muito daquele que a sofre, e tendo essa verdade como tela de fundo podemos compreender o que a Escritura em várias passagens nos diz a respeito da nossa relação com as nossas experiências de dor.

    Em primeiro lugar, a própria experiência de dor surge para nós como um certo incômodo que nos leva à consideração que experiências assim não nos são naturais, no sentido de que essas experiências violam a nossa natureza, sendo incompatíveis com um estado ideal de vida. Consideramos que a dor é uma consequência do nosso estado caído, ou seja, trata-se de uma consequência do pecado no Éden. É impossível pensarmos o estado de perfeição unida à experiência de dor. Em Gn 3.19 se diz que a conquista do pão diário é algo alcançado pelo sofrimento: Com o suor do teu rosto comerás o teu pão, até que voltes ao solo, pois da terra foste formado; porque tu és pó e ao pó da terra retornarás!; Também em Gn 3.16 se diz: E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás à luz filhos. E sabemos que daí em diante a história da raça humana se desdobrou sob o sinal da dor e do sofrimento, resultado da entrada do pecado no mundo.

    Há vários tipos de sofrimento, e nem todos possuem o mesmo significado. Mas apesar dos vários tipos de dor podemos classifica-los em dois gêneros, ou seja: a dor que é imposta sobre nós em função do nosso pecado, e a dor a que estamos sujeitos em função da injustiça alheia. Não podemos dizer, por exemplo, que Jesus Cristo sofreu em função de qualquer pecado pessoal, mas sim por causa dos nossos pecados e das nossas injustiças. Também afirmamos a realidade das dores impostas sobre nós em função dos nossos pecados. E mesmo quando estamos sob o sinal do perdão dos pecados, certa dor é imposta sobre nós a fim de sermos conduzidos pela disciplina da dor à perfeita obediência a Deus. Nesse sentido, as dores da nossa vida, que são um mal, pela sabedoria de Deus podem ser convertidas em um bem, e isso ocorre para que sejamos unidos a Cristo, como diz a Escritura em Hb 5.8-9: embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem.

    Aqui devemos aceitar que a dor, em função do estado do presente mundo, é algo que nps é inescapável. Sofremos dores de várias naturezas: quando sentimos o peso do envelhecimento, quando sentimos a dor da perda de um ente querido, quando vivenciamos a separação, quando visualizamos a catástrofe se abatendo sobre uma pessoa em função de suas escolhas erradas, quando alguém escolhe deliberadamente o mal, quando vemos alguém sofrendo por doenças ou injustiça alheia, quando nós somos alvos de doença e de injustiça alheia, quando somos punidos pelas nossas injustiças e males etc.

    Mas essa questão, como foi dito mais acima, não se estabelece para nós apenas por sofrermos algum mal que nos causa dor, pois junto a isso devemos considerar a forma como sofremos essas experiências de ruptura. É sabido que a Escritura apela em vários pontos para uma forma digna de sofrer a dor. Jesus diz às filhas de Jerusalém em Lc 23.27-31: Seguia-o uma grande multidão de povo e de mulheres, que batiam no peito e o lamentavam. Voltando-se para elas, Jesus disse: Filhas de Jerusalém, não choreis sobre mim, mas chorai sobre vós mesmas e sobre vossos filhos. Porque virão dias em que se dirá: Felizes as estéreis, os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram! Então dirão aos montes: Caí sobre nós! E aos outeiros: Cobri-nos! Porque, se vocês fazem isto ao lenho verde, que acontecerá ao seco? E em Provérbios 24.10: Se te mostrares frouxo no dia da angústia, a tua força será pequena.

    Em especial esses dois versículos nos mostram duas coisas: 1) Que é possível superdimensionar a nossa própria dor quando realmente não conhecemos que diante da nossa tristeza pode haver outra prior ainda; 2) Que a fortaleza - que é uma virtude indiscutivelmente cristã nos dada pelo Espírito - com a qual suportamos a dor é aquilo que nos garante certa resistência para, nos dizeres de Jesus, não afrouxarmos no lenho verde. Entenda aqui que nenhuma dor deve ser desprezada, mas aquele que se deixa levar por uma certa dor ou angústia, a sofrendo ou temendo mais do que é devido, é fraco de espírito e não honra a Deus. Esse foi justamente o pecado dos Israelitas quando murmuram no deserto (leiam Ex 16, 17.1-7; Dt 1-2 etc.), pois estavam indispostos a tomar seu fardo em direção à sua própria libertação suportando com coragem aquilo que foram chamados a suportar.

    De fato, como nos ensina o pastor, devemos meditar nos sofrimentos da Cruz todas as vezes que nós mesmos viermos a sofrer - pois a dor da Cruz é a maior dor entre a dor dos mártires; devemos meditar no sofrimentos dos mártires, que passaram por dores excruciantes para dar bom testemunho de Deus, e analisarmos com isso se nós mesmos estamos aptos a testemunhamos, em meios às dores, a respeito da nossa fé em Cristo; devemos imaginar as dores dos condenados - que não tem cura -, para evitarmos sucumbir em nossos espírito por qualquer coisa.

    Enfim, busquemos em oração a virtude da fortaleza que afasta a murmuração causada pela má relação existente entre nós e nossos sofrimentos pois isso ofende a grandeza de Deus.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Mamom é o deus deste Mundo

    Quase sempre mega-empresas estão dispostas a engolir qualquer coisas para vender mais ou para não vender menos, nem que para isso seja necessário esmagar pessoas. Essa verdade deve nos alertar contra essa classe de executivos que quase sempre estão se lixando para ideologias ou o que valha. O objetivo é, na verdade, o aumento de poder.

    É possível que empresas defendam coisas corretas, mas é bem mais possível que defendam certas pautas para agregar valor à marca e pelo bem que produzem. Isso reflete a realidade do filisteu de espírito que por vezes até faz um bem digno de louvor, guardando ainda assim no coração uma intenção viciada, pois, como diz o apóstolo Paulo, julgam ser a piedade fonte de lucro (1 Tm 6,13).
    A história é pródiga em exemplos de gente que aderiu a certos idealismos apenas para obter lucro: a IBM desenvolveu uma tecnologia usada em programações que foi utilizada para numerar judeus em campos de concentração; a Nestlé já vendeu indiscriminadamente chocolates para combatentes nazistas, quando o abuso destes ainda não provocava náuseas; a Coca Cola desenvolveu a Fanta Uva justamente na venda para os mesmos, quando houve uma crise no fornecimento de laranjas.
    Agora os tempos são distintos, mas a operação segue sendo a mesma, seja na adoção de pautas progressistas ou conservadoras. No fim, a moral aqui não está na busca de um valor, mas segue o preceito de não morder a mão que engorda e alimenta, ou em abraçar o "espirito dos tempos" para colher certa imagem - porque "a boa imagem" agrega valor ao produto. No fundo, os valores são aqui eleitos segundo sua utilidade. Não há sacrifício.
    Mas ainda que esmaguem pessoas em nome do que quer que seja, essa gente passará. Um sopro do Espírito e a roda da história girara, desmontando todos e expondo à luz toda afetação hipócrita.
    O mundo passa, mas Deus permanece.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 9ª Resolução

 9ª Resolução: Resolvi meditar bastante, em todas ocasiões, sobre minha própria morte e sobre circunstâncias comuns relacionadas à morte.

    A 9ª resolução pode parecer um tanto quanto sombria, principalmente em uma cultura de igreja que é um tanto quanto atrofiada na ênfase sobre o aspecto da vitória, prosperidade etc., ou seja, quanto ao aspecto positivo da fé - aspecto não raramente enfatizado de forma errada e perniciosa para a fé cristã. Se tornou comum no nosso mundo viver como se não tivéssemos que morrer - e a quantidade de entretenimento e distração que nos afogam hoje parece querer colocar a verdade sobre a nossa vida no esquecimento - o que inclui a verdade da morte. No entanto a morte continua a ter um aspecto profundamente importante em nossa vida, pois esse evento é uma fronteira que divide, para todo homem, o tempo e a eternidade. Por este ângulo, é realmente após a morte que o homem inicia a verdadeira vida, aquela vida que jamais terá fim.

    Possivelmente um dos textos da Escritura que mais demarcam a importância da realidade da morte para nós é o texto de Eclsiastes 7.2 onde é afirmado que: Melhor é ir à casa onde há luto do que ir a casa onde há banquete; porque naquela se vê o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração. O que é que os vivos aplicam ao seu coração na casa do luto? O aspecto da finitude que nos demarca. Certamente que a prudência nesse tipo de evento aflora e ganha certo reforço; evidentemente que na casa do luto nos tornamos mais resolutos quanto ao cuidado de si. Coisas assim ocorrem porque o homem é confrontado tanto com a necessidade do cuidado de si na vida, quanto sobre a prestação de contas que todos estamos sujeitos após a morte. É afirmado na Escritura que após a morte segue-se o juízo (Hb 9.27).

    Mas a morte, como evento, não tem o mesmo significado para todas as pessoas, pois sob a luz da fé ela ganha um significado totalmente novo. Paulo exorta os cristãos à esperança, quando diz: Não quero, porém, irmãos, que sejais ignorantes acerca dos que já dormem, para que não vos entristeçais, como também os demais, que não têm esperança (1Ts 4.13). Sua fala alicerça a esperança na Segunda Vinda de Cristo e sinaliza um significado distinto do evento da morte para aqueles que tem fé. De fato, a própria morte de Cristo, que é onde Deus nos concede as graças fundamentais para a nossa salvação, transforma o significado da morte para aqueles que crêem. É importante ter em mente que a morte é sim um evento catastrófico que tem entrada no mundo como uma consequência direta do pecado; mas Deus, que é sábio e poderoso, usa de algo que é mal para o homem como meio para produzir algo bom. Assim, para a nossa salvação, Deus não abole a morte, mas a transforma, tornando-a um meio de concessão, para nós que cremos, da vida eterna. Sob Cristo somos iluminados para um novo significado de vida.

    Com base em tudo isso, o que o pastor J. Edwards propõe tem múltiplas utilidades, pois por meio da meditação sobre a morte e sobre as circunstâncias comuns a ela podemos exercitar várias coisas: 1) a consciência sobre um viver sóbrio, nos preparando para esse evento em relação a tudo afim de nos vermos livres de uma morte infame ou da morte no pecado (coisa que redunda em condenação); 2) o reforço da consciência de que a vida tem um limite e que é preciso saber aproveita-la bem, não a desperdiçando com atos contrários à vontade de Deus; 3) o exercício da coragem reforçada por uma fé que, em tudo, é maior do que todas as coisas, incluindo a ameaça da morte; 4) o exercício da oração pela qual pedimos a Deus forças durante todo o curso da vida para enfrentarmos esse evento em relação a nós e em relação àqueles que amamos; 5) o fortalecimento da nossa mente e do nosso espírito para e enfrentarmos corajosamente a verdade da nossa vida.

   Que o Senhor nos dê sabedoria, e nos ensine que esse tipo de meditação proposta pelo pastor tem mais relação com saber viver sóbria, honesta e alegremente, reforçando a gratidão a Deus em nosso coração, do que uma intenção em nos enterrar em pensamentos sombrios. Que sejamos sábios no viver para que nada temamos no morrer.


sexta-feira, 22 de outubro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 8ª Resolução

8ª Resolução. Resolvi agir, em todos os aspectos, tanto no falar quanto no agir, como se ninguém fosse tão vil quanto eu, e como se eu tivesse cometido os mesmos pecados, ou tivesse as mesmas fraquezas ou falhas dos outros; e que eu deixarei que o conhecimento de suas falhas não promova outra coisa senão vergonha em mim mesmo, aproveitarei esta ocasião para confessar meus próprios pecados e miséria a Deus.

     Essa oitava resolução deve ser bem discernida em função de possíveis equívocos que podemos eliminar já de início: a fé cristã rejeita qualquer forma de autodepreciação e diminuição deliberada de si mesmo. Isso ocorre por um motivo que tem em um fundamento da fé o seu amparo: a verdade. Para agradar a Deus ninguém tem qualquer necessidade de diminuir a si mesmo. E tendo a verdade como ponto de partida podemos especificar: com Deus o único meio eficaz de relação é estabelecido pela verdade e isso significa que não precisamos fazer considerações a respeito de nós mesmos como se fôssemos piores do que somos ou melhores do que somos. 

    Com isso destacado podemos considerar essa resolução em sua intencionalidade fundamental: a consideração que temos a respeito de nós perpassa tanto pela presença de virtudes, assim como pelo nosso estado de Queda. O pecado constitui atualmente aquilo que somos, e considerar a nossa humanidade por esse ângulo é fundamental para uma postura de humildade. É partindo de nós e de nossa situação atual que podemos considerar todas as coisas, incluindo o pecado alheio. 

    Não existe nenhuma exigência para que sejamos cegos para os erros alheios, pois, como dizemos acima, a verdade é uma categoria fundamental de relacionamento com Deus, e pelo fato de sermos imagem de Deus a forma da relação que estabelecemos com o nosso próximo também é a verdade. Não podemos furtar a verdade do nosso próximo - cuidando nisso da conveniência. Ninguém tem necessidade de mentir para falar com o próximo, e também ninguém precisa mentir para si. Assim, a resolução que diz que na consideração do pecado alheio jamais devemos nos esquecer dos nossos pecado. O pecado rebaixa, e rebaixa todos nós, e por isso a consideração do nosso próximo deve ser profundamente preenchida por indulgência, misericórdia. É necessário um olhar indulgente que evite a cegueira para nós mesmos, incluindo para os nossos pecados. 

    Diante disso, podemos evitar dupla cegueira: a cegueira para o erro dos outros e a cegueira para com os erros nossos mesmos. Assim, as falhas alheias onstituem uma oasião muito propícia para a consideração a respeito de nós mesmos. Uma vida meditada, consciente e esclarecida é, certramente, um requisito importante para a aquisição de uma vida mais cordial, justa, misericordiosa, honesta e verdadeira, e o exame de si (1Co 11.28) para isso é absolutamente fundamental.

    Tendo todas essas coisas em vista, façamos o compromisso para que a consideração do pecado alheio exerça em nós a função de criar uma oportunidade para confessarmos a nossa própria miséria dainte de Deus.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

As Setenta Resoluções de Jonathan Edwards: 7ª Resolução

7ª Resolução: Resolvi nunca fazer qualquer coisa que eu devesse ter medo, caso esteja vivendo a última hora de minha vida.

    Não há segredo em relação a essa terceira resolução, pois ela se deve a uma consciência de de zelo em relação àquilo que, segundo o que experimentamos em nossa vida espiritual, depende do nosso comportamento para a salvação. Mas antes de tudo, é bom que deixemos algo claro: a salvação é algo que a Deus pertence (Jn 2.9) e não a nós, pois somos salvos pela graça de Deus, mediante a fé, coisas essas que são inteiramente graça de Deus para nós, pois não somos capazes de criar nem a graça da salvação por nós mesmos e nem mesmo a fé, que é um dos constitutivos dessa graça que nos salva.

    Explicada a questão da necessidade absoluta da graça para a salvação, cuja concessão para nós é algo reservado pela sua exclusiva autoridade, partamos para uma especificação mais profunda: embora a graça de Deus seja a única causa da salvação em nossas vidas, pois ela é absolutamente necessária como necessidade de consequência, o fazer da nossa parte é também necessário, mas em outro sentido, a saber, como necessidade de consequente. Não se trata da ideia errônea de que devemos realizar obras para manter sobre nós a graça salvadora. Antes, a noção de que as obras são necessárias como necessidade de consequência exclui qualquer ideia de que cooperamos com nossas energias para a consecução da graça, pois a graça não é inócua. Ela tem seus efeitos. Dizemos que a necessidade de consequência é antes uma necessidade de efeito, ou seja, uma necessidade de que o efeito da santificação e elevação da nossa vida em graça seja uma consequência necessária da presença da graça mesma como causa desses efeitos.

    Em Gl 5.6 se diz que a fé opera pelo amor, ou seja, que o amor sobrenatural está unido à fé salvadora, pois a fé por ele atua. Também dizemos que uma fé sem obras é morta (Tg 2.26), pois a nota característica daquele que porta a fé salvadora é certo zelo, benignidade, amabilidade, operosidade generosa da nossa parte, sensibilidade aos sofrimentos alheios vista por atos de misericórdia, mas também o zelo manifesto através do cuidado de si mesmo. E é aqui que podemos compreender o conteúdo dessa resolução que temos diante de nós: a hora da morte é um dos eventos mais importantes de nossa vida, por essa hora é uma fronteira em que do lado de lá reside um estado irreversível que se estenderá por toda a eternidade, visto que, segundo a Escritura, depois da morte segue-se o juízo (Hb 9.27). A morte, assim, esgota totalmente as nossas potências para a alteração das coisas por nossa parte; é comum dizer que, após a morte, nos tornamos exatamente aquilo que somos, ou seja, que após a morte seremos definitivamente o que somos, sem possibilidade alguma de mudanças - como ocorre em vida, quando podemos nos arrepender, voltar atrás etc.

Podemos concluir dizendo que o zelo em questão, relacionado a não fazer aquilo que venhamos a ter medo na hora da morte está relacionada com a ideia de não passar por essa fronteira que divide a vida e a morte com um coração deliberadamente mal, impenitente, ou seja, um coração não quebrantado e não arrependido. Isso parte de uma noção de cuidado de si, de selo, de amor à bondade que deve estar enraizado em nosso coração. Essa resolução não se trata, ao contrário do que pode parecer, de uma resolução para um momento específico, mas também implica em um cuidado cotidiano, constante e diário para transformarmos o nosso coração para a eternidade. Esse é um trabalho que, pela oração, comunhão e fé, vamos realizando por nós mesmos; e certamente que quem é sensível a essas coisas só pode ser sensível porque tem presente em si a fé salvadora, cuja presença é causa do amor que nos leva a querer a unidade eterna com Deus. Assim, é necessário que um coração cristão tenha, tanto agora como na hora da morte, um coração que queira estar sem a presença da maldade que nos afasta do Senhor.

Que essa bondade em nós seja motivo da nossa oração.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Comentário de Tiago 4.11,12: (σὺ δὲ τίς εἶ) Mas você, quem é que julga seu próximo?

Texto Grego de Tiago 4.11,12:

11 Μὴ καταλαλεῖτε ἀλλήλων, ἀδελφοί· ὁ καταλαλῶν ἀδελφοῦ ἢ κρίνων τὸν ἀδελφὸν αὐτοῦ καταλαλεῖ νόµου καὶ κρίνει νόµον· εἰ δὲ νόµον κρίνεις, οὐκ εἶ ποιητὴς νόµου ἀλλὰ κριτής. 12 εἷς ἐστιν νοµοθέτης καὶ κριτής, ὁ δυνάµενος σῶσαι καὶ ἀπολέσαι· σὺ δὲ τίς εἶ, ὁ κρίνων τὸν πλησίον;

Tradução e Comentário:

11a) Μὴ καταλαλεῖτε ἀλλήλων, ἀδελφοί· ὁ καταλαλῶν ἀδελφοῦ ἢ κρίνων τὸν ἀδελφὸν αὐτοῦ καταλαλεῖ νόµου καὶ κρίνει νόµον· - Irmãos, não falem mal uns dos outros; aquele que fala mal do irmão ou e julga seu irmão, fala mal da lei e julga a lei.

    Um dos preceitos de mais difícil compreensão se relaciona com a questão da ilicitude do julgamento do próximo. Esse preceito se assenta em um dos ditos (λογοι) de Jesus registrado em Mt 7.1, onde temos: Μὴ κρίνετε, ἵνα µὴ κριθῆτε·, ou: Não julguem para que não sejam julgados. Ao que tudo indica, se analisarmos todo o bloco textual de Mt 7.1-5, tal preceito é um preceito de prudência, antes de um preceito absoluto. A distinção é importante, pois o preceito não implica em um proibição estrita ou absoluta, mas sim em uma obrigação relativa à contratação de responsabilidade, já que: "Pois com o critério com que julgas será julgado" (Mt 7.2). A contratação da responsabilidade está em você, através do julgamento, atrair uma medida para si mesmo. Paulo dirá mais tarde na Carta aos Romanos: Portanto, és inescusável quando julgas, ó homem, quem quer que sejas, porque te condenas a ti mesmo naquilo em que julgas a outro; pois tu, que julgas, fazes o mesmo (Rm 2,1); e: Tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas que não se deve furtar, furtas? Tu, que dizes que não se deve adulterar, adulteras? Tu, que abominas os ídolos, cometes sacrilégio? Tu, que te glorias na lei, desonras a Deus pela transgressão da lei? (Rm 2.21-23).

    Todo juízo categórico traz em si o conceito de um padrão de medida universal. Os juízos morais absolutos com poderes condenatórios enquadram até aquele que os emite. O juízo de Paulo e de Jesus tem seu contexto na ação manipuladora dos judeus fariseus que, ao que parece, em virtude da hipocrisia, se portavam como monopolistas da condenação alheia, enquanto que tornavam ineficaz sobre si a regra pela qual condenavam os outros. A exigência de enquanimidade, segundo Jesus e Paulo, implica em nos submetermos às regras com a qual se submete os outros. Quando se foge desse padrão, ou seja, quando as regras são apenas regras para os outros, o que podemos perceber é que aquele que quer a regra para os outros enquanto não quer a regra para si mesmo, não quer a regra em função da produção da sua bondade, mas sim porque seu desejo está em dominar, em controlar e em manipular os outros. Quem assim não respeita a lei, também não respeita o irmão; julga tanto a lei, quanto julga o irmão submetido à lei; fala mal do irmão assim como fala mal da lei.

    A atitude de se portar como monopolista da interpretação das regras, no sentido da manipulação que torna sem efeito contra os próprios monopolistas todas as regras - ao menos quando o sentido de tais regras e leis condenam os monopolistas -, é uma das atitudes que mais evidenciam a presença de uma falha grave de caráter. A questão de fundo é que quem age assim não está apto para um relação honesta com quem quer que seja; e não estando apto para um relação honesta, não está apto aos atos de justiça e, por isso, ao amor e ao reino de Deus. Tal comportamento em uma comunidade de irmãos é absolutamente deletério, pernicioso, pois infunde agravo e pesado sentimento de injustiça.

    O texto de Tiago também fala sobre o falar mal ou καταλαλεῖτε, palavra que vem de καταλαλεω e significa, além de falar mal, também caluniar e incriminar. Aqui está presente uma noção de difamação radical contra o próximo unida à maldade intencionada. É, como tal, uma forma de "prestar falso testemunho" contra aquele a quem devemos amor, ou seja, é uma quebra radical do preceito, falta grave daquele que deve guardar sua alma da injustiça.

11b) εἰ δὲ νόµον κρίνεις, οὐκ εἶ ποιητὴς νόµου ἀλλὰ κριτής. - Se você julga a lei, não é cumpridor da lei, mas juiz.

    A segunda parte do versículo de nº11 opõe duas categorias, a categoria do ποιητὴς νόµου, ou o cumpridor da lei, e a categoria do κριτής, ou juiz, aqui também identificado, segundo o vs. 12, com o νοµοθέτης, ou legislador. A distinção estabelecida aqui implica em uma hierarquia, onde todos os cristãos são identificados com a categoria dos ποιητὴς e o único Deus à categoria do κριτής e do νοµοθέτης. Tendo considerado assim as coisas é preciso organizar nossas ideias quanto às informações para evitar uma confusão perniciosa de juízo.

    O fato de o autor apresentar, mesmo que de forma subentendida, Deus como juiz e legislador não implica na noção niilista de Deus ex lex - de resto uma terminologia de um latim horrível. Essa doutrina implica que o bem é bom unicamente pela determinação divina, e que se Deus quisesse fazer do bem mal e do mal o bem Deus assim poderia fazer. Essa consideração parte de um ponto de vista errôneo a respeito do bem devido. Sabemos que Deus não pode fazer do mal um bem porque o mal-moral tem certo constituivo que chamamos de formal. Assim, Deus também tem uma forma e a forma do seu Ser é aquela pela qual ele opera, e o pera bem, pois Deus é a própria Forma do Bem. Se o mal é a ausência do bem devido, Deus não poderia fazer da ausência do ser devido em sua formalidade um bem. Também aplicada a Deus a noção de ex lex teríamos que afirmar certa composição em Deus, pois implica que ele pode manipular o próprio bem em si, como se o seu Ser e a sua vontade pudessem ser radicalmente autônomos - o que levaria à consideração que o bem é nada, ou até que é criado por uma força superior. Deus não seria o bem, mas teria um bem - o que é absurdo. Ao contrário disso, Deus, tanto quanto não pode fazer de um quadrado um triângulo, não pode fazer do desejo assassino um bem, nem mesmo fazer boas considerações do desejo do homem ou dos anjos de se porem acima de d'Ele soberbamente. Esses são constitutivos deformados, e se uma forma tem sua essencialidade própria ela não pode ser nomeada segundo a deformação (isso contraria a definição), pois o mal é tanto defecção como deformação. Portanto Deus não é quem manda, ordenando uma lei como se essa lei não refletisse aquilo que ele mesmo É em sua essência, mas apenas aquilo que ele quer, como se o seu Ser e o seu Querer fossem absolutamente distintos um do outro. Obviamente que Deus poderia fazer coisas diferentes das que existem; homens alados, com outra constituição alimentar etc. Mas em tudo isso jamais Deus transgrediria a forma do bem, pois ele jamais transgrediria seu próprio Ser (dado a impossibilidade de Deus ter tal volição, sendo pleno de todas as perfeições).

    O que Tiago afirma não é que Deus poderia se portar como um manipulador da lei agiria, mas que Deus é quem congrega em si todos os atributos essenciais para proferir um reto juízo sobre cada um dos homens. E se nos atermos a Mt 7.5 entenderemos que o que se requer para realizar tal juízo é ver claramente, como está no texto: Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão. A ideia é que há a necessidade de reunir certas condições para se tirar o cisco do olho do irmão, tal como o ver claramente. Certamente que aqui está excluída toda forma de calúnia; mas também Jesus, como Deus, o único juiz, pode proferir um juízo condenatório sobre o ímpio tanto porque ele congrega em si todas as condições para ver claramente, quanto porque ele não é condenado naquilo por causa da medida que usa quando condena. Se ele chama de hipócrita é porque julga que alguém o é, e pode ver isso claramente. Também o texto quer deixar claro que não podemos nos portar como um verdugos do irmão sem a devida misericórdia requerida por aquilo que Tiago chama de lei da liberdade, que preceitua o proceder tal como alguém julga reto - se submetendo à regra que acha que o outro deve se submeter -, como exercer misericórdia para alcançar misericórdia (Tg 2.12,13).

    Outro ensino interessante que podemos predicar desse versículo é que Tiago traça uma linha divisória entre o cumpridor da lei e o juiz e legislador. Todos estamos do lado de cá da linha, e apenas Deus está do lado de lá como juiz. E quem se porta como legislador e juiz quer tomar o lugar que pertence a Deus, usurpando seu trono Deus, caindo em soberba e orgulho, pecados que levaram à queda de Satanás. Quem atravessa a linha se quer como dono do irmão, e não o seu igual. E sobre isso podemos nos remeter a uma das λογοι de Jesus: Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os grandes exercem poder sobre as nações. Não será assim entre vós. Ao contrário, quem desejar ser grande entre vós se tornará o vosso servo. E quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso escravo. (Mt 20.25-27). Ao que tudo indica, Jesus não está traçando o caminho correto em direção à grandeza, mas está colocando todos na mesma linha: quem ultrapassa a linha toma a posição de servidor assim como a de escravo. Assim, o Filho do homem é o modelo que serve, já que é no servir e não no exercer domínio despótico sobre outro onde está a verdade do Reino de Deus.

12) εἷς ἐστιν νοµοθέτης καὶ κριτής, ὁ δυνάµενος σῶσαι καὶ ἀπολέσαι· σὺ δὲ τίς εἶ, ὁ κρίνων τὸν πλησίον; - Um só é o legislador e juiz, aquele que pode salvar ou destruir; mas você quem é que julga o seu próximo?

    Aqui Tiago sinaliza a verdade: um só é o legislador (εἷς ἐστιν νοµοθέτης), e é só ele que tem poder (δυνάµενος) para salvar (σῶσαι) e destruir (ἀπολέσαι). Profunda a comparação estabelecida. Tiago faz duas atribuições especiais àquele Único legislador e juiz: salvar e destruir. Aquele que é o juiz absoluto é, ao mesmo tempo, o absoluto salvador. Geralmente o homem vulgar não leva em consideração o desnível existente entre o Ser de Deus e o nosso ser. É como se o presbítero quisesse gravar em nossa mente a grandeza do destruir mediante juízo condenatório pela comparação com o poder de concessão da graça salvadora que pertence exclusivamente a Deus. Reflexivamente, se alguém não pode salvar, não pode condenar, ou aplicar juízo condenador. Assim, apontando para a grandeza da obra da salvação, Tiago estabelece uma medida que informa o quão absurdo é aplicar a terceiros juízo de condenação, em especial para aqueles que estão no nosso horizonte de convívio, como estão os irmãos comuns. Certamente Tiago exige a cautela que exclui qualquer espécie de comportamento grosseiro e desmedido, requerendo temor e tremor quando proferirmos qualquer palavra apreciativa a respeito de quem quer que seja.

    Depois de sinalizar a infinita distância que nos separa do Único juiz e legislador, estabelecendo um paralelo entre a autoridade de salvar e a de condenar, Tiago pergunta de forma demolidora: Mas você, quem é (σὺ δὲ τίς εἶ)? A pergunta "Quem é você?" pode também ser ouvida desta forma: Que poder você tem?, pois ao indicar a potência salvadora de Deus e a potência destruidora, Tiago aprofunda mais ainda a separação que estabelece os limites entre o único juiz e o cumpridor da lei. No fim, ao traçar a medida divina Tiago também nos coloca no nosso próprio lugar. Humildade, no Novo Testamento (ταπεινος), tem a ver com aquilo que não se levanta para muito além do chão. Se o céu eterno é a morada de Deus, o se erguer não para muito além do chão demarca a nossa condição diante de Deus e também do próximo. Assim, nem Tiago, nem Cristo e nem Paulo querem retirar a verdade do erro alheio de diante dos nossos olhos. Eles não visam nos cegar para a verdade a respeito dos homens - pois transformar a verdade em mentira não pertence aos feitos de Deus -; antes querem nos fazer ver a verdade dentro de nós para que possamos olhar com certa consideração indulgente e misericordiosa para aquele que erra perto de nós. Também querem certa prudência para temperarmos nossas considerações sobre os outros de modo que não venhamos a nos condenar dentro da nossa própria condenação, pois nada mais absurdo do que o homem se condenar naquilo mesmo que aprova (Rm 14.22).

    Tendo tudo isso em vista, ouçamos a pergunta: Mas você quem é que julga o seu próximo?