quinta-feira, 29 de abril de 2021

Gregório Magno (+ 604 d.C.) e a Punição Vicária de Cristo

 "Mas devemos considerar como Ele é justo e ordena todas as coisas com justiça, mesmo quando condena aquele que não merece ser punido. Pois, o nosso mediador não merecia ser punido por si mesmo, porque Ele nunca foi culpado de qualquer contaminação do pecado. Porém, se Ele não tivesse sofrido uma morte que não lhe fosse devida, nunca teria nos libertado de uma morte que era devida com justiça a nós. E assim, enquanto 'O Pai é justo', ao punir um homem justo, 'Ele ordena todas as coisas justamente’. É por estes meios Ele justifica todas as coisas, tendo em vista que por causa dos pecadores, Ele condena aquele que não tem pecado para que todos os eleitos pudessem ser elevados a altura da justiça, na mesma proporção que Ele que, acima de todos, sofreu as punições de nossas injustiças. O que então está naquele lugar chamado de 'ser condenado sem merecimento', é aqui referido como sendo 'condenado sem causa’. No entanto, embora a respeito de si mesmo Ele tenha sido 'afligido sem causa', em relação aos nossos atos não foi 'sem causa. Pois a ferrugem do pecado não poderia ser removida, a não ser pelo fogo do tormento. Ele então veio sem pecado, e deveria se submeter voluntariamente ao tormento, para que os castigos devidos à nossa maldade pudessem com justiça perder as partes detestáveis, visto que injustamente haviam mantido Ele, que estava livre delas. Assim, foi ambos – com causa e sem causa - que Ele foi afligido, pois realmente ele mesmo não cometeu crimes, mas limpou com seu sangue a mancha de nossa culpa"1.
__________________________________________________ 1] GREGÓRIO MAGNO - A Moral no Livro de Jó. 3.27

A Cruz não é Causa do Amor de Deus, Antes o Supõe

    Deus não precisou da Cruz para tornar possível o seu amor: o envio de Cristo ao mundo não causa o amor de Deus ao homem, antes o pressupõe. Sendo assim, mesmo exigindo a reparação da ofensa, Deus é quem provê em seu amor expiatório a vítima da reparação, removendo com isso a totalidade dos obstáculos pelos quais o homem era impedido de fruir a totalidade deste amor.

    Há suma vantagem nessa forma pela qual o Conselho Divino escolheu para promover a expiação: O homem, origem da ofensa, é o lugar onde se faz a devida reparação pela ofensa - o homem, a origem da culpa e da pena, é quem também, pela justiça de Cristo, destrói e abole a culpa e a pena. Se no primeiro Adão o fruto do madeiro é furtado, trazendo condenação universal, no segundo Adão, no madeiro, a preço, e preço de morte, faz que aquilo que foi furtado seja restituído: "restituí o que não roubei" (Sl 69.4c).
    O roubo do que estava no madeiro no Éden redundou em pena estabelecida na lei antes do delito: "no dia em em que dela comer, certamente morrerá" (Gn 2,17b), e se fazendo maldição no madeiro, recebeu em si a pena requerida pela lei antes firmada, morrendo a morte que não era sua para nos dar uma vida que não era nossa. Derramando o seu sangue por sangue (Gn 9.6), Cristo cumpre dupla economia: satisfaz a justiça da lei (no dia em em que dela comer, certamente morrerá) e destrói o tentador para quem o homem foi entregue por um justo juízo: "Portanto, visto que os filhos compartilham de carne e sangue, Ele também participou dessa mesma condição humana, para que pela morte destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o Diabo"(Hb 2.14).
    Cristo se antepõe a esse juízo, e recebe em si a ferida que não era sua, e abandonado de Deus (Mt 27.46), consuma em si o destino do condenado e do maldito do madeiro (Dt 21.22,23), e mesmo sendo inculpável, tem sua sorte lançada entre os gentios, os impuros que estavam excluídos da aliança, sendo lançado para padecer fora da cidade. Assim fazendo, cumpre em si o destino do condenado, para que os condenados, convertidos em "justiça de Deus" (2Co 5.21), recebam para si, pela fé, "a benção de Abraão" (Gl 3.29).
    E aqui todos nós estamos na situação dos pobres, que não tendo possibilidades de oferecer o sacrifício pelo pecado, somos agraciados pelo sacerdote (que é ao mesmo tempo vítima do sacrifício), a quem cai responsabilidade de fazer a reparação para extinguir a culpa (Nm 5.6-8): "Mas, se aquele homem não tiver resgatador, a quem se restitua a culpa, então a culpa a que se restituir ao Senhor será de responsabilidade do sacerdote, além do carneiro da expiação pelo qual por ele se fará expiação", e assim: "restituí o que não roubei" (Sl 69.4c).
    Desta forma, o amor divino precede e causa a expiação, não sendo efeito dela. Liberta o homem no Homem, repara a culpa do homem pela justiça do Homem, expia as almas do homens pelo derramamento da alma do Homem, aniquila a pena dos homens pela sujeição à pena por parte do Homem. É a pessoa divina e humana de Cristo que pelo seu ato libérrimo causa a liberdade dos homens para que estes vivam, inculpáveis e santos, para Deus.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Aristóteles e a Determinação Divina sobre a Alma

    A leitura dessa obra tem um gosto de conquista e podemos dizer que a dificuldade no prosseguimento da leitura guarda uma recompensa justamente no seu fim, tal como uma conquista meritória colhida mediante atos difíceis.

    A leitura total da obra, em específico o último livro, e um certo conhecimento de teologia escolástica, torna clara uma das razões pelas quais teólogos cristãos batizaram Aristóteles. No último tomo temos a seguinte afirmação: "É este é o objetivo da nossa investigação, a saber, o que é o princípio do movimento na alma. É clara a resposta: como no universo, aí Deus tudo move".1

    A sentença acima é algo que no escolasticismo seria estabelecido como a premoção física do primeiro-motor (Deus) que incoa o movimento na alma do homem, levando-o à execução do atos salvíficos (sobrenaturais), sendo isso, segundo Aristóteles: "o caso daquele que se sai bem em obediência ao impulso [na alma]2".
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1] ARISTÓTELES - Ética a Eudemo. 1248a1, 24, 25
2] Ibidem - 1248b1 4, 5

Aristóteles e a Medida Divina como o Fundamento da moralidade

    No último tomo da obra "Ética a Eudemo" (E.E.), Aristóteles tem também como tema a noção de "sorte" (tykhe) na produção da felicidade do homem. Contudo, a fundamentação intelectualista da doutrina aristotélica não nos deixa confundir a "sorte" com o mero "acaso", já que é possível ver em sua filosofia a causação fundamental do Primeiro Motor (Deus) sobre todo o Universo, tal como se dá na alma, pois tanto do Universo como da alma Aristóteles afirma: "como no universo, aí [na alma] Deus tudo move"1.     Assim, Aristóteles afirma que há um princípio superior à razão (que não nega a razão), sendo este princípio Deus (hó Théos), e que tal princípio agindo no homem o faz escolher o bem, ainda que este possa, em muitos casos, não possuir o aparelho racional desenvolvido. Poderíamos localizar esses homens na classe dos místicos, inspirados ou profetas, já que Aristóteles afirma que estes realizam boa deliberação "sob inspiração", pois "de fato, apesar de irracionais, conseguem até aquilo que tem a ver com o prudente e o sábio"2.     Sendo Deus (o primeiro motor) o princípio acima da razão, governando não só o Universo como também a alma do homem e a sua razão, dando à alma do homem a medida da sua felicidade, logo, tal como o servo que segue o princípio regulador do senhor, a vida maximamente feliz segue o seguinte preceito: "a escolha e a posse de coisas naturalmente boas [...] que maximamente a vierem a produzir a especulação de Deus são as melhores, constituindo também a mais nobre das normas"3, e sendo a especulação de Deus a norma suprema, a medida divina é o fundamento de toda a moralidade. __________________________________________________________ 1] ARISTÓTELES - Ética a Eudemo. 1248a25, 26 2] Ibidem - 1428a35, 36 3] Ibidem - 1249b17-19

A Substituição Penal

    Estou organizando uma série de repostas a estas perguntas levantadas sobre a teologia da Substituição Penal. A serie de respostas será composta por um número de 16 textos, e os textos serão publicados em ordem, conforme a ordem das perguntas postas abaixo. 

As perguntas são estas: 

01. É possível a unidade entre a Christus Victor e a Teologia da Substituição Penal?

02. Existe separação real entre Deus Pai e o Deus Filho da Teologia Substituição Penal?

03. Há evidências da presença da Substituição Penal na teologia Patrística? 

04. Se Deus não aprova a injustiça contra o justo, por que ele aprovaria a injustiça feita a Cristo? 

05. A nossa dívida contraída em função do pecado era algo a ser requerido pelo Diabo, pela morte ou por Deus?

06. A Teologia da Substituição Penal dá mais importância à morte ou para a ressurreição de Cristo?

07. Qual a função da ressurreição de Cristo na Teologia da Substituição Penal?

08. Se Jesus tomou sobre si a nossa pena, sendo esta pena a nossa condenação ao inferno, como ela foi sofrida por Cristo na Cruz, já que Cristo não padeceu realmente as penas do inferno como um condenado?

09. Por que a Substituição Penal foi necessária? Ou: Deus não poderia, pela sua onipotência, simplesmente perdoar sem requerer qualquer espécie de sacrifício ou satisfação? 

10. O Protestantismo depende da teologia da Substituição Penal?

11. Como a teologia da Substituição Penal se relaciona com a Cristologia?

12. O Sola Fidei e o Sola Gratia, dois princípios fundamentais da Reforma, dependem da teologia da Substituição Penal?

13. A teologia da Substituição Penal desemboca em Nestorianismo? 

14. A teologia da Substituição Penal não faz uma separação radical entre a expiação e o restante do ministério de Cristo? Ou melhor: Como pode a Teologia da Substituição Penal ser conectada com temas como o Reino de Deus, a Nova Criação e a Escatologia Inaugural? 

15. Qual a relação entre a Substituição Penal com os tipos de sacrifício no Antigo Testamento? 

16. Se na Cruz Deus quita todo o pecado do homem, qual a razão pela qual ainda oramos "perdoa as nossas dívidas"? 

Agostinho, a Ceia e o Sinal

    A questão relacionada à eucaristia em Agostinho é profundamente disputada. O que podemos dizer é que Agostinho defendeu uma manducação espiritual, algo que podemos julgar como distinto daquilo que nomeamos transubstanciação. A razão disso é que um defensor assim jamais diria que "uma coisa é o sacramento; outra coisa é a virtude do sacramento", pois não há distinção possível feita assim para quem realmente defende a teoria da transubstanciação, já que aquele que defende chama o sinal literalmente de "Jesus Eucarístico", por exemplo, não pode assim proceder.     Agostinho defendeu uma manducação espiritual, como podemos ver no trecho abaixo: “Moisés, Arão, Finéas e muitos outros que comeram o maná agradaram a Deus. Por quê? Porque entendiam o alimento visível espiritualmente, apeteciam espiritualmente, degustavam espiritualmente, de sorte que fossem saciados espiritualmente. Ora, também nós hoje temos recebido o alimento visível, mas uma coisa é o sacramento, outra a virtude do sacramento" (Tratados sobre o Evangelho de João, XXVI, 11).     E sobre a diferença entre o sinal (signa) e a coisa (res) significada, isso é bem claro no "A Doutrina Cristã", onde Agostinho faz uma simples divisão. Para Agostinho o sacramento pertence à categoria dos "sinais" - assim como a Escritura Sagrada -, e não das "coisas" - como é o caso da encarnação de Cristo, a ressurreição, a substância divina (Deus) e da caridade, as quais pertencem ao universo das coisas, e não dos sinais (AGOSTINHO - A Doutrina Cristã. I.). Agostinho diz: "Toda doutrina se reduz ao ensino das coisas (rerum) e ao dos sinais (signa). Mas as coisas (rerum) são conhecidas por meio dos sinais (signa). Portanto, acabo de denominar coisas a tudo o que está empregado para significar algum outro objeto como, por exemplo, uma vara, uma pedra, um animal ou outro objeto análogo [...] Daí se deduz que denomino sinais a tudo o que se emprega para significar alguma coisa além de si mesmo". (AGOSTINHO - A Doutrina Cristã. I.2).     Sobre os Sacramentos, no mesmo livro, Agostinho diz: “Pois o mesmo Senhor e os ensinamentos dos apóstolos transmitiram-nos não mais uma multidão de sinais, mas um número bem reduzido. São muito fáceis de serem celebrados, de excepcional sublimidade a serem compreendidos, e a serem realizados com grande simplicidade. Tais são: o sacramento do batismo e a celebração do corpo e sangue do Senhor” (Ibid. IX.13).     Ou seja: a Ceia do Senhor está enquadrada, segundo Santo Agostinho, no grupo sinais que significam as coisas, e não no grupo das coisas que a que se remetem os sinais.

Versículos e Traduções

Mt 10.29: οὐχὶ δύο στρουθία ἀσσαρίου πωλεῖται; καὶ ἓν ἐξ αὐτῶν οὐ πεσεῖται ἐπὶ τὴν γῆν ἄνευ τοῦ πατρὸς ὑµῶν.

οὐχὶ: não

δύο: dois

στρουθία: pardais

ἀσσαρίου: por um asse

πωλεῖται; : são vendidos?

καὶ ἓν: E um

ἐξ:

αὐτῶν: deles

οὐ: não

πεσεῖται: cairá

ἐπὶ τὴν γῆν: sobre a terra

ἄνευ τοῦ: sem o

πατρὸς ὑµῶν.: Pai nosso.

Tradução: Não são vendidos dois pardais por um asse? Nenhum deles cairá sobre a terra sem [a permissão/consentimento] do vosso Pai.

Comentário: O texto parte de um dado corriqueiro, prosaico: a venda de pardais, ou pássaros - seja para que fim for. Mas a questão fundamental trata-se de um fato comum. Não estamos falando aqui de guerras entre nações, conquistas de reinos ou de um grande terremoto, nem de uma catástrofe semelhante a uma peste, mas da simples venda de um pássaro, algo comum no dia a dia, algo sem grandes impactos na vida de quem quer que seja. Mesmo esse pequeno evento, a venda do pássaro ou o a simples morte de qualquer um deles, não ocorre sem o consentimento, ou sem a ação de Deus. Lembrando que a noção de consentimento ou mesmo de permissão não está presente no texto original. A ideia básica é simplesmente essa: Nenhum evento, absolutamente nenhum, por pequeno que seja, ocorre sem Deus.

Tg 4.15, 16: ἀντὶ τοῦ λέγειν ὑµᾶς, Ἐὰν ὁ κύριος θέλήσῃ, καὶ ζήσοµεν καὶ ποιήσοµεν τοῦτο ἢ ἐκεῖνο. 16 νῦν δὲ καυχᾶσθε ἐν ταῖς ἀλαζονείαις ὑµῶν· πᾶσα καύχησις τοιαύτη πονηρά ἐστιν.

ἀντὶ: Ao invés

τοῦ λέγειν: dizer (dizei)

ὑµᾶς,: vós:

Ἐὰν: Se

ὁ κύριος: o Senhor

θέλήσῃ,: quiser

καὶ ζήσοµεν: tanto viveremos

καὶ ποιήσοµεν: quanto faremos

τοῦτο: isto

ἢ: e

ἐκεῖνο.: aquilo.

νῦν: agora

δὲ: Mas

καυχᾶσθε: vos orgulhais

ἐν: em

ταῖς: as

ἀλαζονείαις: pretensões

ὑµῶν·: vossas;

πᾶσα: todo

καύχησις: orgulho

τοιαύτη: desse tipo

πονηρά: mau

ἐστιν.: é.

Tradução: Ao invés disso, dizei (digam): se o Senhor quiser tanto viveremos quanto faremos isto ou aquilo. Mas agora vocês se orgulham nas pretensões de vocês; todo orgulho desse tipo é mau.
Comentário: O texto fundamentalmente afirma que o fazer do homem está, não condicionalmente, mas absolutamente sujeito à vontade de Deus. Para trazer uma noção adversa a essa afirmação anterior, o autor simplesmente afirma que " vocês se orgulham nas pretensões de vocês", algo contrário a fazer isso ou aquilo se o Senhor assim quiser (θέλήσῃ). Essa compreensão é importante, pois se o ocorrer ou não depende unicamente de Deus, segue-se de pretender fazer isto ou aquilo sem levar em consideração este fato determinante - a vontade de Deus ser favorável à realização ou não da empreita - é algo mau, pois é orgulho pretencioso, ou vontade diabólica que quer se obrear à vontade de Deus.


Pv 21.31: ס֗וּס מוּכָן לְיֹ֣ום מִלְחָמָ֑ה וְלַֽיהוָ֗ה הַתְּשׁוּעָֽה׃

ס֗וּס (sus): Cavalo

מוּכָן (mucan): o que é treinado
לְיֹ֣ום (leyon): para o dia

מִלְחָמָ֑ה (milhamah): guerra;
וְלַֽיהוָ֗ה (velaYHWaH): (mas) e para YHWH

הַתְּשׁוּעָֽה (hatteshu'ah): a vitória (salvação). Tradução: O cavalo treinado é para o dia da guerra; mas para YHWH é a vitória [mas de YHWH vem a vitória].

Comentário: Aqui falamos de uma dupla conveniência: se para o dia da batalha convém o cavalo treinado, para a conquista da vitória convém o Senhor. Levemos em consideração a estrutura frasal que nos lembra uma sobreposição poética tipicamente hebraica.
Lm 3.37: מִ֣י זֶ֤ה אָמַר֙ וַתֶּ֔הִי אֲדֹנָ֖י לֹ֥א צִוָּֽה׃

מִ֣י: Quem

זֶ֤ה: este
אָמַר֙: diz

וַתֶּ֔הִי: e acontece,
אֲדֹנָ֖י: Senhor

לֹ֥א: não
צִוָּֽה ordena?

Tradução: Quem [é que] diz e isso assim acontece [se] o Senhor não ordena?