quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O Testemunho de Orígenes sobre o Culto Cristão Antigo no Livro "Contra Celso"

    Em seguida ele [Celso o filósofo] declara que evitamos construir altares, estátuas e templos; pois ele acredita que é palavra de ordem combinada de nossa associação secreta e misteriosa. É ignorar que para nós o coração de cada justo forma o altar de onde sobem na verdade e em espírito, incenso agradável odor, as preces de uma consciência pura. Por isso diz João no Apocalipse: "O incenso que são as orações dos santos" (Ap 5,8), e no Salmista: "Suba minha prece como um incenso em tua presença" (Sl 140,2). 
   As estátuas, as oferendas agradáveis a Deus não são obras de artesãos vulgares, mas do Lógos de Deus que as delineia e forma em nós. São as virtudes, imitações do "Primogênito de Toda Criatura", no qual estão os modelos da justiça, da temperança, da força, da sabedoria, da piedade e das demais virtudes. Por tanto, todos os que, segundo o Divino Logos, edificaram em si mesmos a temperança, a justiça, a força, a sabedoria, a piedade, e as obras-primas das demais virtudes, trazem em si mesmos estátuas. É por meio delas, como sabemos, que convém honrar o protótipo de todas as estátuas, a "Imagem do Deus invisível" (Cl 1,15), o Deus Filho Único. Além disso, os que se despojaram do "homem velho com as suas práticas e se revestiram do novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador" (Cl 3.9,10) recuperando continuamente a imagem do criador, edificam em si mesmos estátuas dele, assim como o Deus supremo deseja*.
___________________________________________________
*]Orígenes - Contra Celso, Paulus. p. 623

Agostinho e a Entrega do Coração como Graça e não como Obra do Livre-Arbítrio

    Pelágio prossegue e diz no livro antes citado: "Aquele que faz bom uso da liberdade, entregar-se totalmente a Deus, mortificando sua vontade de modo que pode dizer com o apóstolo: 'Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim' (GL 2,20); e deposita seu coração nas mãos de Deus para que ele 'o incline para qualquer parte que ele quiser' (Pr 21,1)".
   É grande ajuda da graça divina, sem dúvida, que ele incline o nosso coração para onde quiser. Mas essa grande ajuda nós a merecemos, conforme ele disse na sua loucura, quando, sem outra ajuda, que a do livre-arbítrio, corremos para o Senhor, desejamos ser dirigidos por ele, submetemos nossa vontade à dele e, aderindo-lhe constantemente, constituímos com ele um só espírito. E Ester bens tão extraordinários, segundo ele [Pelágio], nós os conseguimos somente pela liberdade do arbítrio. E assim, com estes méritos precedentes, conseguimos que ele incline nosso coração para onde quiser.
   E como pode chamar-se graça, se não é dada de graça? Como pode chamar-se graça, se é pagamento do que é devido? Como dizer que é verdade o que diz o apóstolo: 'E isso não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se encha de orgulho'? (Ef 2,8-9). E novamente: 'E se é por graça, não é pelas obras ; do contrário, não é mais graça'? (Rm 11,6).

Santo Agostinho. Graça (I). A Graça de Cristo e o Pecado Original. p. 237, 238

A Graça de Cristo

   Desse modo, fica bem clara a afirmação de Pelágio concernente à doação da graça de acordo com os méritos, qualquer que seja o significado que lhe dê, embora não se expresse com clareza. Pois, ao dizer que hão de ser recompensados os que fazem bom uso da liberdade e, por isso, merecem a graça do Senhor, confessa ser ela (a graça) pagamento de dívida.
   Nesse caso, onde fica o dizer do Apóstolo: 'E são justificados gratuitamente por sua graça?' (Rm 3,24). E esta outra sentença: 'Pela graça fostes salvos'? E para não se pensar (ser salvo) pelas obras, acrescentou: 'Por meio da fé'. Evitando que se pense numa atribuição da própria fé sem a graça de Deus, diz: 'E isso não vem de vós, é dom de Deus' (Ef 2,8). Assim, o que marca o início de tudo o que dissemos receber por merecimentos, recebemos (a graça) sem eles, ou seja, recebemos pela fé.
   E se alguém negar que nos é outorgada (ou que nos é dada como direito), o que significa o que foi dito: 'De acordo com a medida da fé que Deus dispensou a cada um'? (Rm 12,3). E se alguém disser que é retribuição pelos merecimentos, então não é dada. O que significa o que diz novamente: 'Pois vos foi concedida, em relação a Cristo, a graça de não só crerdes nele, mas também por ele sofrerdes'? (Fl 1,29). Testemunhou que ambas as coisas foram concedidas: o crer em Cristo e o parecer por Cristo. Os pelagianos, no entanto, atribuem a fé ao livre-arbítrio em tais termos que a fé parece ser uma graça devida, e não um dom gratuito. Assim não é graça, nem gratuita; não é graça.

Santo Agostinho - A Graça de Cristo e o Pecado Original. Ed. Paulus, p. 246,247

A Condenação, a Razão, o Arrependimento e o Amor

   A operação racional que tem por conteúdo o dogma cristão do inferno não é tarefa para incapazes. Somente uma mente imparcial capaz de refletir sobre a justiça ela mesma, e que é apta a se colocar sob o julgo desse mesmo juízo, é capaz de entender a racionalidade e a necessidade da existência do dogma.
   Não se trata, antes de tudo, de mandar o outro ou quem quer que seja para lá - coisa que nenhum cristão sério faz -, mas se trata, antes, da abertura da consciência daquele que assim reflete, diante da verdade da justiça ela mesma, para a possibilidade de que ele mesmo vá para lá. É o que o cristão individualmente DEVE fazer em TODO ato de análise da consciência, não sendo outro o fundamento próprio de TODO arrependimento verdadeiro.
   Quem nega a justiça eterna, nega também o juízo e a necessidade própria de arrependimento dos pecados, negando a própria existência de uma justiça a castigar os maus e a recompensar os bons - o que Kant mesmo dizia ser um postulado da moralidade. É isso mesmo que os liberais fazem quando, ao mesmo tempo que negam a existência do inferno, justificam toda perversidade e pecado (ainda que a discordância em relação ao pensamento deles seja um pecado imperdoável).
   Enfim, todo amor de fato é fundamentado no juízo (como diz o provérbio, não devemos ser a mula para quem não existe razão), pois tendo em vista este mesmo juízo, aqueles que amam tentam desviar os que erram do caminho da morte certa (que é o salário do pecado). É como diz o adágio: "quem avisa amigo é", e só pode avisar quem possui antevisão da desgraça que se abate sobre aqueles que estão em flagrante oposição à vontade de Deus. Aqui está a essência de TODA profecia cristã e bíblica.

terça-feira, 2 de outubro de 2018

Protestantismo e Democracia

   Uma das obsessões de gente que se acha mais iluminada do que o resto das pessoas está em buscar motivos para controlar a sua vida. Veja a quantidade de intelectuais que detesta a democracia justamente porque acha que em suas cabeças se encontra o melhor dos mundos: Marx, Trotsky, uma parcela de intelectuais católicos radicais, Iluministas, e mesmo alguns filósofos ilustres como Platão.
   Ainda que alguns estivessem certos sobre os diagnósticos que deram sobre a "doença das massas", sobre empobrecimento inevitável em que cai o pensamento quando ele se transforma em clichê público, ou quando jargões substituem a investigação racional da realidade, ou ainda quando a opinião substitui o conhecimento, ou quando dizem que determinadas estruturas sociais dificultam a aquisição do conhecimento verdadeiro, eles erram quando superestimam o próprio conhecimento da realidade, ignorando a sabedoria prática espalhada na população, que em média é infinitamente maior do que a quantidade de informação de que é capaz um só homem ou uma classe de filósofos.
   Foi nessa desconfiança da sabedoria prática espalhada entre a população que surgiram, no período do chamado "iluminismo francês", os planejadores centrais da sociedade, tanto no que diz respeito ao plano econômico, quanto no plano educacional. E dessa miséria padecemos ainda hoje em nossa estrutura de Estado.
   Ainda que todo mal se diga sobre o protestantismo, ele é o responsável pela devolução da liberdade pública, com o critério básico de que houvesse uma fé para tornar consciente a massa de sua responsabilidade moral. Não é por acaso que na era das revoluções, o metodismo de John Wesley criou uma espiritualidade de massa na Inglaterra - com influências na América - que impediu a revolta que engoliu a França com a Revolução levada a cabo por abstrações de intelectuais fanáticos.
   A desconfiança protestante - em especial nas sociedades influenciadas pela teologia calvinista - contra o poder concentrado tem uma razão: a fé no pecado e um ceticismo antropológico que abomina qualquer concentração absoluta de poder no homem que "bebe a iniquidade como a água" (Jó 15.16).
   Não é estranho que a própria constituição dos EUA - um milagre da graça comum - tenha surgido com todas as defesas possíveis contra a concentração absoluta de poder; e não é impossível compreender, apesar dos olavismos da vida, que o ambiente do próprio protestantismo tenha fomentado essa defesa contra a tirania, seja contra a igreja única, seja contra o Estado único, ou contra o empresário único.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Deus entre a Razão e a Vontade

   O pensamento teológico ou filosófico a respeito de Deus ao longo da história da Igreja se debateu entre os polos "razão e vontade", ou "forma e dinâmica". Não foram poucos os que sacrificaram um em nome do outro. Ou a Razão prevaleceu sobre a Vontade (Aquino); Ou a Vontade prevaleceu sobre a Razão (Duns Scotus).
Aqueles que enfatizam a prevalência da razão ou da forma na natureza divina geralmente o fazem por tentarem livrar da nossa ideia de Deus o monstro da arbitrariedade: Deus age de tal forma clara e inequívoca que o faz longe de qualquer possibilidade de contradição consigo mesmo. A compatibilidade de Deus com a razão concede à razão humana a possibilidade de conhecimento da natureza de Deus de forma autônoma... Contudo Deus assim considerado tem a sua vontade sacrificada, ficando ele devedor de uma determinada natureza, possibilitando até a ideia de uma "eternidade do mundo". Aqui Deus é reduzido a uma lei.
Mas aqueles que enfatizam a Vontade em Deus buscam preservar a sua soberania: Deus não é devedor de uma natureza, e por exemplo: Deus não criou o mundo porque em si ele o considerou "o melhor dos mundos", fazendo-o a partir de uma condição lógica pretérita, antes o mundo é bom porque Deus o criou como criou. Essa ênfase da liberdade absoluta de Deus o deixa livre de qualquer natureza, destacando uma realidade dinâmica no fundamento do ser; contudo algo terrível dorme aí: Deus poderia subverter a totalidade da criação, sendo "potestas absoluta" (Autoridade Absoluta - como afirmou Ockam), o que poderia desembocar em arbitrariedade totalitária.
Foi com esse dualismo no interior do pensamento cristão que se esgotou a teologia da Idade Média, estando todos nós, ainda hoje, no interior desse dualismo. E na força da secularização tal dualismo acabou impulsionando outros dualismos , entre os quais e ênfase do "racionalismo iluminista" e do "historicismo irracionalista".
Mas não seria o pensamento cristão a afirmação da unidade entre essas hipóstases polares, ou a possibilidade de transcender esses reducionismos, afirmando tanto a razão quanto a vontade, ou a dinâmica quanto a forma, não sacrificando uma esfera de realidade sobre a outra, mas harmonizando plenamente uma e outra?

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Kierkegaard, o Hábito e a Eternidade

   O hábito é a mais triste das mudanças, e por outro lado com qualquer mudança a gente pode habituar-se; é só o eterno, e por tanto aquilo que se submeteu à transformação da eternidade em se transformando em dever, constitui o imutável, mas o imutável justamente não pode transformar-se em hábito. Por mais firmemente que um hábito se estabeleça, jamais se torna imutável, mesmo se o homem se tornasse incorrigível; pois o hábito é sempre aquilo que 'deveria ser modificado', e o imutável, ao contrário, é aquilo que 'nem pode e nem deve ser modificado'. Mas o eterno jamais envelhece e jamais se torna um hábito rotineiro.

S. A. Kierkegaard - As Obras do Amor; ed. Vozes. p. 55

Fascismo Cult e o Culto da Barbárie

   Antes de falar de fascismo algumas pessoas deveria pegar um livro. Dizer que o fascismo é caracterizado pelo "pensamento retrógrado" é uma asneira mal explicada. A década de 20 e 30 do século passado sofreu um surto fascista depois da desestabilização das potências européias após a Primeira Guerra.
   Mas o fascismo, ao contrário do que se pensa, era um movimento cult celebrado pelo "beautifull people" enfileirado entre artistas, intelectuais e poetas influentes, como no caso de Bernard Shaw. Na vanguarda do movimento fascista estavam a escola futurista e também o movimento da arquitetura moderna brutalista liderada por gente como Le Corbusier (um antissemita fanático que desejava destruir o centro parisiense com sua arquitetura antiga e não funcional e adaptá-la aos novos tempos com auto-estradas gigantes e prédios quadrados e sem personalidade feitos de concreto, ferro e vidro).
   Havia também a tara iluminista pelo planejamento central da economia liderada por intelectuais, o que tinha um apelo enorme entre os ilustrados marxistas e socialistas, os mesmos que desdenhavam de forma cínica da sabedoria prática dispersa entre a população - como faz a massa de jornalistas lotada nas redações de jornais influentes no Brasil.
   Havia também como característica marcante dos movimentos de vanguarda o desprezo pelo senso comum e pela democracia representativa. Bernard Shaw, o poeta britânico badalado na Europa, dizia que tirava sua férias tranquilo na África sabendo que Hitler deixou as coisas bem assentadas na Europa, desdenhando ao mesmo tempo do medo dos ingleses e americanos dos modelos ditatoriais, pois preferiam, nas palavras de Bernard Shaw, a bagunça dos modelos representativos de governo.
Mas não que o modelo fascista não fosse reacionário. Antes ele rejeitou a alta diferenciação conquistada pelo desenvolvimento histórico do mundo Ocidental, voltando a modelos que tendiam a absolutizar determinados aspectos da realidade: o tribalismo no caso do nazismo e a centralização absolutista naquela espécie de "pater familias" romano que foi o Dulce italiano (Musolini).
   Mas quem disse que o cheiro de tribalismo bárbaro não está ao redor da "gente moderna"? Quem não conhece o apelo naturalista da nossa sociedade contemporânea refletido em movimentos que pregam o "equilíbrio com a natureza", o "fim do consumo de carne animal", o "culto às energias", a divinização do sexo como algo a ser praticado indiscriminadamente sem qualquer resquício de culpa, a naturalização do consumo das drogas etc?
   E quem duvida que essa gente, libérrima em seus costumes e ao mesmo tempo autoritária nas suas ideias, não sejam intelectuais descolados e divertidos que de forma inconsequente pregam um mundo que, depois de construído, se recusarão a reconhecer como obra de suas mãos? Esses, por causa de um coração insano, são os adoráveis reacionários da história.

PS: É amplamente conhecido que Mussolini foi o primeiro "sex symbol" do Ocidente. E quando eu vejo a Márcio Tiburi dizendo que qualquer mulher "quer" o Lula, eu vejo algumas similaridades entre uma intoxicação política e outra... E a similaridade mais gritante ainda se dá pelo fato de que a feiúra ali nos dois é um negócio presente demais para se deixar enganar, sendo apenas a força do fanatismo algo suficiente para fazer sentir o contrário disso. Para essa gente até o universo estético passa pelo filtro político.

Tomás de Aquino e a "Autonomia da Razão"

   A pretensa defesa da "razão autônoma", deixada a si mesma para buscar a verdade acessível pela "razão natural", feita por Tomás de Aquino ocultou a verdade de que todo o pensamento humano é guiado por um motivo básico religioso.
   Isso ocultou do Ocidente, por exemplo, os motivos pagãos do moderno naturalismo cientificista e humanismo que se desenvolveram de forma "autônoma", ou melhor: se desenvolveram ao destacar uma esfera da realidade "natural" para seguir o seu caminho independente até extrapolarem o seu raio de influência para outras esferas onde não eram competentes, como a esfera da fé.
   A razão disso está na subdivisão "natureza e graça" advogada por Aquino e na desconsideração da corrupção total a que fica sujeita a natureza humana quando afastada da sua raiz transcendente, e a ausência da percepção de que um motivo básico religioso grego/pagão está acomodado a um motivo religioso cristão em sua teologia, motivos esses que são absolutamente irreconciliáveis.

A Justificação pela Graça, Mediante a Fé, X A Ideia de Natureza e Sobrenatureza

   A Reforma, com a sua ênfase na "justificação pela fé", contestou a ideia escolástica da distinção entre "natureza e sobrenatureza" (ou natureza e graça). Nessa ideia escolástica a "autonomia da razão" desempenhava um papel preparatório para a recepção da graça por meio de determinadas disciplinas (a preambula fidei). Nesse sentido a natureza deveria estar previamente apta para que pudesse receber a iluminação e a graça do Espírito Santo; por tanto a recepção do Espírito deveria, na esfera temporal, ser precedida pelo reto ajuste da alma através das obras. Contudo essa pré-paração contrasta radicalmente com o sentido bíblico da graça que afirma que é Deus quem opera em nós tanto o querer como o efetuar (Fl 2.13). Não há "preparação natural para a recepção da graça", pois a graça ou vem ou não vem, e pode vir em nosso pior estado, como foi o caso do Apóstolo Paulo que recebeu a visitação de Jesus "ainda respirando ares de morte contra a Igreja". E isso nos livra da ideia farisaica dos "aptos", pois a moralidade bíblica é explicita em relação aos agraciados: "as prostitutas e os publicanos vos antecedem no reino de Deus"; e sabemos que ao inclinar os nossos corações para o arrependimento Deus nos conduz, pela graça, a despeito do nosso estado, a uma relação ordenada para com ele. Nesse sentido, na compreensão da Reforma, não é a obra que nos conduz à graça, mas é a graça que nos conduz às obras (Ef 2.10).

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

A Grandeza da Filosofia Reformacional de H. Dooyeweerd

   A leitura do filósofo reformado H. Dooyeweerd foi a mais profícua que fiz este ano, mais do que a leitura de "A Era Ecumênica" do Eric Voegelin, que nem por isso deixou de ser notória na intuição básica de que as deformações do pensamento teorético e político tem uma raiz no desespero que, consequentemente, desemboca em uma vontade satânica de domínio sobre a própria realidade.
   Contudo a ideia desenvolvida por Dooyeweerd da "soberania das esferas" é uma coisa de gênio, e, ao meu ver, a única compreensão possível da estrutura da realidade para um cristão.
  Basicamente ele afirma que o pensamento apóstata e desligado da sua raiz espiritual transcendente tende a destacar uma aspecto da realidade e divinizá-lo. O motivo básico do pensamento grego, por exemplo, é fundado no dualismo "matéria e forma", sendo a matéria regida pelo princípio da "Anake" (o destino cego e irracional da matéria) e a forma pela razão teorética ou contemplativa (representada pela religião apolínea da cultura e das formas racionais que domam o caos disforme).
   Por causa desse dualismo a religião grega não consegue afirmar uma raiz espiritual transcendente da totalidade da realidade, como o faz o cristianismo, o que por sua vez desemboca em uma base de motivos irreconciliáveis, tal como pode ser visto nas tragédias gregas, onde o heroísmo trágico não é capaz de sobrepujar a necessidade, sendo esmagado nas mãos da Moira (o destino).
   O cristianismo não parte desse dualismo, mas enxerga uma unidade original na totalidade da criação, já que tudo o que veio a ser veio a ser pela vontade de Deus, incluindo a matéria e a forma. Isso de cara não parece implicar muita coisa, mas os motivos básicos da religião grega, por exemplo, não permitiam enxergar todos os seres humanos como seres humanos, já que aqueles que não participassem da forma racional do estado estavam entregue ao destino disforme e cego da necessidade, o que implicava que aqueles que não estavam ligados à pólis não diferiam dos animais.
   A religião grega, ao destacar um aspecto da realidade e absolutizá-lo fazia com que a humanidade fosse descaracterizada, acabando também como consequência por gerar um estado totalitário. Da mesma forma o romantismo alemão, ao enfatizar o aspecto do sentimento e as forças vitais e dinâmicas da história como reação ao racionalismo abstrato do iluminismo, acabou por absolutizar o aspecto irracional, o histórico e o "destino do povo", de maneira que isso também contribuiu indiretamente para a ascensão de um movimento brutal e vitalista que acabou fundamentando o nacional-socialismo.
   Contudo já não é assim com a visão bíblica da raiz transcendente da criação em Cristo, onde todas as esferas que compõem o todo da realidade são afirmadas em suas características próprias de forma soberana. Tanto a esfera da Igreja, como a do Estado, a da Arte, a Família, a Biologia, a Física, a Matemática, a Simbólica, a Legal são afirmadas em si mesmas, existindo em harmonia umas com as outras e encontrado a sua raiz comum e transcendente como Criação em Cristo.
   Uma das consequências diretas desse pensamento é que uma esfera da realidade não é afirmada em prejuízo da outra e nem um aspecto é destacado e divinizado como o foi a razão para o iluminismo, a alma racional para o pensamento grego, nem o sentimento como o foi para o romantismo, a história para o historicismo, nem a realidade material fenomênica como foi para os positivistas e nem as relações econômicas como foi para os marxistas.
   Todas essas escolas se ajoelham diante de uma abstração ou divinizam de forma idólatra um aspecto da realidade. Para o pensamento cristão isso é impossível, já que Cristo é a raiz transcendente da totalidade dos aspectos da realidade. Isso se traduz em vários mecanismos de defesa e implica várias consequências para a liberdade e consciência humanas. Essa é a grandeza da compreensão da realidade da filosofia cristã de H. Dooyeweerd.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

O Cristianismo Primitivo, o Aborto e o Testemunho de Atenágoras de Atenas


   De fato, os que sabem que não suportamos ver uma execução com justiça, como vão nos acusar de matar e comer homens [e aqui está a acusação antiga de que os cristãos eram antropófagos por causa da Ceia]? Quem de vós não se entusiasma em ver os espetáculos de gladiadores ou de feras, principalmente os que são organizados por vós? Nós, porém, que consideramos que ver matar está próximo de matar, nos abastemos de tais espetáculos. Por tanto, como podemos matar os que não queremos sequer ver para não contrair mancha ou impureza em nós? AFIRMAMOS QUE AS MULHERES QUE TENTAM O ABORTO COMETEM HOMICÍDIO E TERÃO QUE DAR CONTAS A DEUS POR ELE; então, porque iríamos matar alguém? Não se pode pensar que aquele que a mulher leva no ventre é vivente e objeto, consequentemente, da providência de Deus e em seguida matar aquele que já tem anos de vida; não expor o nascido, crendo que expor os filhos equivale a matá-los, e tirar a vida ao que já foi criado. Não! Nós somos em tudo e sempre iguais e concordes com nós mesmos, pois servimos à razão e não a violentamos.*

*Atenágoras de Atenas - Padres Apologistas - Coleção Patrísticas, Paulus. p. 163

terça-feira, 21 de agosto de 2018

A Solidariedade, o Marxismo e os Loucos da Cabeça

   A solidariedade só existe a partir de um princípio espiritual ou metafísico que ilumina, eternamente acima de nós, o nosso juízo para distinguirmos, por um lado, a nobreza de uma ação ou, por outro lado, a vileza ou fealdade dela. Nem o costume e nem a matéria explicam em si o que é o bem ou o mal.
   É justamente neste ponto em que a solidariedade se torna um valor impossível na teoria marxista, já que essa é materialista e compreende os valores apenas como epifenômenos da organização material.
   Sem exageros, a visão de Marx é biótica e é isso que faz com que a revolução não seja um ato de justiça, mas um contra movimento que visa, literalmente, a homeostase, tal como os movimentos revoltos da água visam, ao fim da sua desestabilidade, o repouso.
   É aqui que está focada a noção desse igualitarismo que acaba com todo o conceito de justiça ou solidariedade, que são possibilidades do espírito e de um agente livre, mas não do reino da necessidade que impera de forma despótica sobre a natureza..
   Por tanto, quem aplica o conceito de solidariedade e justiça à teoria de Marx só pode estar louco da cabeça. E é justamente isso que ele afirma quando diz que um dos intuitos do movimento comunista é destruir as verdades eternas.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Hookmaker e a Fé como Realidade Totalizante do Homem

   Quando uma pessoa se arrepende, se volta para o Deus vivo e nasce de novo, isso não pode nem deve ser um acontecimento abstrato cujo significado restringe-se apenas à sua vida emocional e devocional. Não, a nova pessoa, nascida de novo, permanece neste mundo. Torna-se agora um ramo da oliveira (Rm 11.7), um membro do corpo do qual Cristo é o cabeça (I Co 12.12 ss), e este ramo deve dar fruto (Jo 15.15). Deus toma posse da pessoa no cerne da sua existência, da sua personalidade. Não é meramente uma parte da humanidade da pessoa que se converte, não é só uma alma e a função pística [função da fé] considerada à parte do restante, mas a pessoa inteira, de carne e osso, que crê, que sente, que ama, que pensa, que fala e julga as coisas belas ou feias. A pessoa nascida de novo torna-se serva, escrava do Senhor em todas as áreas da vida, com todos os talentos e com todo potencial que o Senhor lhe deu.
HANS R. HOOKMAAKER - Filosofia e Estética. p. 19

domingo, 29 de julho de 2018

O Preço do Combustível e a Bandeira Solitária da Economia na Crise da Província

   No Brasil a ciência da Economia é uma voz que clama no deserto. Tal como o neonato de Freud cuja mãe é a única totalidade na qual se encontra imerso, o brasileiro em seu presente estado político não desenvolvido ainda acha que governo e economia são uma coisa só. Mas a realidade estrutural do país ajuda nesse equívoco com o seu acúmulo de "serviços".
   O mal de uma estatal como a Petrobrás é justamente a degeneração da percepção da realidade por parte das pessoas que vivem sob sua sombra, ou sob a sua totalidade. Isso também revela, ainda que as avessas, a arraigada mentalidade paternalista de gente que acredita que tudo pode vir do governo - desde os males até a redenção salvadora.
   Se não houvesse a Petrobrás como estatal em que os políticos poderiam atuar sobre ela com o dirigismo de preço (como a Dilma fez, levando o país para a sua maior recessão já registrada), veríamos as coisas de forma diferenciada, entendendo que o mercado tem leis próprias e que os produtos devem se adequar a elas, sendo refratário à ação de governos que desejam criar magicamente os preços - como bem se evidenciou na crise gerada pela Dilma.
   Agora que a política de preços da empresa segue o padrão dos preços internacionais - o que está correto -, as pessoas se equivocam achando que a alto preço do combustível é algo derivado das "falcatruas do governo", como se por mágica o governo pudesse remediar todas as situações pela simples vontade política - segurando o mar da realidade em suas mãos, como o bebê freudiano exige que sua mãe faça.
   O aumento do preço dos combustíveis por causa do rompimento por parte de Trump do acordo com o Iran e a crise na Venezuela são fatores externos que auxiliam no aumento dos preços. Se, por exemplo, o Iran deixa de vender petróleo, o aumento do preço será instantâneo pela variação da realidade da oferta e procura. Com menos produtos disponíveis em meio a uma demanda alta por eles, o preço subirá.
   Nem tudo é simplesmente política local e o fato de reduzir tudo à "vontade política" do governo (como se ele tivesse a fórmula da salvação) é o sintoma de uma patologia profunda gerada pela incapacidade de realizar um leitura adequada e abrangente da realidade.
   Por isso esse provincianismo de pensamento, aliado com a presente fúria justiceira a aos demagogos oportunistas, se não remediado, ainda irá acabar com todos nós.

A Degeneração Moral e a Destruição do Entendimento

   Quando as palavras e o raciocínio faltam o que resta é apelar para caretas, bufos e indignação afetada. Esse é o modo costumeiro de persuasão do incapaz, mas também é o resultado da degeneração moral e da destruição da educação.
   Quem teve, por motivos vários, a inteligência destruída, não consegue ir além de jargões, frases de efeito, imagens e figuras mentais, e apreender a unidade de sentido dos seus respectivos conteúdos, se perdendo em uma pasta mental de confusões e angústias geradas pela incapacidade de por em palavras aquilo que se percebe pelos sentidos.
   Uma das razões pelas quais a educação e a leitura são fundamentais é justamente o seu potencial de destravar a língua e de potencializar a imaginação, o que torna possível colocar em palavras os pensamentos mais abstratos e as experiências mais sutis.
   Contudo esse é um caminho fechado para um povo acostumado à fúria como método de persuasão, com a embriaguez, com a sensualização excessiva, e comportamento malicioso.
   Esse é o sentido da mensagem bíblica no livro dos Provérbios que afirma que ao degenerado é impossível o alcance do entendimento.

Consciência e Verdade

   Existe uma coisa particular que se estabeleceu como lei na cabeça de gente que se fez em um ambiente universitário e que por isso anda numa onda incapacitante meio existencialista e meio niilista. Essa coisa é a descrença na ideia da existência de fatos e a crença em narrativa. Tudo isso deriva do vício presente na metodologia de pesquisa acadêmica hegemônica onde vigora a distinção entre fatos e valores e a crença historicista de que a "verdade" pertence a cada estrutura do tempo histórico do qual emerge.
   Não é por acaso que pessoas assim se escandalizam diante da reivindicação de um juízo de fato com pretensões absolutas de verdade. O que pode parecer uma atitude mística de humildade diante do inabarcável é, na verdade, a abdicação do testemunho da consciência como um tribunal que se percebe como o órgão participante na realidade do ser, e como essa parcela do ser que capta, pela consciência, a luminosidade da sua própria verdade.
   O choque escandalizado pode vir em forma de protestos contra o "narcisismo" de sua atitude, o "totalitarismo" da sua reivindicação e a "soberba pretensiosa" da sua forma de pensar. Contudo, ao mesmo tempo, o problema do autoritarismo não desaparece diante dessa atitude intelectualmente niilista de quem tira do seu próximo o poder de afirmar o que viu com os seus próprios e testemunhou com a própria consciência.

Golpe Militar

   Ainda que possamos nos solidarizar com o sentimento de insatisfação geral e clamor por justiça - e isso é o máximo que podemos conceder -, não dá para deixar de fazer a constatação de que o pessoal que está pedindo intervenção militar está, nesse assunto, com a cabeça literalmente na lua.
   O Brasil não é uma ilha para viver, mais uma vez, e de forma fácil, um golpe militar. Temos acordos jurídicos estabelecidos mundo afora, acordos comerciais e por isso não estaríamos isentos de embargos na área econômica por parte de países importantes. Isso significa desemprego, perda de benefícios sociais por causa da queda de arrecadação de impostos, prejuízos na saúde etc.
   Aqueles que deitam os cabelos e que estão surtados na choradeira de aumento de preços nem imaginam o que seria um país sem estabilidade jurídica e política. Corte em exportação, perda de parceiros comerciais e aumento de preços, certamente, seriam parte da crise.
   Por outra, não estamos na década de 60 onde a informação corria à velocidade de tartaruga, onde a grande parcela da sociedade nem tinha acesso à comunicação telefônica. As pessoas mal se comunicavam por cartas e hoje temos mais celular do que gente no Brasil.
   Como um governo assim iria quebrar o fluxo de informações sem prejudicar o comércio, por exemplo? Aqueles que ficam dando provas de seus delírios na internet criticando a política teriam, por falta da liberdade de criticar o governo, que se recolher aos seus aposentos para secretamente dar uma babada afim de obter alívio para a crise de abstinência.
   Queridos, se estou sendo ácido nos meus comentários, não se esqueçam de que há outros que estão sendo loucos.
   É claro que vivemos em tempos de crise, e como disse, eu me solidarizo com todos vocês. Mas isso não significa que a raiva seja a boa solução somente por que conduzida na crista de determinados desejos pesados de justiça. Não!
   É como disse um certo autor: "O caminho para o inferno é pavimentado pelas boas intenções".

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Judas

   Quando a voz da profecia deixa de ser o critério de juízo que guia a Igreja, a moral do presente século passa a ser o substituto necessário da voz de Deus. Quem busca obedecer a Voz do Alto deve estar preparado para demolir em si ou fora de si toda a crença vã, toda a vaidade e fingimento e disposto a se contrapor radicalmente ao espírito do presente mundo.

   Ao contrário disso, vemos gente transformando a palavra divina em clichê, e convencido de agir em nome do "amor", da "liberdade", da "pluralidade", estão na verdade de joelhos dobrados diante de uma imagem de Baal.
   Esses são os profetas de corte desse século, pois ao invés da fidelidade ao seu Deus, decidiram se aliançar com as conveniências desse mundo, mimetizando bons sentimentos enquanto na verdade agem na base do fingimento, desejando ser queridos e amados, nem que para isso seja necessário prostituir a própria consciência e apontar como criminosos seus próprios irmãos.
   O Judas desse tempo ainda cumpre o mesmo expediente: vende Jesus por algumas moedinhas de prata, trocando a eternidade com o Seu Senhor por uma pequena hora de gozo e glória enquanto trilha o caminho em direção à sua própria destruição.

Heidegger e Hitler, o Homem Incapaz

   Segundo Mark Lilla, essas foram as perguntas que K. Jaspers fez a Heidegger, a estrela filosófica que brilhava no céu da cultura alemã do seu tempo, sobre o seu apoio a Hittler.
   Quando foi interpelado por Jaspers sobre o antissemitismo, essa foi a resposta:
   Heidegger: "Mas existe uma perigosa rede internacional de judeus".
   Já com relação à capacidade de governar, o que vai a baixo ilumina todo um horizonte de questões.
   Jaspers: "Como pode um homem sem cultivo como Adolf Hitler governar a Alemanha?"
   Heiddegger: "A cultura não importa. Simplesmente veja suas maravilhosas mãos".
   
   Mark Lilla - A Mente Imprudente

   OBS: Para quem sabe ler e entender, o significado desse trecho é quase oracular.

Heidegger, o Romantismo e o Desespero

   Incrivelmente Heidegger também foi contra o mundo moderno, e contra a mortificação gerada pelas máquinas, pela indústria, pela política "burguesa", e pelo modo vazio da vida moderna, ou seja: Heidegger era uma alma romântica encantada pela vida prosaica do campo e aterrorizado com um mundo que escapava de suas mãos.
   À decepção de sua alma com o mundo corresponde a sua atitude de vislumbre da possibilidade de cura do mesmo na emergência de um novo "Ser" na história, ou um reatamento ao "Ser", e nisso ele aderiu ao nazismo que prometia um retorno radical à essência espiritual do homem, oferecendo uma barreira contra a degradação da democracia e da cultura de massas.
   Sua mente ditatorial e radical que oscilava entre a concepções de grandeza e de desespero acabou por aderir a uma proposta também radical, onde a possibilidade de cura da "degeneração do mundo" lhe foi plausível. Seu desespero também explica o seu romantismo e a busca de uma síntese totalizante que vai do espírito à política.
   Heidegger não é o primeiro curandeiro totalitário da realidade e infelizmente também não será o último.

O Deus Totalmente Outro

   Todas as divindades que ficam aquém da linha divisória estabelecida pela ressurreição, que moram em templos feitos e servidos por mãos humanas, todas as divindades que "necessitam de algo", i. e., do ser humano que julga conhecê-las (At 17.24,25), não são Deus. Deus é o Deus desconhecido. Como tal ele dá vida, alento e tudo a todos. E assim seu poder não é nem poder da natureza, nem da alma, nem qualquer um dos poderes maiores ou extremos dos quais temos ou possivelmente poderíamos ter conhecimento, nem seu poder supremo, nem sua soma, nem sua origem, mas a crise de todos os poderes, o totalmente outro, comparado ao qual eles são algo e nada, nada e algo, aquilo que os move em primeiro lugar e o seu último repouso, a origem que a todos eles revoga e o objetivo que a todos fundamenta. O poder de Deus não se encontra de forma pura e superior ao lado nem ("supranatural") sobre, mas além de todas a forças condicionadas e condicionantes, não devendo ser confundido ou alinhado, mas só ser comparado a elas com extrema precaução. A força de Deus, a investidura de Jesus como Cristo, é, em sentido estrito, pré-suposto, livre de todo conteúdo acessível. Ela ocorre no Espírito e quer ser reconhecida no Espírito. Ela é autosuficiente, não condicionada e verdadeira em si. Ela é o novo por excelência, que se torna fator decisivo e de mudança na reflexão do ser humano sobre Deus.

Karl Barth - Carta aos Romanos; Sinodal. p. 80.

A Pregação e o Desejo pela Realidade Eterna


   Não dêem ouvidos aos medrosos que que em meio a lamentações nos admoestam a que não tornemos séria a situação, que não passemos de repente a utilizar balas, ao invés de só dar tiros com pólvora seca! Esta não é a voz da igreja de Deus, a que ali se faz ouvir! A seriedade da situação entre nós está em que as pessoas querem ouvir a palavra, ou seja: a resposta à pergunta, se é verdade, a qual está movendo, quer saibam, quer não. A situação no domingo pela manhã (no culto) é, no sentido mais literal da palavra, histórico-final, escatológica, também sob a perspectiva das pessoas (...); isto é, quando surge esta situação, a história, a história no mais está no fim, passando ser decisivo um anseio último da pessoa por um evento último. Se não compreendermos esta aspiração última, se não levarmos a sério as pessoas na existência aflitiva que as trouxe até nós (...), nós não devemos nos surpreender que a sua maioria, sem que se transformem em inimigos da igreja, aos poucos vai deixando a igreja de lado, vai nos deixando sozinhos como aqueles bem-intencionados e medrosos.
Karl Barth - A Palavra de Deus como Encargo da Teologia - Dádiva e Louvor. p. 53

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Instituições, Leis, os Votos, o Matrimônio e o Princípio

   O princípio é este: em tudo o que é digno de ter - mesmo nos prazeres todos - há uma porção de prazer e tédio que deve ser preservada afim de que o prazer possa renascer e perdurar. A alegria da batalha vem depois do primeiro medo da morte; a alegria de ler Virgílio vem depois do enfado de tê-lo estudado; o entusiasmo do banhista vem depois do choque inicial em face da gelada água do mar; Todos os votos, leis e contratos humanos são maneiras de sobreviver com sucesso a esse ponto de ruptura, a esse instante de rendição potencial.
   Em tudo o que vale a pena fazer há um estágio em que ninguém o faria exceto por necessidade ou por honra. É então que a instituição sustém o homem e o ajuda a prosseguir sobre um terreno mais firme. Se este sólido fato da natureza humana é suficiente para justificar a dedicação sublime do matrimônio cristão, isso já é outra questão; importa saber que ele é plenamente suficiente para justificar a corrente impressão dos homens de que o matrimônio é algo fixo e sua dissolução é uma falha ou, no mínimo, uma ignomínia.
   O elemento essencial não é tanto a duração quanto a segurança. Duas pessoas devem estar ligadas afim de fazer justiça uma à outra, seja por vinte minutos numa dança ou por vinte anos num casamento. Em ambos os casos é que, se um homem fica entendiado nos primeiros cinco minutos, ele precisa seguir adiante e forçar-se a ser feliz. A coerção é uma espécie de encorajamento, ao passo que a anarquia (e isso alguns chamam de liberdade) é essencialmente sufocante, porque essencialmente desencorajadora.
   Se todos nós flutuássemos no ar como bolhas, livres para vaguear a qualquer lugar a qualquer hora, o resultado prático disso seria que ninguém teria coragem de iniciar uma conversa. Como seria desagradável sussurrar as primeiras palavras de uma frase em tom amigável e então ter de gritar o fim dela porque a pessoa com que se estava conversando afastou-se, flutuando livre no informe éter. Um deve apoiar o outro para fazer justiça um ao outro [...]. Conheci muitos casamentos felizes, mas nunca um compatível. O objetivo do casamento é lutar e sobreviver ao instante em que a compatibilidade mostra-se incontestável. Pois um homem e uma mulher, como tais, são incompatíveis.

terça-feira, 10 de abril de 2018

A Ira Jacobina


   O preconceito do dia é que é imperativo reduzir a pó toda a classe política, exterminá-la de uma vez por todas. O conselho é antigo, e já foi descrito - não incentivado - por Maquiavel no seu " O Príncipe". No livro Maquiavel lembra que Agatócles, que se tornou rei de Siracusa, antes de se tornar governador plenipotenciário, exterminou os mais ricos e os senadores de Siracusa, podendo a partir de então exercer, sem atritos, o seu poder soberano.
   A revolução francesa, conduzida pelos jacobinos, e que se queria libertária, exterminou a aristocracia antiga e a realeza, reduzindo a pó toda possível oposição, deixando a "justa indignação" seguir livre o seu curso para decepar as cabeças (42 mil em dois anos) dos "inimigos do povo", pavimentando o caminho para nada menos do que o terror ditatorial de Napoleão, que, em poucos anos, faria tremer a Europa e o mundo inteiro, sendo contido apenas pelo rigor do inverno russo.
   A ideia de que o pedágio a ser cobrado pelo esmagamento de Lula seja a prisão e condenação de toda a elite política, é um desses preconceitos bem intencionados que serve para pavimentar o caminho até um futuro sombrio. Muita gente assim, no irrefreável desejo de demonstrar isentismo político, nem mesmo deixa para traz a estrutura legal que pode servir de baliza e fundamento para a proteção dos seus próprios direitos. É o vale-tudo do bem.
   Vale lembrar de que na razia institucional, ao se destruir os próprios fundamentos legais em nome da execução da vingança, os próprios vingadores se verão desprotegidos diante de uma futura ameaça. Robespierre, líder da Revolução Francesa, foi guilhotinado no período do terror que ele conduziu e fomentou. É aí também que a sombra napoleônica se projeta sobre o futuro dos próprios revolucionários. É como diz o ditado que caracterizou a ira jacobina e plebeia da Revolução Francesa: "a revolução devora os seus próprios filhos".

sexta-feira, 6 de abril de 2018

A Transgressão da Ordem do Ser

   Platão dizia que o Estado, ou a Pólis, era constituído por uma hierarquia de virtudes que correspondia a uma hierarquia de ocupações no Estado. Aristóteles fez uma divisão entre o bios teorétikos (filósofo da vida contemplativa) e o estadista, que para Platão deveria ser um só: o Rei Filósofo. Como Aristóteles, separei ambos.
   Essa era a ordem: 1°) A sabedoria que corresponde à existência do filósofo que julga o certo e o errado (bios teorétikos), e que contempla a Lei Natural e por isso ele é o professor natural do homem público; 2°) A fronésis ou a prudência que é a virtude do político e do homem de Estado que faz e julga as leis com isonomia, o que corresponde também à lei positivada; 3°) A andreia ou coragem que é uma virtude da classe guerreira e que se institucionaliza nas forças armadas; 4) A moderação que é natural ao homem de negócios e, de resto, à sociedade civil livre e que se mantém livre pela moderação.
   Nesse sentido, a Lei é sim necessária, não sendo o campo de ação de idealistas, mas sim daqueles que devem se servir da prudência, pois quando esta falta o que ocorre é uma fratura da ordem do ser, trazendo a catástrofe para a sociedade como um todo.
   Agir apenas com paixão, coragem e convicção, deixando de lado a moderação, a prudência e a sabedoria, é o que faz a sociedade descarrilar em direção ao caos. Mas hoje o que há é um enxame barulhento e convicto de si mesmo e que confunde o bem com aquilo que eles pensam sobre o bem.

Registro Sobre Tempos Obscuros

   Eu lembro que no ano passado um punhado de direitistas berrou quando os esquerdistas diziam "Diretas Já", pedindo a antecipação das eleições para colocar Lula no páreo. Onde os direiteens se refugiaram, desesperados? Lógico, na Constituição, a mesma que no que diz respeito à antecipação de eleições da forma que os esquerdistas queriam é impassível de emenda ou reforma, ou seja: trata-se de uma cláusula pétrea. Agora que é para jogar Lula no esgoto esse povo quer que se exploda a Constituição e as cláusulas pétreas, inventando para isso as desculpas mais incríveis como a "lei de Deus", ou que "quem faz as lei são os políticos", ou sobre "a lei que não cumpre a função de justiça" e tudo por causa de um homem... São aqueles que glorificam o Lula pelo caminho inverso... e também aqueles que quando a Constituição lhes agrada eles abraçam ela violentamente, mas quando lhes desagrada eles, com a mesma violência, a mandam para a lata do lixo... No fim, são petistas com sinal invertido, esse espírito do Assolador que nos chega através das asas da Abominação Ilógica e oportunista. São pessoas que não vale um jogo de damas, ou um acordo, que estão lá eles, na hora que convém, mudando as leis em favor de si mesmos.
***
   Esse negócio de que a concessão de um HC gerará "mudanças estruturais" no Brasil, soltando pedófilos, traficantes, assassinos etc. é um negócio tão fraudulento e desonesto que tem gente que se esquece (Oh, generosidade!!! Na verdade nem sabem disso) que prisão preventiva de traficantes, pedófilos e notórios assassinos é possível até sem a existência de processos, quanto mais durante os processos. Ora, o Marcelo Odebrecht, que nem condenado foi, ficou mais de UM ANO em prisão preventiva. O Cabral, ex governador do Rio, está PRESO até agora aqui no Paraná sem estar condenado e com processo em andamento. Existem casos e casos, juízes e juízes... Pois então, concessão de HC, que é um instrumento previsto e cabível segundo determinadas condições, não pode alterar a lei - a não ser que você seja um Barroso, o ídolo dos direitistas, que legalizou, contra a lei, o aborto em qualquer circunstância até o terceiro mês - santa e jejuada ironia. Mas como esse julgamento do HC será feito pelo pleno (pelos 11 ministros), então convenhamos que isso seja impossível.
***
   Essa questão do HC, se ela vingar como os direitistas querem, será o fato mais explorado pelas esquerdas no futuro. A história costuma trazer boas vinganças. Esse pessoal da esquerda chamará a coisa de perseguição das elites, perseguição contra os pobres, ou seja: a narrativa perfeita e ainda ancorada em lei... Quem criará o mito não serão os petistas ou a esquerda - na verdade eles foram os que destruíram a imagem do Lula -, quem criará o mito será esse povo que confunde justiça com rancor e com vingança descerebrada. Políticamente falando, Lula e as esquerdas não poderiam, nem nos sonhos mais idílicos, ter inimigos tão bons assim, tão generosos em não entendere práticamente nada do que fazem, trazendo ao Lula e às esquerdas vantagens não sonhadas. Esse é o pessoal que é uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia.
   Mas não sou político, sou só um pastor com a consciência do mal que essa gente justiceira e do bem criará para o futuro
***
   Um dos crimes segundo o direito nazista era a ofensa ao sentimento do povo germânico. Nada de razão, nada de princípios legais fundamentados. Sem exagerar no ponto, essa é uma das possibilidades do direito criativo que a todo momento foi ventilada por Barroso - sentimento de justiça e nada de constitucionalidade. O direito que cedeu ao apelo das ruas é o direito constitucional da gritaria e o direito penal do linchamento. É isso que esse povo histérico quer para esse país. Como diria um jornalista: "a fúria justiceira dos bons é tão perniciosa quanto a justiça seletiva dos maus'. 
   E tenho dito!!!

***
   Existem determinados procedimentos baixos que a insensibilização dos tempos não permite discernir. Um deles é o "argumentum ad baculum", mais conhecido como o argumento da porretada. É o argumento que se serve da ameaça para forçar o "convencimento", ou seja: se não for com a gente, pau! É quase infalível. Se ameaça Ministro com isso, com golpe de Estado, com "intervenção militar" (como se o exército fosse ceder). Trata-se de um procedimento usado por quem não sabe perder e nem ganhar. Aqui morreu a razão, a argumentação - e os favoráveis ao HC do Lula têm excelentes argumentos -, a mediação. Entra-se aqui na fase da ruptura, da ameaça, e todos esses direitistas manifestam o melhor de si ao mundo. São com esses fundamentos que essa ralé deseja construir uma nação melhor... Parafraseando Sun Tzu, par ver o mostro basta contemplar o gérmem.

A Oferta do Diabo; Ou: A Magia Hermenêutica e o Direito

   Bem, depois de tudo é só esperar para ver o MST invadir uma propriedade e dessa confusão sair um direitista invocando ou brandindo em punhos a Constituição em defesa fervorosa dos seus "direitos inalienáveis", fundamentando o seu discurso em uma cláusula pétrea.
   Ou pior, espero a hora em que o Supremo se colocará novamente acima da Constituição com uma Súmula, dando direito ao Estado de confiscar propriedades por força de "princípios" ou por uma hermenêutica histórica qualquer dizendo tais e tais motivos de "interesse social" para autorizar a estatização de grandes empresas, desapropriação de casas e terras o quanto o Estado desejar.
   Aliás, a nossa constituição não é lá generosa com a propriedade. Mas quem se arrisca à feitiçaria jurídica, criando o direito penal do inimigo, não pode ser ingênuo o bastante para achar que reduzir o direito do outro, por mais inimigo que esse outro seja, não seja, ao mesmo tempo, reduzir o próprio direito.
   Os bucaneiros jurídicos, os piratas morais, a tribo legislativa, pensa que pode se dar o direito de assaltar o vizinho e, ao mesmo tempo, de ficar escandalizado quando o vizinho lhe devolver o favor o assaltando também. Esses são os falsos conservadores plantados nessa terra roubada e que em nada diferem dos inimigos que atacam.
   Mas Lula é apenas vítima da escola que patrocinou por achar, junto com o PT, que o direito é uma doutrina "deles", algo para favorecer as "elites" e que por isso poderia ser desprezada (desprezada com o punho esquerdo levantado, como bem mostrou José Dirceu e José Genuíno).
   Aliás, é essa redução de tudo à política que gerou esse espetáculo horrendo do qual os esquerdistas são também culpados. Ao exercitar o direito da gritaria, como por exemplo no caso do Impeachment que eles interpretam como "Golpe", cegados e surdos para a lei, os squerdistas fabricaram também o fél que agora bebem, pois enquanto se desconsidera a letra da lei, tudo fica reduzido à política, sendo a verdade apenas a verdade de quem derruba o adversário.
   O vale tudo, a desconsideração das regras, o partidarismo dogmático que cegou as pessoas à verdade, o desejo de vingança e a ausência de abertura para a consideração imparcial das coisas, a manifestação da lei como a lei do mais forte, isso não é o prenúncio do melhor dos mundos. A incapacidade de se elevar acima do dogma político é o que lançou a razão para fora do debate, submetendo tudo a um clima de trincheira.
   O diabo passou diante dos pseudoconservadores e ofereceu Lula, e lá foram eles lançar para o abismo os seus ditos princípios para caírem alegremente em tentação.

A Convenção Batista Brasileira e um Santo para Chamar de Seu

   Ah, não, alguém tem que ensinar para o pr. Roberto Silvado, o presidente da Convenção Batista Brasileira (CBB), o que é uma cláusula pétrea, e que não é jogando a Constituição no lixo que iremos fazer justiça. Prisão imediata após julgamento em segunda instância viola o princípio da presunção de inocência, já que a declaração de culpa se dá apenas após o trânsito em julgado. Senhor, quem é aquele que tem lhe soprado essas coisas nos seus ouvidos?
   Agora que a CBB tem um Dallagnol para chamar de seu - ele é um cristão Batista -, tendo a chance de brilhar de baixo da estrela do seu menudo, parece que ela perdeu um pouco da razoabilidade e do o juízo. Vou dar um livro do Edmund Burke para o pr. Silvado!!! Com Burke aprendemos que da estabilidade legal depende a paz de uma nação.
   Ah, mas quem é que pode contraditar quem está lutando pelo bem, não é mesmo? O Dallagnol tornou-se a divisa entre os bodes e os cordeiros, entre os bons e os maus, entre os justos e os injustos... Cadê o trono branco de isopor? Vamos logo ser julgados pelo apocalipse de Curitiba... Sim, a Lava-Jato tem as suas virtudes, mas ela tem, evidentemente, os seus erros, como o Dallagnol os tem.
   Cometo, agora, um sacrilégio? Não tenho esse santo para chamar de meu. Aliás, que santo caro: quando se propôs a reforma da previdência que iria cortar privilégios do setor público, por exemplo a aposentadoria integral de juízes e procuradores, ele foi contra - porque o seu privilégio estava em jogo. O mesmo se deu com o auxílio-moradia de 4 mil concedido por liminar a mais de 25 mil agentes (grupo que ganha um salário de mais de 20 mil, incluindo ele), e que ele nunca se manifestou contra, o santo ilibado que agora jejua por uma prisão dúbia - o coroamento do seu próprio trabalho.
   Contudo Lula se tornou um troféu, tanto para a irracionalidade de direitistas quanto para a irracionalidade de esquerdistas. Mas quanto se dá esse tipo de triangulação do desejo (leiam a antropologia de René Girard), quando grupos antagônicos se esmurram pelo mesmo troféu, se valendo até dos mesmos meios, no caso em questão a transgressão da lei (e daí o nome "teoria mimética" a esta antropologia), a primeira coisa que se aniquila é a razão, e é o totem bagunceiro (no caso o Lula), que tende a ser santificado no fim das contas, como o coroamento da irracionalidade da massa.
   Estou falando da razão corporificada nas leis não porque a lei é a razão-em-si, mas porque em nosso meio ela cumpre a função sociológica de mediação dos conflitos como a representante e manifestação da própria razão. Não estamos em um contexto de colapso institucional para passar por cima da lei com desprezo, embora o colapso esteja sendo invocado com essa confusão toda.
   Que fique claro: não servirá aos mais fracos ou aos injustiçados o enfraquecimento da lei, e já esse desvanecimento dela é um sinal de torpor do juízo e também do fortalecimento da justiça conduzida pelo arbítrio, algo que tende a privilegiar apenas o mais forte. O mundo não é tão simples como parece e, como dizia a minha avó, nem tudo o que reluz é ouro. Existem camadas de significado mais profundas que não devemos negligenciar sob pena de trazer prejuízos para nós. Mas é isso o que tem ocorrido nessa luta infantil do suposto bem contra o mal, luta essa que tem cegado muita gente, de resto correta e honesta em seu proceder, como o pr. Roberto Silvado.

sexta-feira, 23 de março de 2018

O Brasil entre Leviatã e Behemoth

Os símbolos podem esclarecer a história. Isso ocorre porque tanto símbolos como mitos são transcrições da própria natureza, ou, como diria Schelling, o autodesvelamento histórico do Absoluto ao homem. Hoje, Behemoth e Leviatã, os monstros do livro de Jó, estão em guerra e, ao mesmo tempo, estreitados em um abraço insano. É incrível que alguém, a essa altura, ainda lute por meio do exercício da força ou da persuasão rasteira contra as instância cuja finalidade é tornar a vida menos cruel e bárbara, ou seja, a Lei.
No Brasil existe algo sui generis: o direito constitucional da gritaria. Quem levanta a voz mais alto leva o prêmio. E que prêmio? Lula. Os esquerdistas mais fanáticos afirmam: "eleição sem Lula é fraude", ou que "o povo provou a inocência do Lula por meio dos votos", como se urna absolvesse ou condenasse alguém. Os direitistas, por sua vez, salivam querendo caçar Lula de qualquer jeito, entendendo que a finalidade da justiça é encarcerá-lo. Entre uma briga e outra, essa triangulação do desejo desemboca em uma coisa só: a ruína da Lei, a instância da razão a arbitrar os nossos conflitos.
A transformação do desejo de um lugar melhor ou de justiça em ódio e caça é a célebre transmutação a que está sujeita todo bom desejo não dirigido - e no fim das contas nem tão bom desejo assim. O tempo tende a trazer à luz a verdade das coisas e hoje vemos onde pode dar esse embate em que o esclarecimento só está sendo deixado para o fim do processo, para quando o céu já estiver desabado. A Lei, a instância que pode arbitrar conflitos, é vista como um empecilho para a justiça. Contudo, quando não temos por árbitro a Lei, a instância superior passa ser a força, a luta de todos contra todos onde só o mais forte pode se impor.
Mas a situação não foi criada do dia para noite, e para isso temos vários culpados: os esquerdistas capitaneados pelo PT que, na esteira do pensamento da esquerda radical entendem a lei como uma mera formalidade burguesa e que ainda que contenha uma necessidade para a ordem, acaba por produzir outra necessidade que é a da sua superação para a implementação da verdadeira justiça; os direitistas anti-liberais que acabam por enxergar a lei e as instituições como um impeditivo para a justiça, devendo essas irem ao chão (o STF, o Parlamento e o Executivo); o Ministério Público que no afã de fazer justiça vai à caça de políticos cometendo uma penca de ilegalidades, pois para gente como o Dallagnol, a lei dificulta o fazer justiça (é possível ver isso em suas reivindicações absurdas nas 10 Medidas); o juiz que condena com provas fracas (como o Moro) e o STF, que na pessoa de alguns ministros (Barroso - o petista anti-petista -, Fux - que queria beijar os pés da mulher do Sérgio Cabral - e Fachin - o maluco do MST) - estão atendem ao direito constitucional da gritaria e da agenda mais progressista da casa, mas que incrivelmente, estão sendo adorados pelos ditos conservadores - oh, santa e macabra ironia.
O incrível é perceber o quanto todo mundo só quer o "bem", a "justiça" e o "melhor para todos nós". Chegou a hora de paramos de pensar nesse "melhor" para pensarmos naquilo que é certo. E o desejo de caça ao Lula ou do livramento incondicional do mesmo são os extremos de quem não está dando ouvidos à razão. Não devemos ser adeptos do "meio termo" como se ele fosse um absoluto correto, pois isso é um clichê irracional. A questão é que os dois lados, nessa questão, possuem erros, como os já citados. Mas o dogmatismo partidário e surtado desse pessoal que não consegue furar a bolha da opinião e chegar à razão é o que ainda acabará por nos levar para a vala comum.
Minha oração é essa: que Deus nos ajude.
P.S: Os leitores do Olavo de Carvalho saberão exatamente do que estou falando quando uso o símbolo desta figura que retrata Deus, Leviatã e Behemoth.