terça-feira, 27 de julho de 2021

A Linguagem Teológica e a Reta Compreensão Acerca da Natureza dos Sacramentos

     A discussão sobre a linguagem teológica adequada a respeito dos sacramentos é evidentemente importante. A questão da linguagem para expressar a realidade adequada do sacramento remonta à própria Escritura Sagrada. Em 1Pe 3.21a temos a afirmação de que o batismo é um antítipo, como entendemos assim do texto grego: ὃ καὶ ὑµᾶς ἀντίτυπον νῦν σῴζει βάπτισµα, ou seja: "O qual também como antítipo agora vos salva - o Batismo". O texto se remete ao dilúvio, o qual salvou apenas oito almas através das águas. Assim segue-se que o batismo (βάπτισµα) agora (νῦν), como antítipo (ou seja, in figura = ἀντίτυπον), salva (σῴζει).

    Neste contexto da Sagrada Escritura é importante apresentar a teologia paulina que estabelece a relação entre circuncisão e o batismo. Em Cl 2.11, 12 Paulo afirma que "Nele também vocês foram circuncidados" (ἐν ᾧ καὶ εριετµήθητε), e: "tendo sido sepultados juntamente com ele no batismo" (συνταφέντες αὐτῷ ἐν τῷ βαπτισµῷ), levando muito em consideração que a própria circuncisão é, para a teologia Paulina, o sinal (σηµεῖον) e selo (σφραγῖδα) da justiça da fé (δικαιοσύνης τῆς πίστεως), como se afirma em Rm 4.11a: "E [Abraão] recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que teve quando ainda incircunciso" (καὶ σηµεῖον ἔλαβεν περιτοµῆς, σφραγῖδα τῆς δικαιοσύνης τῆς πίστεως τῆς ἐν τῇ ἀκροβυστίᾳ). Portanto se se recebe o batismo como antítipo da salvação em Pedro, em Paulo, ainda que ele obviamente se refira à velha aliança, a circuncisão (que sinaliza o batismo, muito embora o batismo seja a verdadeira "circuncisão de Cristo") é o sinal como selo da justiça da fé - sendo que os sinais e selos da velha aliança em vários autores patrísticos, como Orígenes e o próprio Agostinho, são sacramentos que contam como sinais divinos significados com a própria virtude divina, não existindo meramente como sinais ocos sem qualquer presença.

    Em relação a Rm 4.11 Calvino afirma: "Esta passagem [Rm 4.11] é muito notável no tocante aos benefícios gerais dos sacramentos. Segundo Paulo testifica, estes são selos pelos quais as promessas de Deus são, de certa forma, impressas nos nossos corações, e a certeza da graça e confirmada. Embora eles, inerentemente [ou seja: em sua realidade meramente materia], são de nenhum proveito, todavia Deus os designou para que fossem instrumentos da sua graça, e pela graça secreta do seu Espírito promovem o bem dos eleitos através dos seus efeitos. Ainda que para os réprobos eles sejam símbolos inanimados e inúteis, todavia retém sempre seu poder e seu caráter. Mesmo que nossa descrença nos prive de seus efeitos, todavia tal fato não debilita nem extingue a verdade de Deus. Portanto o seguinte princípio permanece, a saber: os símbolos sagrados são testemunhas pelas quais Deus sela sua graça em nossos corações"1.

    E sobre a permuta de nomes que existe entre o sinal e a coisa sinalizada a II Confissão Helvética é explícita: "Porque aprendemos da Palavra de Deus que estes sinais foram instituídos para outro fim, diverso do uso comum, ensinamos que eles agora, em seu santo uso, assumem em si os nomes das coisas significados e não são mais chamados apenas água, pão ou vinho, mas também, regeneração ou o lavar com água e o corpo e sangue do Senhor, ou símbolos e sacramentos do corpo e sangue do Senhor. Não que os símbolos se transformem nas coisas significados ou cessem de ser o que são por sua natureza. Pois de outro modo não poderiam ser sacramentos. Se fossem apenas a coisa significado, não seriam sinais"2.

    Assim também a mesma confissão diz a respeito da natureza dos sacramentos: "Portanto, os sinais adquirem os nomes das coisas, porque são símbolos místicos de coisas sagradas, e porque os sinais e as coisas significados estão sacramentalmente ligados; ligam-se, digo, ou unem-se pela significação mística e pela vontade e conselho daquele que instituiu os sacramentos. A água, o pão e o vinho não são sinais comuns, mas sagrados. E aquele que instituiu a água no batismo não a instituiu com a vontade e intenção de que os fiéis apenas fossem aspergidos pela água do batismo; e aquele que mandou comer o pão e beber o vinho na ceia não queria que os fiéis recebessem apenas pão e vinho sem qualquer mistério, da maneira como comem pão em suas casas, mas, que participassem espiritualmente das coisas significados, sendo pela fé verdadeiramente lavados de seus pecados e participantes de Cristo"3.

    Assim a Confissão segue aqui de forma mais ampliada aquilo que Calvino afirmou na citação acima, citando-o em certas partes quase literalmente: "Não aprovamos a doutrina daqueles que ensinam que a graça e as coisas significadas estão de tal modo ligadas aos sinais e neles incluídas que, todos aqueles que participarem externamente dos sinais, não importando que espécie de pessoas sejam, são também interiormente participantes da graça e das coisas significados.

    No entanto, como não julgamos o valor dos sacramentos pela dignidade ou indignidade dos ministros, assim também não os avaliamos pela condição daqueles que os recebem. Pois, sabemos que o valor dos sacramentos depende da fé e da veracidade e exclusiva bondade de Deus. Assim como a Palavra de Deus permanece a verdadeira Palavra de Deus que, em sendo pregada, não são meras palavras repetidas, mas ao mesmo tempo, as coisas significadas ou anunciadas em palavras são oferecidas por Deus, embora os ímpios e incrédulos as ouçam e compreendam, contudo não aproveitam as coisas significadas, porque não as recebem pela verdadeira fé, assim os sacramentos, que pela Palavra consistem de sinais e de coisas significadas, continuam sendo sacramentos verdadeiros e invioláveis, significando não somente coisas sagradas mas, pelo oferecimento de Deus, as próprias coisas significadas, embora os incrédulos não percebam as coisas oferecidas. Neste caso, a culpa não é de Deus que as dá e as oferece, mas dos homens que as recebem sem fé e de modo ilegítimo, cuja incredulidade, porém, não invalida a fidelidade de Deus (Rom 3.3 ss)" 4.

    Entendimento semelhante sobre a coisa e o sinal ocorre em Agostinho - em quem muita coisa foi colhida pela tradição reformada. Na carta nº 98 escrita a Bonifácio Agostinho, em 98.9, fala a respeito da permuta de nomes entre o sinal e a coisa sinalizada: "Pois se os sacramentos não tivessem alguns pontos de semelhança real com as coisas das quais são os sacramentos, eles não seriam sacramentos. Na maioria dos casos, além disso, eles fazem em virtude dessa semelhança comportar os nomes das realidades que eles se assemelham. Como, portanto, de certa forma o sacramento do corpo de Cristo é o corpo de Cristo, e o sacramento do sangue de Cristo é o sangue de Cristo, da mesma forma que o sacramento da fé é a fé"5. Além disso essa é a razão pela qual Agostinho reiteradamente nomeia o sacramento da ceia como sacrifício, pois os sinais do corpo e do sangue comportam em si a virtude daquilo que sinalizam, muito embora o sinal e a coisa sinalizada a rigor não sejam a mesma coisa.

    Muito embora a discussão a respeito da relação entre a natureza dos sacramentos seja muito mais profunda e complexa (possuindo significado diverso dentro das diversas vertentes do cristianismo - e não podemos reduzir esse debate a Calvino ou à tradição reformada), é interessante notar que a relação entre a linguagem e o sacramento é de fundamental importância para captarmos o seu real sentido. Mas é impossível não ver que termos como antítipo (ἀντίτυπον), sinal (σηµεῖον) e selo (σφραγῖδα) se encontram já na Escritura Sagrada no campo de coisas que se referem direta ou indiretamente aos sacramentos, o que nos esclarece muito do sentido religioso e teológico dos sacramentos no cristianismo.
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[1] CALVINO, João. Comentário à Carta aos Romanos 4.11
[2] II CONFISSÃO HELVÉTICA. XIX
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] AGOSTINHO. Epístola 98.9

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