sexta-feira, 30 de outubro de 2020

O Arrependimento como o Corolário da Fé Salvadora

    Uma das notas fundamentais da noção de fé salvadora em Calvino é que o arrependimento é o corolário da fé - sem a qual não há justificação. Podemos afirmar que há um caminho necessário da iluminação que vai da produção em nós da fé salvadora ao arrependimento compromissado com Deus.

    Calvino afirma: "Não sem fundamento, a suma do evangelho fixa-se no arrependimento e no perdão dos pecadas [Lc 24.47; At 5.31]. Logo, omitidos esses dois tópicos, será fria e mutilada, e até quase inútil, toda e qualquer discussão da fé"1, para complementar: "a graciosa imputação de justiça não é separada, por assim dizer, da real santidade de vida"2.

    Segue-se aqui, como diria Willian Webster, que a real santidade da vida é corolário da fé salvadora. Calvino enxerga que a iluminação da fé produz tais frutos de arrependimento: "Ora, uma vez que pela pregação do evangelho é oferecido perdão e remissão para que o pecador, liberado da tirania de Satanás, do jugo do pecado e da mísera servidão dos vícios, seja transportado ao reino de Deus, por certo que ninguém pode abraçar a graça do evangelho a não ser que se afaste dos erros da vida e tome a via reta, e aplique todo seu esforço à prática do arrependimento"3.

    No entanto, o arrependimento depende de uma iluminação prévia da fé, fruto da regeneração, sob o reflexo da qual o arrependimento brota, por assim dizer. E possivelmente querendo excluir qualquer aceitação da ação desassistida do homem como causa da fé, Calvino acrescenta: "Mas, os que pensam que o arrependimento precede à fé e não é produzida por ela, como o fruto de sua árvore, estes jamais souberam no que consiste sua propriedade e natureza, e, ao pensar assim, se apoiam num fundamento sem consistência"4.

    Sobre essa questão, Willian Webster explica como foi enfatizada a fé pelos reformadores, fé que podemos chamar de uma fé obediente sob o senhorio de Cristo. Webster diz: "O ensino da fé somente [sola fide] foi enfatizado pelos Reformadores para neutralizar a ênfase católica romana na necessidade [absoluta] dos sacramentos e boas obras para alcançar a justificação. Mas definir o ensino da fé da Reforma apenas como confiança em Cristo sem arrependimento e compromisso com ele é uma distorção tanto do ensino da Reforma quanto da mensagem do evangelho. A fé somente [sola fide] significa fé sem o mérito das obras, e não ausência de arrependimento. A Bíblia sempre apresenta o arrependimento como um corolário da fé em receber Cristo para a salvação"5.

    Entendemos por isso que é uma noção equívoca que o arrependimento não constitua uma parte essencial da fé salvadora, ou da fé justificadora. A sua ausência, podemos afirmar confiantemente, é ausência de fé. Era da compreensão comum dos reformadores que em relação ao arrependimento, a contrição não deveria ser restrita a um momento da vida, se não que estendê-la para todos os momentos da vida.

    A fé no Evangelho, como resposta ao chamado de Cristo, nos ensina claramente: "O tempo está cumprido, o Reino de Deus está próximo, arrependei-vos e crede no Evangelho" (Mc 1.15); e por isso compreendemos claramente que sem a iluminação prévia de Deus, não pode haver arrependimento, já que toda boa dádiva vem de Deus (Tg 1.17).

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1] CALVINO - Institutas da Religião Cristã. Tomo III.3.1
2] Ibid.
3] Ibid.
4] Ibid.

Parágrafos Contra a Idolatria: Citações do livro "Contra Celso" de Orígenes (185-254 d.C.)

    Neste pequeno artigo de citações eu irei proceder da seguinte maneira: Em primeiro lugar destacarei a citação de Orígenes e logo após irei, na medida das minhas forças, comentar a passagem citada. E para esclarecer, como está no título, todas as citações deste texto são tiradas da obra Contra Celso, que tem tradução pela editora Paulus e que é possível encontrar na internet. Também a forma da citação nas notas não indicará as páginas da edição da Paulus, mas sim a estrutura da divisão que podemos achar em edições internacionais, inserida também na própria edição da Paulus.

    Estas são as citações seguidas dos comentários:

    Citação:

    Se ele [Celso] julga certo que eles jamais tiveram valor por sua categoria ou número, pois não se encontra qualquer alusão à história dos judeus entre os gregos, eu responderei: se atentarmos para o seu regime inicial e as disposições de suas leis, veremos que foram homens que apresentavam na terra uma sobra da vida celeste. Entre eles, não havia nenhum outro deus a não ser o Deus supremo; nenhum artífice de imagem que tivesse direito de cidadania. Nenhum pintor, nenhum escultor tinha espaço em seu Estado, pois a lei bania todos os artífices desse gênero para eliminar qualquer ideia de fazer estátuas, prática que atrai os simples e desvia os olhos da alma para longe de Deus na direção da terra. Havia, pois, entre eles esta lei: "Não vos pervertais, fazendo para vós uma imagem esculpida em forma de um ídolo: uma figura de homem ou de mulher, figura de algum animal terrestre, de algum pássaro que voa no céu, de algum réptil que rasteja sobre o solo, ou figura de algum peixe que há nas águas que estão sob a terra" (Dt 4:16-18). A intenção da lei era encarar a realidade de cada ser, impedindo que fossem modeladas fora da verdade imagem que mentiam a respeito da verdade do homem e da realidade da mulher, da natureza, dos pássaros, dos animais, do gênero dos pássaros, dos répteis, dos peixes. E o motivo era venerável e sublime: "Levantando os olhos o céu e vendo o sol, a lua, as estrelas e todo o exército do céu, não te deixes seduzi-los para adorá-los ou servi-los!" (Dt 4:19)1. [...]

    Comentário: Orígenes segue aqui a tendência da escola de Alexandria, cujo representante mais notável é Clemente de Alexandria. A ideia aqui é que sendo Deus invisível, uma imagem seria corruptora do orgão espiritual pelo qual se vê a Deus. Não aleatoriamente ele diz que a intenção da lei de proibição da confecção de imagens era "encarar a realidade de cada ser". Nem é preciso dizer da influência platônica, não só de Orígenes, mas de vários pais ante-nicenos. Contudo,à primeira vista, a retrição de imagens parece seguir de Platão para o cristianismo; mas isso é errado, já que apologistas como Clemente, Justino e mesmo Orígenes seguiam a ideia de que Platão era um plagiário de Moisés - ideia comum nos apologistas. Mas para não ficar apenas nas minhas palavras, vou citar um trexo da República, uma das, senão a obra mais espiritualmente potente de Platão, onde ele explica arazão do banimento dos atesão e escultores da República: "Então concerne esse tipo de imitação [dos escultores e pintores] a algo que é o terceiro a partir da verdade, ou não é?" (602c), ou: "Isso, então, era sobre o que eu queria encontrar um consenso quando afirmei que a pintura e a imitação como um todo produzem obras que estão distantes da verdade [por ser o terceiro em relação à verdade], ou seja, que a imitação realmente se associa a um elemento [inferior] da nossa alma que se distancia da razão [parte superior da alma], e que o resultado desse relacionamento e amizade não é nem saudável, nem verdadeiro" (603a,b)2.

    Citação:

   Cada pessoa pode mostrar como aqueles que seguem tais guias caminham num caminho melhor e têm mais socorro nas dificuldades da vida do que os que, graças ao ensinamento de Jesus Cristo, disseram adeus a todas as imagens e estátuas, e mesmo a toda a superstição judaica, e que pelo Logos de Deus erguem seu olhar para o Deus único Pai do Logos3. [...]

    Comentário: Comentários assim são reiterados no Contra Celso de Orígenes. Alguns poderiam objetar que se trata de uma fala referente apenas ao paganismo, ou de uma condenação as imagens de deuses pagãos. O problema desse tipo de firmação é que Orígenes não oferece em nenhum momento em sua obra um receituário para o uso coreto de imagens físicas para a devoção. Toda a referência ao uso de imagens em sua obra tem um tom depreciativo, como ainda veremos mais abaixo.

    Citação:

Que homem sensato não riria daquele que, depois de tantas especulações filosóficas sublimes sobre Deus ou os deuses, volta seus olhos para as estátuas e lhes dirige sua prece ou, através destas imagens que ele vê, a oferece na realidade ao ser objeto de seu pensamento para o qual ele imagina que deve subir a partir das coisas visíveis e do símbolo? Mas o cristão mais simples sabe que qualquer lugar do mundo é parte do todo e que o mundo inteiro é o templo de Deus. Orando “em todo lugar”, depois de ter fechado a entrada dos sentidos e aberto os olhos da alma, eleva-se acima de todo o mundo; nem mesmo se detém na abóbada do céu, mas atingindo pelo pensamento o lugar supraceleste, guiado pelo Espírito divino e, por assim dizer, fora do mundo, faz subir até Deus sua oração que não tem como objeto as coisas passageiras. Pois ele aprendeu de Jesus a não procurar nada de pequeno, quer dizer sensível, mas somente as coisas grandes e verdadeiramente divinas que sobrevêm como dons de Deus para guiar à bem-aventurança junto dele, por seu Filho, o Logos que é Deus4. [...]

    Comentário: Essa passagem é de fundamental importância. Orígenes satiriza os filósofos que depois de especulações deve voltar, junto com o populacho, orações às estátuas. É interessante que ele afirma que o filósofo "dirige sua prece ou, através destas imagens que ele vê", pois sabia da argumentação pagã que as estátuas, ou símbolos, não são literalmente os deuses, mas que através das estátuas eles ofereciam preces para os deuses. Orígenes conhece então dois níveis de pensamento em relação ao uso religioso de imagens: 1) Um tipo mais grosseiro, típico da ralé religiosa que confundia Deus ou os deuses com o símbolo, achando que o símbolo era literalmente Deus ou os deuses; 2) O uso mais refinado que entendia ser imagens apenas representações de Deus ou dos deuses, e não a realidade deles.

   Citação:

     Assim como descobrimos nesta atitude a asbtenção do adultério, embora pareça a mesma, uma diversidade proveniente de outras doutrinas e das intenções diversas, o mesmo ocorre com a recusa de honrar a divindade nos altares, nos templos e nas estátuas. Os citas, os nômades da Líbia, os seres, povo sem deus, e os persas fundamentam sua atitude em outras doutrinas diferentes daquelas pelas quais os cristãos e os judeus não toleram este culto que se pretende oferecido à divindadePois nenhum desses povos pode tolerar os altares e as estátuas porque se recusaria a exautorar e aviltar a adoração devida à divindade, dirigindo-a a matéria assim modelada. [...] Por causa deles, não só se afastam dos templos, dos altares, das estátuas, mas também correm para a morte quando necessário, para evitar emporcalhar a noção do Deus do universo com uma infração deste gênero à sua lei5[...]

    Comentário: Celso anteriormente é citado por Orígenes comparando os cristãos aos "nômades da Líbia, citas e os seres, que são os povos sem Deus. Orígenes afirma que a razão pela qual eles não toleram templos, altares e estátuas não é a mesma razão pela qual os cristãos também não os toleram. Nas palavras de Orígenes: "De fato é preciso examinar as doutrinas que levam à intolerância os que não podem tolerar templos e as estátuas, a fim de poder louvar esta intolerância de ela é motivada por sãs doutrinas, e censurá-las se os motivos são errôneos"6. E a razão dele afirmar isso está explicada logo adiante, onde ele elenca várias escolas que levantam razões distintas para a abstenção do adultério - e então entramos no parágrafo citado acima, que é alvo do comentário aqui. Mas o importante é que Orígenes cita com louvor a intolerância dos cristãos em relação às estátuas - e não afirma ser tolerável outro tipo de estátua ou imagem física no lugar das estátuas dos ídolos; isso nos leva ao juízo de que Orígenes possui uma sentença formal contra imagens representativas do ser divino, e isso ficará claro nos comentários a seguir, assim como ficará claro que o costume cristão da época de Orígenes era a abstenção de todo e qualquer tipo de estátuas ou imagens.

    Citação:

    Celso também citou o texto de Heráclito insinuando, em sua interpretação, que é tolice orar para as estátuas quando não se conhece a verdadeira natureza dos deuses e heróis. Devemos responder: é possível conhecer a Deus e seu Filho único, como os seres que são honrados por Deus com o título de deus [anjos - helohim do hebraico, que pode significar tanto anjo como Deus] e participam de sua divindade, e que são diferentes de todos os deuses das nações que por sua verdadeira natureza são demônios; mas na verdade não é possível conhecer a Deus e orar para as estátuas.

    É tolice não só orar para as estátuas, mas também se acomodar às massas e fingir orar para as estátuas, como os filósofos peripatéticos, os sequazes de Epicuro e Demócrito. Não, nada de bastardo deve subsistir na alma do homem verdadeiramente piedoso diante da divindade. Recusamos por este modo honrar as estátuas para evitar, enquanto depender de nós, adotar a opinião de que as estátuas seriam outros deuses7. [...]

    Comentário: No primeiro parágrafo Orígenes fala que não é possível conhecer a Deus e orar para estátuas. Obviamente que ele está acenando para a literalidade da oração à estátua, não a ela como representação de algo. Orígenes opõe aqui o tipo do conhecimento dos filósofos, que sabem que ao orar à estátua não é orar aos deuses, ao conhecimento do populacho, que confundem o símbolo com aquilo que é simbolizado. Lembremos da primeira citação em que Orígenes afirma que Moisés proibiu a confecção de imagens porque estas atraem o olhar dos simples para a terra. Obviamente que se trata de um cuidado pastoral, afim de que "nada de bastardo subsista na alma do homem verdadeiramente piedoso diante da divindade". E lembremos que esse é um cuidado pastoral ausente da teologia católico romana. Mas seria forçado dizer que existe uma licença possível nos escritos de Orígenes para a confecção das imagens de Deus, mesmo a título de uso simbólico. Nada há na obra origenista que indique algo dessa espécie, já que, evidentemente, a confecção de imagens é um risco real para a espiritualidade, já que leva àquilo que chamo de "contração do ser" - não do ser em si, mas sim da nossa mente em relação ao Ser de Deus. Trata-se de um obstáculo à espiritualidade. Lembrem-se também que a razão pela qual iconodulas ou alguns iconistas em geral defendem o uso de imagens é que elas seriam uma bíblia para os ignorantes enquanto que Orígenes considera que as estátuas e imagens são justamente um risco para os ignorantes.

    Citação:

    Celso diz com justeza que não as considera [as estátuas] como deuses, mas apenas como oferendas consagradas e oferecidas aos deuses, mas não esclarece como estas oferendas são consagradas não aos homens, mas, como ele observa, aos próprios deuses. Pois é claro que são oferendas de pessoas que têm ideias falsas sobre a divindade. Também não pensamos que as estátuas sejam imagens divinas, pois não representamos a imagem de Deus invisível e incorpóreo. Mas quando Celso supõe uma contradição entre nossa afirmação segundo à qual a divindade não tem forma humana, e nossa crença de que Deus fez o homem à sua imagem e a fez à imagem de Deus, devemos responder como ficou dito acima: declaramos que o que é à imagem de Deus é conservado na alma racional que é tal pela virtude. Aqui, porém, Celso, que não vê a diferença entre Imagem de Deus [estátuas] e o que é à imagem de Deus [os homens], nos faz dizer: Deus fez o homem à sua imagem e de forma semelhante à sua8[...]

    Comentário: Orígenes é extremamente explícito aqui, afirmando não meramente uma opinião pessoal, mas dizendo na 1ª pessoa do plural, como que falando em nome de outras pessoas também que "não pensamos que as estátuas sejam imagens divinas, pois não representamos a imagem de Deus invisível e incorpóreo". Ele afirma que "não pensamos", no sentido que de os cristãos entendem que Deus transcende infinitamente a mera representação sensível, e que "não representamos", no sentido de que não havia o costume de confecção de imagens ou estátuas para Deus.

    E um segundo ponto a se destacar é que Orígenes sabia que Celso não afirmava serem imagens ou estátuas literalmente deuses ou a divindade, mas sim representações delas.

    Citação:

    Em seguida ele [Celso o filósofo] declara que evitamos construir altares, estátuas e templos; pois ele acredita que é palavra de ordem combinada de nossa associação secreta e misteriosa. É ignorar que para nós o coração de cada justo forma o altar de onde sobem na verdade e em espírito, incenso agradável odor, as preces de uma consciência pura. Por isso diz João no Apocalipse: "O incenso que são as orações dos santos" (Ap 5,8), e no Salmista: "Suba minha prece como um incenso em tua presença" (Sl 140,2).

    As estátuas, as oferendas agradáveis a Deus não são obras de artesãos vulgares, mas do Logos de Deus que as delineia e forma em nós. São as virtudes, imitações do "Primogênito de Toda Criatura", no qual estão os modelos da justiça, da temperança, da força, da sabedoria, da piedade e das demais virtudes. Por tanto, todos os que, segundo o Divino Logos, edificaram em si mesmos a temperança, a justiça, a força, a sabedoria, a piedade, e as obras-primas das demais virtudes, trazem em si mesmos estátuas. É por meio delas, como sabemos, que convém honrar o protótipo de todas as estátuas, a "Imagem do Deus invisível" (Cl 1,15), o Deus Filho Único. Além disso, os que se despojaram do "homem velho com as suas práticas e se revestiram do novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador" (Cl 3.9,10) recuperando continuamente a imagem do criador, edificam em si mesmos estátuas dele, assim como o Deus supremo deseja9[...]

    Comentário: Orígenes cita diretamente Celso, dizendo que os cristãos "evitam construir templos, altares e estátuas". A explicação para isso é tipicamente uma explicação espiritualizante e alegorizante. Para muitos pais da Igreja, segundo o sentido da Escritura, todos os ritos do Antigo Testamento eram apenas uma prefiguração da realidade espiritual que se concretiza em Cristo e em cada cristão. O templo de Jerusalém é a figura do corpo, assim como o altar; da mesma forma o incenso é a figura da oração, e assim por diante. O cristianismo pode ser visto como a antropologização teológica máxima na teologia dos primeiros pais. Podemos dizer que "o homem é a religião". Os cristãos são o templo, as virtudes são as imagens, o altar é o corpo e o artífice é o Logos que delineia na alma as virtudes pelas quais servimos e sacrificamos a Deus. O ritualismo religioso tomou as proporções do homem; decair para a confecção de estátuas, altares e templos é cair no ser, ou voltar a um estado primitivo tosco já superado; é decair do espírito para a letra. Orígenes reflete o teor entusiasmado de uma fé nova, viva e não envelhecida com entulhos ritualísticos e paramentais, mas plenificada de significado vivificador. Trata-se de uma expressão religiosa exteriormente pobre, segundo Celso - que até lhe parece ateísta -, mas interiormente vulcânica e sublime. É assim que entendemos um típico teólogo norte-africano (origenista?) como Santo Agostinho, quando discorre sobre o retorno interno, ou a volta para o interior, como podemos ver no De Vera Religione. Dessa forma, a pobreza externa da religião cristã é caracterizada por Celso como um culto sem templos, sem estátuas, sem altares.

    Citação:

    Portanto, não é para observar uma palavra de ordem convencionada da nossa associação secreta e misteriosa que evitamos edificar altares, estátuas e templos; mas porque encontramos, graças ao ensinamento de Jesus, a forma da piedade para com a divindade, evitamos atitudes que sob a aparência da piedade tornam ímpios os que se afastam da piedade que tem por mediador Jesus  Cristo: só ele é o caminho da piedade, porque ele diz com toda verdade: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jo 14.6)10.

    Comentário: Aqui vemos a confirmação de Orígenes das palavras de Celso sobre a austeridade primitiva do culto cristão. Se na citação anterior ele alegoriza e espiritualiza os templos, altares, estátuas e incensos, aqui ele fala claramente sobre a realidade austera do culto. Se antes poderia haver dúvidas, agora já não pode haver mais. 
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1] ORÍGENES - Conta Celso. IV.31
2] PLATÃO - A República. Edipro. Lib.X p. 407, 409.
3] ORÍGENES - Contra Celso. VII.42
4] Ibid. VII.44
5] Ibid. VII.64
6] Ibid. VII.63
7] Ibid. VII.65,66
8] Ibid. VII.66
9] Ibid. VIII.17
10] Ibid. VIII.18

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Willian Webster, o Cânon do Antigo Testamento e os Apócrifos e o Comentário de Walafrid Strabo (808-849 d.C.) à Glossa Ordinária1

    Muitas pessoas, que não dão muita atenção às escrituras sagradas, acham que todos os livros contidos na Bíblia devem ser honrados e adorados com igual veneração, não sabendo distinguir entre os livros canônicos e não canônicos, sendo que os últimos os judeus contam entre os apócrifos. Portanto, eles frequentemente parecem ridículos diante dos eruditos; e ficam perturbados e escandalizados quando ouvem que alguém não honra algo lido na Bíblia com igual veneração como todo o resto. Aqui, então, distinguimos e numeramos distintamente primeiro os livros canônicos e depois os não canônicos, entre os quais distinguimos ainda entre o certo e o duvidoso.

    Os livros canônicos foram produzidos por meio do ditado do Espírito SantoNão se sabe, entretanto, em que época ou por quais autores os livros não canônicos ou apócrifos foram produzidosComo, no entanto, são muito bons e úteis, e neles não se encontra nada que contradiga os livros canônicos, a igreja os lê e permite que os fiéis os leiam para devoção e edificação. Sua autoridade, entretanto, não é considerada adequada para provar as coisas que entram em dúvida ou contenda, ou para confirmar a autoridade do dogma eclesiástico, como o bem-aventurado Jerônimo declara em seu prólogo a Judite e aos livros de SalomãoMas os livros canônicos são de tal autoridade que tudo o que está contido neles é considerado verdadeiro firme e indiscutivelmente, e da mesma forma o que é claramente demonstrado a partir deles. Pois assim como na filosofia uma verdade é conhecida por redução a primeiros princípios evidentes, também, nos escritos transmitidos por santos mestres, a verdade é conhecida, na medida em que as coisas que devem ser sustentadas pela fé, por redução a as escrituras canônicas que foram produzidas pela revelação divina, que não podem conter nada falso. Portanto, a respeito deles, Agostinho diz a Jerônimo: Somente para aqueles escritores que são chamados de canônicos, aprendi a oferecer esta reverência e honra: considero com toda a firmeza que nenhum deles cometeu um erro ao escrever. Assim, se encontro neles algo que parece contrário à verdade, simplesmente penso que o manuscrito está incorreto, ou me pergunto se o tradutor descobriu o que a palavra significa ou se eu a entendi. Mas eu leio outros escritores desta forma.

    Existem, então, vinte e dois livros canônicos do Antigo Testamento, correspondendo às vinte e duas letras do alfabeto hebraico, como Eusébio relata, no livro seis da História Eclesiástica, que Orígenes escreve no primeiro Salmo; e Jerônimo diz a mesma coisa mais completa e distintamente em seu prólogo com capacete aos livros dos Reis: Todos os livros são divididos em três partes pelos judeus: na lei, que contém os cinco livros de Moisés; nos oito profetas; e nos nove hagiographa. Isso será visto mais claramente em breve. Alguns, no entanto, separam o livro de Rute do livro dos Juízes, e as Lamentações de Jeremias de Jeremias, e os contam entre os hagiographa para fazer vinte e quatro livros, correspondendo aos vinte e quatro anciãos que o Apocalipse apresenta como adorando o cordeiro.

    Em primeiro lugar estão os cinco livros de Moisés, que são chamados de lei, primeiro dos quais é Gênesis, segundo Êxodo, terceiro Levítico, quarto Números, quinto Deuteronômio. Em segundo lugar, siga os oito livros proféticos, primeiro dos quais é Josué, segundo o livro dos Juízes junto com Rute, terceiro Samuel, ou seja, primeiro e segundo Reis, quarto Malachim, ou seja, terceiro e quarto Reis, quinto Isaías, sexto Jeremias com Lamentações, sétimo Ezequiel , o oitavo livro dos doze profetas, o primeiro dos quais é Oséias, o segundo Joel, o terceiro Amós, o quarto Obadias, o quinto Jonas, o sexto Miquéias, o sétimo Naum, o oitavo Habacuque, o nono Sofonias, o décimo Ageu, o décimo primeiro Zacarias, o décimo segundo Malaquias. Em terceiro lugar, siga os nove hagiographa, o primeiro dos quais é Jó, o segundo Salmos, o terceiro os Provérbios de Salomão, o quarto seu Eclesiastes, o quinto seu Cântico dos Cânticos, o sexto Daniel, o sétimo Paralipomenon, que é um livro, não dois, entre os judeus, o oitavo Esdras com Neemias (pois é tudo um livro), o nono Ester. E tudo o que está fora desses (falo do Antigo Testamento), como diz Jerônimo, deve ser colocado nos apócrifos.

    Estes são os livros que não estão no cânon, que a igreja inclui como livros bons e úteis, mas não canônicosEntre eles estão alguns com mais, alguns com menos autoridade. Pois Tobit, Judith e os livros dos Macabeus, também o livro da Sabedoria e do Eclesiástico, são fortemente aprovados por todos. Assim, Agostinho, no livro dois de De Doctrina Christiana [Doutrina Cristã], conta os três primeiros entre os livros canônicos; com respeito à Sabedoria e ao Eclesiástico, ele diz que eles mereciam ser recebidos como autoridade e deveriam ser contados entre os livros proféticos; a respeito dos livros dos Macabeus, no livro 18 da Cidade de Deus, falando dos livros de Esdras, ele diz que, embora os judeus não os considerem canônicos, a igreja os considera canônicos por causa das paixões de certos mártires e milagres poderosos . De menos autoridade são Baruch e o Terceiro e Quarto Esdras. Pois Agostinho não faz menção a eles no lugar citado acima, enquanto incluía (como eu disse) outras obras apócrifas entre as canônicas. Também Rufino, em sua exposição do credo, e Isidoro, no livro 6 do Etimologias, onde repetem essa divisão de Jerônimo, nada mencionou desses outros livros.

    E para que possamos enumerar os livros apócrifos na ordem em que aparecem nesta Bíblia, embora tenham sido produzidos em uma ordem diferente, primeiro vêm o terceiro e o quarto livros de Esdras. Eles são chamados de Terceiro e Quarto Esdras porque, antes de Jerônimo, gregos e latinos costumavam dividir o livro de Esdras em dois livros**2, chamando as palavras de Neemias de segundo livro de Esdras. Este Terceiro e Quarto Esdras são, como eu disse, de menos autoridade entre todos os livros não canônicos. Portanto, Jerônimo, em seu prólogo aos livros de Esdras, os chama de sonhos. Eles são encontrados em muito poucos manuscritos da Bíblia; e em muitas Bíblias impressas apenas o Terceiro Esdras é encontrado. Em segundo lugar está Tobias, um livro muito devoto e útil. A terceira é Judite, que Jerônimo diz em seu prólogo ter sido contada pelo Concílio de Nicéia no número de escrituras sagradas. O quarto é o livro da Sabedoria, que quase todos sustentam que Filo de Alexandria, um judeu muito erudito, escreveu. Em quinto lugar está o livro de Jesus, filho de Sirach, que se chama Ecclesiástico. O sexto é Baruque, como Jerônimo* diz em seu prólogo a Jeremias. O sétimo é o livro dos Macabeus, dividido em primeiro e segundo livros... Além disso, deve-se saber que no livro de Ester, apenas aquelas palavras estão no cânon até aquele lugar onde inserimos: o final do livro de Ester , na medida em que está em hebraico. O que segue depois não está no cânone. Da mesma forma em Daniel, apenas aquelas palavras estão no cânon até aquele lugar onde inserimos: O profeta Daniel termina [excluindo Zusana e Bel e o Dragão]. O que se segue não está no cânone2. 

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[1] WEBSTER, Willian - The Old Testament Canon And The Apocrypha: Part 3: From Jerome to the Reformation, in: https://christiantruth.com/articles/articles-roman-catholicism/apocryphaintroduction/apocrypha3/

[2] Quanto a essa questão de 1 e 2 Esdras, remeto vocês a este artigo do meu amigo Bruno Lima Aguiar que explica a razão pela qual o que em Cartado e Hipona foram tidos como 1 e 2 Esdras não é o mesmo que foi considerado em Trento.  

[3] PETRI & FROBEN - Biblia cum glosa ordinaria et expositione Lyre litterali et morali. 1498. British Museum IB.37895 , vol. 1. Tradução do Dr. Michael Woodward. Ver também Walafrid Strabo, Glossa ordinaria, De Canonicis et Non Canonicis Libris. PL 113: 19-24.

[4] PETRI & FROBEN - Biblia cum glosa ordinaria et expositione Lyre litterali et morali. 1498, British Museum IB.37895, Vol. 1. Tradução do Dr. Michael Woodward. Ver também Walafrid Strabo, Glossa ordinaria, De Canonicis et Non Canonicis Libris. PL 113: 19-24.

[*] Quanto ao juízo de que Jerônimo mudou seu posicionamento, diz Bruce Metzger afirma: "
A versão de Petrius da Vulgata de Jerônimo também incluiu todos os prólogos de Jerônimo para os livros do Velho e Novo Testamento e os Apócrifos. Ele manteve o cânone hebraico, excluindo os livros apócrifos do status canônico." (Bruce Metzger - An Introduction to the Apocrypha. New York: Oxford, 1957. p. 180). Além do mais, o juízo de Jerônimo sobre os apócrifos tem a favor de si o pendor da balança dos eruditos na Idade Média, como bem esclarece Webster em seu artigo (nota 1).

[**] Todos os destacamentos do texto são meus
 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Como Agostinho, um "Simbolista", Pode Também ser um "Radicalmente Realista"?: A Teologia Sacramental de Agostinho; Ou: Ao Sr. Fábio Morais

    Ao que parece, o sr. Fábio Morais, como a grande maioria dos apologistas católicos romanos que já vi, gosta de trazer JND Kelly à superfície das discussões porque, embora seja um erudito pertencente à Igreja Anglicana, ele reforçaria a teologia católica romana com sua obra como ninguém mais. Portanto, se um "inimigo" pode servir de quinta coluna entre os protestantes, porque não explorá-lo ao máximo? Essa tática de guerra, porém, poderia ser mais eficaz caso o uso da obra de Kelly fosse digna de nota e não de risos.

    O título desse texto é a própria pergunta que o sr. Fábio Morais fez, sendo que no mesmo texto ele traz um print de uma citação do JND Kelly que diz o seguinte: "Embora radicalmente realista, é também francamente espiritualizante". O texto mais completo seria este aqui: "Como seria de esperar, seu pensamento [o de Agostinho] percorre muito mais o caminho aberto por Tertuliano e Cipriano [simbolistas]. Por exemplo, ele fala do 'banquete em que Ele apresentou e entregou a Seus discípulos a figura (figuram) de Seu corpo e sangue'. Mas ele vai mais longe do que seus predecessores, formulando uma doutrina que, embora radicalmente realista, é também francamente espiritualizante. Em primeiro lugar, Agostinho deixa claro que o corpo ingerido na eucaristia não é rigorosamente idêntico ao corpo histórico de Cristo, e representa-o" (KELLY, J.N.D. - Patrística. ed. Vida Nova. p. 341). Como um grande conhecedor da obra do Kelly, o sr. Fábio Morais, claro, está familiarizado com essa citação que não poderia ser mais clara sobre percepção que Kelly tem da teologia agostiniana.

    Mas em segundo lugar, é interessante destacar o que Kelly realmente quer dizer com "realismo atual" do qual Agostinho é um signatário. Na pág. 335 Kelly explica dessa forma: "Deve-se entender já de início que o ensino eucarístico em geral era inquestionavelmente realista, isto é, o pão e o vinho consagrados eram interpretados, tratados e designados como o corpo e o sangue do Salvador. Contudo, entre os teólogos, do período que estamos estudando, essa identidade era interpretada de pelo menos duas maneiras diferentes" (Ibid. 335). Então essa noção de realismo não é unívoca, tendo camadas de sentido que, como diz Kelly, possuem lógicas mutuamente excludentes, como ele diz: "Contudo, entre os teólogos, do período que estamos estudando, essa identidade era interpretada de pelo menos duas maneiras diferentes e permitia-se com freqüência [sic] que tais interpretações se sobrepusessem, embora pela lógica estrita fossem mutuamente exclusivas" (Ibid. 335). Então temos duas noções de realismo que são mutuamente excludentes. E essa nota distintiva deve significar tudo o que o Kelly falará sobre a questão.

    Convocando o sr. Fábio Moraes à luz da compreensão kellyana, lembrando que o sr. Fábio prometeu "dizimar" em nossos "muquifos" e "garagens", passo à distinção entre esses dois realismos que, em essência, possuem significados mutuamente excludentes, como já dito. Kelly diz: "Em primeiro lugar, o ponto de vista figurado ou simbólico, que enfatizava a distinção entre os elementos visíveis e a realidade que eles representavam, ainda tinha certo apoio. Conforme vimos ele [o ponto de vista simbólico] remontava a Tertuliano e a Cipriano, e haveria de obter impulso renovado pela influência poderosa de Agostinho" (Ibid. 335). O que JND Kelly diz aqui é que não há contradição entre a percepção da eucaristia no campo do realismo atual e a concepção simbolista (que estão unidos em uma teoria apenas), e isso é assim porque esse tipo de teologia enfatiza o realismo da presença de Cristo no pão e no cálice (pão e cálice que são figuras, atítipos ou símbolos do corpo e sangue de Cristo) embora de forma espiritual.

    Essa teoria, que é abraçada por Tertuliano, Cipriano e Agostinho, é distinta da segunda visão que foi ganhando espaço na teologia teologia do século IV. Kelly discorre assim sobre o segundo tipo de teologia cuja ênfase está na transformação dos elementos do pão e do vinho: "Em segundo lugar, contudo, uma nova tendência cada vez mais forte começa a aparecer, explicando a identidade como resultado de uma mudança ou transformação real no pão e no vinho" (Ibid. 335). Destaquei a palavra identidade para que compreendamos algo importante, pois quando Kelly usa esse termo ele se refere à identidade entre as espécies do pão e do vinho com o corpo e sangue de Cristo. Em geral essa segunda teoria enfatiza uma "transformação", embora nos casos que Kelly cite, como o de Gregório de Nissa, essa "transformação" das espécies ainda não é o que poderíamos chamar de "transubstanciação", mas uma espécie de "encarnação" da palavra no pão que, por ser matéria, é corpo em potencial, como podemos perceber na obra A Grande Catequese de Gregório de Nissa (Oratio Catechetica Magna 9-12).    

    Explicando a primeira teoria, (onde ele enquadra Tertuliano, Cipriano e Agostinho) é de suma importância que ele cite as "Constituições Apostólicas", um documento do séc. III,IV d.C. Mas nas palavras de Kelly: "Como exemplo da primeira tendência, podemos citar as Constituições Apostólicas, que descrevem os mistérios como 'antítipos (antitypa) de Seu precioso corpo e de Seu sangue' e falam da celebração da morte de Cristo 'por meio dos símbolos (symbolõn charin) de Seu corpo e sangue'. Na liturgia, damos graças pelo sangue precioso e pelo corpo, 'dos quais celebramos estes antítipos' (antitypa). Ao mesmo tempo, porém, a fórmula no momento da comunhão é 'o corpo de Cristo' e 'o sangue de Cristo'. Enquanto se refere aos elementos como 'o corpo e o sangue', Serapião fala de 'oferecer este pão' como 'semelhança (homoiõma) do corpo do Unigênito' e de 'oferecer o cálice' como 'semelhança (homoiõma) do sangue' (Ibid. 335). Tudo isso está na página introdutória do capítulo que trata da "Presença na Eucaristia" do livro do JND Kelly (Patrística) que é tão (mal) citado em círculos católicos romanos de apologética. E aqui já poderíamos nos dar por satisfeitos quanto à tese de Kelly quando ele diz que Tertuliano, Cipriano e Agostinho (junto com Serapião) estão enquadrados na "primeira tendência", que é a simbolista. Mas sigamos em frente.

    Como exemplo da primeira tendência ele não deixa de enquadrar também Eusébio de Cesareia que, certamente, é o simbolista mais evidente do grupo. Da mesma forma Kelly destaca algo interessante, que é a forma litúrgica da celebração eucarística - à qual muitos apologista católicos se apegam pensando que daí colhem muita coisa, ignorando que os simbolistas também eram fiéis à formula litúrgica que afirma ser o pão o corpo e o vinho o sangue de Cristo. Citando o caso de Eusébio de Cesaréia (algo que não se restringe a ele, pelo que percebemos no próprio texto) Kelly diz: "Os teólogos empregam a mesma linguagem das liturgias [sobre o pão ser o corpo e o vinho o sangue]. Assim, Eusébio de Cesaréia, enquanto declara que 'somos continuamente alimentados com o corpo do Salvador e participamos continuamente do sangue do Cordeiro', também afirma que os cristãos celebram todos os dias o sacrifício de Jesus 'com os símbolos (dia symbolõn) de Seu corpo e de Seu sangue que salva', e que Ele instruiu Seus discípulos a compor 'a imagem (iên eikona) de Seu próprio corpo' e a empregar o pão como símbolo disso" (Ibid. 335). Seguindo, e citando Eustácio de Antioquia, Kelly afirma: "Seu contemporâneo [de Eusébio], Eustácio de Antioquia, ao comentar Provérbios 9.5, diz que 'com o pão e o vinho ele [isto é, o autor] se refere profeticamente aos antítipos dos membros corporais de Cristo'" (Ibid. 335,336).

    Mas ao compreender a teoria simbolista não é possível depreender daí que os símbolos do corpo e sangue de Cristo são qualquer espécie de símbolo. Evidentemente se trata de um "sacramento" que não apenas aponta para a realidade, como a manifesta. Kelly diz: "Obviamente, não se deve supor que essa linguagem 'simbólica' deixasse implícito que o pão e o vinho eram considerados meros indicadores ou indícios de realidades ausentes. Pelo contrário, eram aceitos como sinais de realidades que, de alguma forma, estavam de fato presentes, embora fossem captadas somente pela fé" (Ibid. 336). Ele cita o caso do próprio Eusébio de como essas realidades poderiam estar presentes: "Quanto a uma interpretação que realmente espiritualiza, devemos examinar os herdeiros da tradição origenista. Eusébio de Cesaréia, por exemplo, embora geralmente satisfeito com a doutrina 'simbólica', também está pronto a deduzir, a partir de João 6, que aquilo que o Senhor disse a respeito de comer Sua carne e beber Seu sangue deve ser entendido num sentido espiritual. A carne e o sangue que Ele exigiu que Seus discípulos comessem e bebessem não eram Sua carne e sangue físicos, mas, sim, Seu ensino" (Ibid. 336). Nada há aqui de transubstanciação, embora se perceba o "realismo atual" dos adeptos da teoria simbolista.

    Entrando propriamente no campo agostiniano, Kelly faz um interessante contraste entre a influência de Ambrósio de Milão e de Agostinho, que, segundo ele, sinalizam duas espécies de ênfases diferentes sobre a eucaristia. Sobre Ambrósio, Kelly diz: "Deve-se assinalar que Ambrósio não rejeita as expressões mais antigas, falando, então, do corpo de Cristo 'denotado' (corpus significatur) pelo pão, e do vinho 'chamado' (nuncupatur) de Seu sangue após a consagração. O sacramento é recebido “numa semelhança” (in similitudinem), mas transmite os aspectos da realidade que representa. No entanto, a idéia [sic] de transformação é a mais característica de seu ensino. A consagração, sustenta ele, é um milagre do poder divino, análoga aos milagres registrados na Bíblia; ela opera uma mudança real nos elementos (species mutet elementorum), um ato quase criador que lhes altera as naturezas (cf. mutare naturas), transformando-as em algo que anteriormente não eram" (Ibid. 339). E continuando ele afirma a distinção entre Ambrósio e Agostinho: "Se a influência de Ambrósio ajudou a levar para o Ocidente a doutrina de uma mudança física, a de Agostinho foi exercida numa direção bem diferente" (Ibid. 339). Kelly ainda afirma que ainda que "mas um veredicto judicioso haverá de concordar que Agostinho aceitava o realismo vigente à época" (Ibid. 340), entendendo por realismo a ideia de que por meio das espécies o Senhor quis transmitir seu corpo e sangue. Kelly cita o sermão 227 de Agostinho: “Aquele pão que vedes sobre o altar, santificado pela Palavra de Deus, é o corpo de Cristo. Aquele cálice, ou melhor, o conteúdo daquele cálice, santificado pela palavra de Deus, é o sangue de Cristo. Por meio desses elementos, o Senhor Cristo quis transmitir Seu corpo e Seu sangue, que Ele derramou por nós” (Ibid. 340). Kelly também discorre sobre a adoração ao escabelo dos pés de Deus [a passagem tão citada por católicos romanos]: "Ao comentar a súplica do salmista para que adoremos o estrado de Seus pés, ele destacou que isso deve ser a terra. Mas, uma vez que adorar a terra seria blasfemo, ele concluiu que a palavra apontava misteriosamente para a carne terrena que Cristo tomou para si e nos deu para comer. Desse modo, era o corpo eucarístico que requeria adoração" (Ibid. 340). Embora eu discorde francamente de Kelly nesse sentido - já que não existe cânone litúrgico na época de Agostinho que fale da adoração do pão, assim como a citação em latim só diz "adorar" (a carne de Cristo) e não "adora-lo", como se referindo ao pão (nemo autem illam carnem manducat, nisi prius adoraverit) -, ele também reconhece: "Também é verdade que, eventualmente, Agostinho utiliza uma linguagem que, por si só, poderia sugerir que ele via o pão e o vinho como meros símbolos do corpo e do sangue. Assim, quando o bispo africano Bonifácio indagou como se pode dizer que crianças batizadas têm fé, a resposta de Agostinho foi que o batismo em si era chamado fé (fides) e que a linguagem usada na época permitia à pessoa designar o sinal pelo nome da coisa significada. Por exemplo, embora Cristo obviamente tenha sido morto apenas uma vez, é correto falar que, num sentido sacramental, Ele morre diariamente. “Pois se os sacramentos não tivessem certa semelhança com as coisas das quais são sacramentos, eles não seriam sacramentos. Na maioria dos casos, essa semelhança faz com que recebam os nomes daquelas coisas. Dessa maneira, como o sacramento do corpo de Cristo é, de certa forma, o corpo de Cristo, e o sacramento de Seu sangue é, de certa forma, Seu sangue, assim também o sacramento da fé é fé” (Ibid. 340,341).

    É importante frisar aqui que Kelly assume uma forma de argumentação elíptica, e vai aproximando cada vez mais a periferia dos fatos apresentados do centro do juízo ao qual ele quer dar sobre a teologia agostiniana. É por isso que agora ele entra em maiores explicações sobre o realismo agostiniano que enfatizava a presença real de Cristo no sacramento, embora o enquadre no espectro dos simbolistas e não daqueles que enfatizava a "transformação dos elementos". Kelly explica a distinção entre o sinal e a realidade apontada pelo sinal: "Aqui, no entanto, o argumento pressupõe a distinção de Agostinho entre um sacramento como sinal e a realidade, ou res, do sacramento, sobre o qual se fez referência acima.1 Considerados como objetos físicos e fenomenais, o pão e o vinho são propriamente sinais do corpo e do sangue de Cristo; se, por convenção, eles são designados como Seu corpo e sangue, deve-se admitir que não o são lieralmente, mas 'de certa maneira'. Por outro lado, na eucaristia há tanto aquilo que se vê [sinal] quanto aquilo em que se acredita [a coisa apontada elo sinal]; existe o objeto físico de percepção e o objeto espiritual apreendido pela fé, e é este último que alimenta a alma. Mesmo na passagem citada, a linguagem de Agostinho tem plena coerência com seu reconhecimento da realidade e da presença concreta do objeto espiritual" (Ibid. 341). Aqui se explica que embora reconhecendo o sacramento como sinal que aponta para outra realidade, Agostinho ainda assim afirma que unido ao sinal está aquilo que é sinalizado (o Corpo e o Sangue de Cristo) fruídos espiritualmente. A evidência disso é que Kelly nega que Agostinho entenda a teologia eucarística em termos de "conversão", como assinala: "Isso nos leva à questão fundamental de como Agostinho entende o corpo eucarístico. Em seus escritos, não existe nenhuma sugestão da teoria da conversão, ou transformação, defendida por Gregário de Nissa e Ambrósio" (Ibid. 341); ora, se não há "conversão" ou "transformação", como Kelly pode dizer que Agostinho cria na transubstanciação, teologia que é ininteligível sem os conceitos de transformação ou conversão da substância do pão e do vinho na substância do corpoo e sangue de Cristo?

    Tendo em vista tudo isso, agora chegamos novamente na citação (já apresentada neste texto) onde irei destacar o que o sr. Fábio Morais aponta, embora fora do texto completo, como prova de que Agostinho não era um simbolista, onde Kelly afirma: "Como seria de esperar, seu pensamento percorre muito mais o caminho aberto por Tertuliano e Cipriano [simbolistas]. Por exemplo, ele fala do 'banquete em que Ele apresentou e entregou a Seus discípulos a figura (figuram) de Seu corpo e sangue'. Mas ele vai mais longe do que seus predecessores, formulando uma doutrina que, embora radicalmente realista, é também francamente espiritualizante. Em primeiro lugar, Agostinho deixa claro que o corpo ingerido na eucaristia não é rigorosamente idêntico ao corpo histórico de Cristo, e representa-o" (Ibid. 341). Ora, é evidente que a ideia da representação está enquadrada no espectro das teologias de Eusébio de Cesaréia, Serapião, Tertuliano e Cipriano, onde as espécies não são, mas representam e se identificam de certa forma com o corpo e o sangue de Cristo, os quais são fruídos real, mas espiritualmente. Assim Kelly continua: "Em segundo lugar, num enfoque mais positivo, a dádiva que a eucaristia transmite é o dom da vida. Trata-se de uma dádiva espiritual, e os atos de comer e beber são processos espirituais. O corpo eucarístico não é a carne palpável; pelo contrário, nós recebemos a essência dessa carne, a saber, o espírito que a vivifica. Às vezes ele leva essa tendência espiritualizante ao extremo, como quando diz “Por que preparais vossos dentes e vosso estômago? Crede, e tereis comido”; ou: “crer nEle é comer pão vivo. Aquele que crê, come, e fica invisivelmente satisfeito, porque renasce invisivelmente”. No entanto, o que ele de fato quer dizer com isso é que o corpo e o sangue de Cristo não são consumidos de forma física e material; o que é consumido dessa maneira é o pão e o vinho [não há transformação]. O corpo e o sangue são, de fato, recebidos pelo comungante, mas de forma sacramental ou, como poderíamos dizer, in figura" (Ibid. 341,342).

    Nunca é demais se concentrar nesse ponto defendido pelo Kelly: nada há na obra agostiniana que sugira uma "transformação" ou uma "conversão" dos elementos do pão e do vinho, embora recebamos pela fé, realmente e espiritualmente, o corpo e o sangue de Cristo nas espécies do pão e do vinho significadas pela Palavra de Cristo. O que deixa algo claro: para JND Kelly, não há transubstanciação em Agostinho e sim, por conclusão, um simbolismo místico que afirma a presença atual do Cristo oferecido no sacramento; e como podemos tomar nota, Kelly segue a teologia agostiniana apresentada em sua obra madura sobre hermenêutica bíblica, que é o "Doutrina Cristã": "Sob a servidão do sinal vive quem faz ou venera uma coisa significante sem saber o que ela significa. Mas quem faz ou venera a um signo útil instituído por Deus, cuja virtude e significado entende, não veneram o visível e transitório, mas Aquele a quem a quem todos esses signos se referem [...] Tais são: o sacramento do batismo e a celebração do corpo e do sangue do Senhor. Quando alguém os recebe, bem instruído, sabe a que se referem, por conseguinte, venera-os com liberdade espiritual e não com servidão carnal. Ora, seguir a letra e confundir os sinais com aquilo que os sinais significam indica fraqueza e servidão. Interpretar os sinais erradamente é o resultado de estar sendo conduzido pelo erro(AGOSTINHO - Doutrina Cristã. III.9.). Note que Agostinho faz a distinção notória entre o sinal (o significante, que é sacramento visível) e aquilo para o qual o sacramento aponta (significado, que é Cristo), e diz que é "fraqueza e servidão" confundir os sinais (significantes) com aquilo que os sinais significam (significados). Todo mundo que conhece a teoria do signo sabe que o signo é composto por significante e significado, sendo que o significante seria o "sinal visível" (um pão, um vinho, um desenho, etc.) e significado, que é aquilo para o que aponta o "sinal visível" - podendo ser esse significado algo abstrato (uma ideia, o amor a bondade) ou concreto (um país, uma propriedade, o corpo de Cristo etc.).

    Bem, está respondida a razão pela qual Agostinho pode ser tanto o signatário de um "atualismo radical", como alguém que é também signatário da teoria simbólica. E espero que o senhor Fábio Morais encontre a igreja evangélica mais pobre que ele encontrar por aí, o "moquifo mais rude" e sirva com com dinheiro e com coração generoso aqueles irmãos que realmente crêem em Cristo, servindo-o em espírito e em verdade, já que diariamente comem pela fé o corpo e o sangue de Cristo, fruindo verdadeiramente do seu sacrifício realizado no cimo da cruz.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Calvino e a Interpretração de Tt 2.11b

 "Trazendo salvação a todos os homens".

    O apóstolo expressamente declara que a salvação vem ao encontro de todos os homens, tendo em mente especialmente os escravos de quem estivera precisamente falando. 'Ele não está se referindo a pessoas individualmente', mas, antes, 'a todas as classes de pessoas com suas diversas formas de vida'; e põe forte ênfase sobre o fato de que a graça de Deus se condescendeu até mesmo dos escravos. Visto que Deus não despreza nem mesmo a mais humilde e a mais degradada classe de pessoas, seria extremamente irracional se porventura nos fizéssemos negligentes em abraçar sua generosidade.

Sobre o Significado do Termo "Metafísica"

    O termo metafísica pode ser muito enganosos se por esse termo entendemos apenas algo que está além da realidade física, como a esfera sobrenatural. Na verdade a metafísica, como concebida originalmente, nada mais é do que a ciência das causas cujo conhecimento é sabedoria, pois ao sábio cabe o conhecimento da causa das coisas ou dos primeiros princípios.

Nesse sentido ao sábio pertence o conhecimento da ordem das coisas e a sua finalidade, assim como o conhecimento do primeiro princípio ao qual tudo se ordena, ou o conhecimento do fim, sendo o fim o bem por excelência e, por isso, a causa de todas as causas, assim como a causa de todo o bem nas coisas.
    No entanto, note que no conhecimento da "causa das causas" não se deixa de lado as causas intermediárias, ou próximas. É por isso que metafísica não é mero sobrenaturalismo, pois a esta ciência cabe o conhecimento também das coisas que nos são próximas, como deste livro que tenho aqui, do seu conteúdo e o fim ao qual é destinado (o seu fim último, ou sentido).
    Aristóteles tem em mente quatro causas principais pelas quais podemos entender a ossatura daquilo que podemos conceber como "metafísica". Tais são: 1) A causa eficiente, como aquela como razão do movimento, da efetivação ou concreção de alguma coisa; 2) A causa formal, como aquela que explica o porquê da coisa, ou sua definição; 3) A causa material, como aquela com a qual se explica a composição ou materialidade da coisa; 4) E a causa final que explica a finalidade para a qual algo está ordenado.
    Um exemplo dado por Aristóteles no seu livro "Metafísica" para explicar de forma simples cada uma dessas causas é o exemplo da casa, sendo que: 1) A causa eficiente da casa - que provoca a sua efetivação - é a ciência da construção da casa (a arte); 2) A causa formal é definição da casa que faz ela ser o que é; 3) A causa material são as pedras e a madeira; 4) A causa final é a finalidade a que se destina a casa - já que ela foi feita tendo em vista a moradia, o conforto etc.
    Note-se que a aplicação desse esquema de causas cabe em inúmeras considerações que podemos fazer sobre as coisas, e se isso nos leva a uma causa suprema, uma causa das causas que a tudo determina, sem no entanto ser ela mesma determinada, isso é uma exigência da própria lógica da reflexão. Obviamente podemos - e devemos - adquirir as notas de uma realidade sobrenatural (ou suprema) por essa via, no entanto seria inconcebível que fizéssemos pouca caso da ordem do mudo sem a qual tal ciência das causas sequer faria sentido, pois não teria de quê partir para se elevar a um primeiro princípio de tudo.

A Palavra de Deus e a Teologia da Ceia do Senhor nos Reformadores

    Um dos aspectos da teologia sacramental da Reforma foi, por exemplo, conjugação do sinal com a Palavra anunciada. Para Lutero e Calvino, por exemplo, o sacramento da Ceia era uma outra forma da manifestação da Palavra - Palavra que, necessariamente, transmite graça. A questão é que sem a Palavra pregada o sinal sacramental não estaria conjugado ao seu sentido na mente do fiel, e levando em consideração que a participação na mesa é uma participação ativa, fundada na fé confiante nas promessas divinas (Hb 11.1), sendo que a fé vem pelo ouvir da Palavra (Rm 10.17), a pregação da Palavra que imprime o significado ao sinal se tornou importante no protestantismo. Essa é uma das razões pelas quais tanto Lutero quanto Calvino abominaram o pronunciamento secreto das palavras da consagração dos elementos, que era algo costumeiro na época deles.

    Particularmente, penso que ambas, a Palavra e a Ceia, são o culto. E entendo aqui a insistência dos reformadores em enfatizar o aspecto central na Palavra no Culto, muito em função da posição que a Palavra tem na formação e infusão da fé. Eu sou protestante, e estou longe de entender que a participação litúrgica dispense a fé do participante, e a fé ativa e consciente no participado - mesmo porque a recepção digna depende da qualificação do ato da recepção como ato de fé.

    A Palavra é mesmo indispensável para uma participação consciente no sacramento. Paulo em I Co 11.19 diz que quem participa da mesa "sem discernir o corpo do Senhor" peca. Ora, o discernimento na participação da Ceia requer um participar consciente, e um participar consciente requer conhecimento da Palavra que exige um ato qualificado de participação, pois o sacramento é uma dádiva para quem crê e não para quem não crê, não sendo o propósito dele a provocação da mesma fé, senão o seu fortalecimento. Isso é contrário à noção de um poder físico no sacramento que dispensa a fé ativa, por provoca-la. Sim, importa aqui afirmar categoricamente que a Ceia tem uma posição central no culto junto com a Palavra, e só conjugada a ela, pois a Ceia é a Palavra-Pão assim como a Palavra-Cálice da nossa salvação.

Pierre Hadot e a Filosofia Antiga como Disciplina Espiritual


    
Esse livro é realmente maravilhoso, e a razão disso é que ele explica que muito mais do que a atividade diletante a que muitos profissionais em filosofia transformam a filosofia, em sua origem a atividade filosófica era compreendida como uma atividade de conversão, de cuidado de si, de meditação, ou seja, como um exercício espiritual, e o diálogo do filósofo era compreendido como uma psicagogia, ou seja, a condução das almas em direção ao conhecimento de si, assim como à formação de um hábito no qual seria possível fugir das paixões e ilusões que destroem a vida, atingindo assim o bem da alma, a sua reta ordem e, como consequência, a verdade do mundo.

    Pierre Hadot nessa obra clássica esclareceu, para mim pelo menos, a razão pela qual muitos ascetas antigos, embora não sendo produtores de grandes obras filosóficas, eram mesmo assim chamados de filósofos. No livro "História Eclesiástica" de Eusébio de Cesaréia é relatado um grupo de monges que foram descritos como pessoas que levavam uma "vida filosófica" mediante jejuns, orações, disciplina etc. Lança luz sobre essa questão o fato de Orígenes de Alexandria (séc. II e III d.C.) desenvolver um ideal de vida que inspirou o monasticismo cristão. Levando uma vida de rigoroso estudo, orações e jejuns, Orígenes fundiu o ideal da vida cristã com a "vida filosófica", sendo o estudo para ele um dos exercícios espirituais pelos quais era possível uma elevação da mente a Deus.
    Salta aos olhos para quem conhece a literatura cristão antiga o grande tema da "purificação da mente e da contemplação de Deus", ou da "realidade inteligível eterna" mediante a superação de uma vida "enterrada nas paixões" por ter como finalidade última o meramente sensível. Em Justino de Roma, Atenágoras de Atenas, com Orígenes, Novaciano, Atanásio, Agostinho etc. o tema da mente que se torna apta à contemplação de Deus mediante a purificação e elevação do sensível ao inteligível é algo recorrente. Aqui é evidente o fato de que a unidade entre teoria (em seu sentido original de "contemplação") não está desvinculada da prática espiritual, mas é constitutiva e a meta mesma da disciplina, da pureza e da prática evangélica como um todo, assim como a condição mesmo dessa prática. Aqui a prática filosófica de vida ordenada e vencedora das paixões e unida à fé é uma verdadeira conversão que traça o itinerário do espírito e da mente em direção a Deus.