terça-feira, 26 de julho de 2022

Jerônimo e a Precedência das Escrituras Hebraicas sobre as Escrituras Gregas

    Há uma precedência das Escrituras hebraicas sobre as gregas?

    Assim se posicionou Jerônimo (342-420 d.C.)*:

Os discípulos dos apóstolos se utilizam das Escrituras hebraicas. É evidente que os evangelistas e os apóstolos fizeram eles próprios o mesmo. O Senhor e Salvador, todas as vezes que faz menção ao Velho Testamento, cita exemplos dos volumes hebraicos, como esta passagem: “Aquele que crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva fluirão de seu ventre”(1), e na própria cruz: “Eli, Eli, lema sabachtani” (2), o que se traduz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, não como foi citado pelos Setenta: “Ó Deus, meu Deus, olha-me, por que me abandonaste?”, e muitas passagens a estas similares. E se dizemos isto, não é que estigmatizamos os Setenta tradutores, mas é o Cristo e os apóstolos que têm mais autoridade, onde quer que os Setenta não estejam em desacordo com o hebraico, aí os apóstolos tomaram exemplos de sua tradução; onde há divergência de fato, eles puseram em grego o que haviam aprendido junto aos hebreus.*

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[*] JERÔNIMO. Apologia Contra os Livros de Rufino. II.34

[1] Jo 7.38

[2] Mt 27.46; Sl 22.

Heidegger, Kierkegaard, o Princípio Matemático da Filosofia e a Revelação

    No livro "Ser e Verdade" Heidegger discorre sobre questões relativas ao próprio da filosofia ocidental. Lá ele tem uma tese interessante, que é a de que o "matemático" é princípio ocidental da filosofia. Por "matemático" ele compreende não meramente uma disciplina relativa aos números, mas algo que funda e determina essa filosofia, e discorrendo sobre o sentido próprio do "matemático" Heidegger aponta para a raiz dessa palavra, a saber, "mathema", aquilo que é, segundo os gregos, o próprio do que é passível de ensino e passível de ser aprendido ("mathesis"). Entre as coisas que podem ser aprendidas, os "methemata" se distinguem de outros setores do conhecimento, na área especulativa da física (physis), e na área da produção (poiómena) etc. Diferentemente desses outros setores, os "methemata" não estão atrelados àquilo que é dado como fenômeno, mas se distinguem por serem objetos que, podemos dizer, o ser humano se dá a si mesmo como realidades captadas em sua pureza apenas pela razão, não por fenômenos ou pela experiência.

    Aqui podemos dizer que seria simples reducionismo entender o "matemático" como números, relações numéricas, pontos, sólidos, linhas etc. Como dirá Heidegger, esses elementos são "matemáticos" apenas em sentido derivado; são elementos constituídos pelos "mathemata" e não constitutivos deles. Não leva muito tempo para que com isso possamos reconhecer que essa disciplina, que engloba o "ensinar e aprender", nos conduz à premissa de um método que serviu como o ponto de partida da filosofia platônica, e que revela assim o sentido dos "mathemata" no pensamento grego, a saber, a "maiêutica", que era método do partejamento de ideias pelo qual Sócrates extraia o conhecimento latente na alma daqueles que ele aplicava esse método. Essa premissa platônica que funda o método maiêutico está em que o homem é fonte de conhecimento para si, mas não porque ele detém o conteúdo de todos os fenômenos, e sim porque ele carrega em sua razão o princípio fundamental desse mesmo conhecer.

    Aqui é interessante notar que voltamos à epígrafe sustentada na porta do templo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo". Esse é o próprio do pensamento grego, pois é nessa volta a si mesmo que o homem pode ter acesso àquele princípio "matemático" que o conduz à verdade, à verdade que não vem a nós pelo fenômeno ou por algo externo a nós, mas que é congênito a nós. O mesmo Spinoza, quando afirma que a exposição no seu "Ética" é feito more geometrico demonstrata, ou "segundo a modo de demonstração geométrica", não quis dizer que sua obra partia dos princípios da geometria analítica e da análise das formas espaciais, mas sim que seu procedimento era dedutivo, se seguindo de premissas, cuja conclusão era rigorosamente revestida e reforçada por uma armadura formal. Tal lógica se funda em um princípio racional que o homem se dá e pelo qual ele pode julgar e concluir. É um próprio humano.

    É impossível você chegar nesse ponto e não ver a semelhança com a postulação aparentemente simples de Kierkegaard, que distingue o "próprio do cristianismo" com o "próprio dos gregos" no "Migalhas Filosóficas". Explico: Toda essa descrição do "princípio matemático" que, segundo Heidegger, domina a filosofia ocidental é uma preparação para um confronto direto com Hegel, que segundo Heidegger é o clímax do desenvolvimento da "tendência ocidental" na filosofia, filosofia que é Théo-Lógica.

    No Migalhas Filosóficas Kierkegaard opõe dois métodos para a aquisição da verdade, preparando assim seu ataque à filosofia hegeliana. O primeiro método, que é o grego, parte da premissa de que o homem é mestre para si, tendo a maiêutica socrática como evidência máxima dessa compreensão. No cristianismo a premissa é totalmente outra, pois a verdade não é alcançada por um método pelo qual o homem se põe a caminho, nem é aquilo que o homem dá a si mesmo necessariamente, mas sim aquilo que nos chega, e não algo para onde vamos, é aquilo que é dado por outro, a saber, o Cristo e a sua revelação, e não algo que damos a nós mesmos e nem nos damos partindo dos fatos da natureza. Kierkegaard parte daquilo que Schelling chamará de "filosofia positiva", ou a "filosofia da revelação", algo que não pode ser uma verdade que alcanço necessariamente pela via da dedução, algo a que chego sem que coisa alguma fora de mim me seja dada. Kierkegaard conclui aqui o que os teólogos sempre souberam, a saber, que o posto pela revelação divina não é uma verdade simplesmente dedutível (pela via negativa, no sentido do idealismo alemão, i. e., pela via da razão pura), e nem dedutível a partir dos fatos naturais dados, mas é algo eminentemente positivo (para além do positivo simples da natureza), a saber, se trata do que Deus decidiu estabelecer segundo a sua vontade (potência ordenada), vontade que não tem razão de ser a não ser o desejo divino, muito embora os (melhores) teólogos também sempre tenham afirmado que a revelação não é contrária à razão, pois, como deduzir a ressurreição dos mortos da simples razão ou a partir dos fatos da natureza? E como considerar a ressurreição irracional pelo ângulo da potência absoluta de Deus?

    Embora Heidegger parta desse ponto de vista kierkegaardiano - levando em consideração que Kierkegaard foi, possivelmente, o mais violento inimigo de Hegel -, ele não permanece em todos os pontos de vista cristãos de Kierkegaard, e também rompe o equilíbrio estabelecido entre a filosofia e a revelação como foi estabelecido ao longo da história da Igreja. Sabemos que Heidegger foi um monstro, mas é interessante notar o seu itinerário argumentativo e o amplo domínio que possuía da história da filosofia, indicando certos pontos doentios dessa história (em Descartes) e as fragilidades de quem considera a realidade apenas do ponto de vista daquilo que o homem pode dar a si mesmo em sua razão, desconsiderando que nem tudo o que compõe a verdade (nem a verdade superior) pode ser dado ao homem pelo próprio homem.

Sola Scriptura e Equívocos

    Existe uma confusão muito grande que visa implodir a validade do princípio protestante Sola Scriptura. Nenhum teólogo protestante afirma que a Igreja inexistiu sem a Escritura, ou sem o conjunto dessas escrituras. Todas as igrejas onde haviam pessoas com fé e batizadas eram comunidades cristãs. Ninguém nega hoje que existam cristãos - na China, Coreia do Norte e em outros lugares - sem a Escritura ou apenas com parte dela. O que não existe é uma igreja sem a Palavra de Deus e sem a fé em Cristo (que é a Palavra de Deus).

    Outra questão é a seguinte: a positivação do conteúdo da pregação é uma tendência dos atos divinos que remonta ao Antigo Testamento, e certamente tudo visando o nosso bem. E o que sobra do AT para nós cristãos não são as "tradições orais" - que os fariseus alegavam também ter -, mas sim os oráculos positivados nos textos bíblicos. Não seguimos os ensinos de Platão que repugnava a positivação das "doutrina esotéricas" em escrito (e se Platão consignava suas doutrinas em cartas, mandava que os destinatários, uma vez lidas as correspondências, as queimassem). A razão disso é que a revelação é uma instituição pública, manifesta pelo interesse de todos os homens, sem ambiguidades, e sem se tratar de uma mensagem restrita a uma elite. É a comunicação divina, manifesta em escrito, à humanidade que ele criou.
    Pensem bem: a imensa maioria dos ensinos esotéricos (e temos acesso a parte deles em documentos que não foram queimados) dos gregos se perderam, e esses eram transmitidos via "tradição oral". Outros, se estão aí, nem sabemos se remontam aos mestres dos mistérios gregos. Mas uma coisa sabemos: o apelo à "tradição oral" é muito próprio de um discurso de uma "elite mística", depositária de mistérios. Foi assim que os gnósticos conseguiram arrastar parte da igreja, já que eles alegaram terem recebido esses ensinos diretamente dos apóstolos (algo impossível de provar e também de refutar). Sendo assim, aquilo em que os polemistas cristãos se fiavam era na revelação pública, revelação positivada nas Escrituras, e transmitida pelos apóstolos e evangelistas às igrejas - pois essas palavras eram palavras dos profetas e Apóstolos.
    E uma nota importante: mesmo Irineu de Lyon, bispo cristão do séc. II e III d.C., em sua polêmica contra a heresia gnóstica, apelava firmemente para o sentido dos textos sagrados para refutar os ensinos desviantes dos gnósticos E quando apelava para a paradosis (a tradição, ou aquilo que foi entregue) tinha em mente uma coisa: a reta interpretação das escrituras deixadas pelos apóstolos e profetas. Como prova disso o texto do mesmo Irineu entitulado "Demonstração da Pregação Apostólica" nada mais trata do que o conteúdo da Escritura e da reta forma de vê-la. Nada mais do que isso e nada menos, o que nos leva à conclusão de que a tradição é a própria Escritura e a sua reta interpretação, pois foi a Escritura e as Palavras ali consignadas que nos foram entregues (paradosis), por amor a nós, em condescendência pela nossa fraqueza, para a nossa salvação.
P.S.: O fato de Irineu de Lyon no "Contra as Heresias" ter acusado os heréticos gnósticos de terem com eles uma "estátua de Cristo" já deveria nos sinalizar qual era a sua interpretação da Escritura, e qual o seu entendimento a respeito do preceito de Deus para as igrejas.

A Piedade e a Bondade

    O termo "piedade", que soa algo tão batido por estar relacionado, por vezes, à velharia carola ou à pieguice, remonta ao termo grego ευσεβεια (eusebéia), que até constitui nomes como "Eusébio". Sonoramente é algo estranho a nós também. Em nossa língua, piedade deriva diretamente do termo latino "pietatis", que é algo mais bonito e sonoro, se ligando à noção de "observância estrita", e, por tanto, ao sentido de dever - até de deveres contraídos que não escolhemos por nós. Assim, é dever de piedade amar a nação onde nascemos, honrar os pais que se tem, amar os irmãos que nos são dados e, enfim, ao Deus que nos trouxe à luz sem nossa consulta, o qual nos deu um corpo que não escolhemos e nos colocou obrigações que não contratamos, mas às quais somos ligados por uma condição atávica. O ímpio, dessa forma, age como Prometeu, o símbolo dos libertários, aqueles que, segundo o Salmo nº2, sob a incitação da fúria desejam "desfazer as suas amarras" (leia-se as amarras postas por Deus), ou seja, todas essas obrigações.

    O termo latino "pietatis" soa, por vezes, com certa secura ascética, refletindo uma obediência de tipo monacal ou mesmo militar, algo que mesmo que traga à nossa presença o senso de veneração, contudo, não parece evocar hoje, em um primeiro momento, aquela amabilidade na qual podemos descansar, embora o termo não exclua nada disso, antes signifique essas coisas de forma expressa. Nesse sentido o termo hebraico חֶסֶד (chesed) pode vir em nosso socorro, clareando a noção de "pietatis". Esse mesmo termo (chesed) nomeou movimento místico que brotou entre os judeus - do qual o próprio Martin Buber fez parte - chamado "hassidismo", ou "chassidismo".

    Mas o que importa aqui é que o termo "chesed" significa aquela liberdade em bondade, benignidade, compaixão, benevolência, graça e mesmo beleza (Is 40.6). Assim, para facilitar a compreensão, toda vez que a escritura evoca o termo "piedade" podemos trazer à mente primeiramente a luz que brota desse fundo semítico, clareando assim seu significado, e entender por isso aquela virtude onde o homem se encontra exclusivamente devotado àquele bem que o torna digno de afeto e amor. Se aquela observância ascética é algo que para a mente de hoje separa - embora essa observância separe não por motivos ruins, diga-se, pois o próprio "santificado" carrega essa noção de "separado" -, a piedade, assim como chesed (חֶסֶד), é algo que, em um primeiro plano, convida, agrega e nos eleva em amor em direção a Deus e àquele que, como nós, é imagem de Deus.

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Dooyeweerd, Turretini: O Conflito Entre os Princípios Formal e Material na Teologia

    Para a alegria dos neocalvinistas dooyeweerdianos, uma leitura a respeito do tema da Imagem de Deus nos teólogos escolásticos reformados (Turretini) justifica a afirmação de que a antropologia de teólogos romanos carrega em si o conceito de que natureza e forma são princípios em tensão - mais especificamente na conceituação de natureza humana.

    No Compêndio Turretini afirma que ao definir o que é o homem no estado de natureza, o Cardeal Roberto Belarmino ensina que in statu naturali, ou seja, não considerando o homem na posse do donum superadditum infundido no primeiro homem para que ele pudesse andar em justiça diante de Deus, certa "langueza" da natureza nos acompanha em função do conflito entre o princípio material (corpo) e o princípio racional (alma).
    Por langueza entendemos a "fomes peccati", que embora não seja pecado (como matéria de condenação), para Belarmino constitui o "princípio do pecado". Aqui estamos falando daquela concupiscência que não é afirmada como razão formal de condenação, mas que domina o homem in statu naturali desassistido do "dom sobrenatural", o qual é adicionado à natureza humana, reordenando seus afetos, colocando o homem em ordem ao seu fim sobrenatural (Deus).
    Muito embora protestantes e católicos divirjam neste ponto antropológico em específico, Turretini - para o alerta dos neocalvinistas - diz que esse conflito entre os princípios formal e material não flui necessariamente da filosofia aristotélica, já que para o estagitrita é natural à razão propor fins à natureza, tanto quanto é natural à natureza receber em si a forma pela qual ela vem a ser em ato. O conflito surge da própria antropologia papista e não de Aristóteles necessariamente.