domingo, 29 de novembro de 2020

Agostinho, a Petição de Ortodoxia e a Mãe de Deus

Interpretações anacrônicas são muito comuns em debates de natureza teológica e dogmática; e aqueles que se acham dentro da linha de construção teológica de determinada tradição, não é raro ver a recorrência a certo procedimento que, como uma variante da petição de princípio, podemos nomear de petição de ortodoxia ou falácia do ventríloquo.

Mas o que seria tal falácia? A petição de ortodoxia ou a falácia do ventríloquo nada mais é a falácia que se serve de um estado atual de doutrina para transpô-la anacronicamente a um pensador que, por ser considerado da mesma religião, afirmou tal e qual coisas em seus escritos, porque ele é de tal religião. Isso não é diferente quando marxistas afirmam que os franciscanos radicais, ou os cristãos de Atos 2 eram comunistas apenas pelo fato de que o primeiro grupo queria abolir por via doutrinária a propriedade privada do papa, e o segundo porque realizou a partilha de todos os bens em comunidade. Aqui há uma transposição anacrônica de uma doutrina do século XIX d.C. para grupos do século XII e I d.C.

Aqui surge a questão de St. Agostinho e a Theótokos, ou a Mãe de Deus. Particularmente - e tenho vários testemunhos que confirmam isso - não tenho problema algum com termo Mãe de Deus, desde que isso seja devidamente disciplinado. Mas também eu entendo que muitos evangélicos não muito ligados à teologia da Reforma tenham uma reserva quanto ao termo, até mesmo em virtude de certas coisas justificadas que não vem ao caso citar aqui. Contudo, a verdade é que Santo Agostinho, que morreu em 430 d.C., não viveu para ver a controvérsia nestoriana e nem mesmo a resolução do Concílio de Éfeso (431 a.C.) que afirmou que a união entre o Verbo e Cristo era uma união substancial, tornando legítimo o título de Maria como Mãe de Deus. Mas mesmo que as afirmações de Agostinho pareçam nestorianas, não faz sentido algum dizer que Agostinho era nestoriano, pois isso seria anacrônico, e anacrônico a ponto de ser algo como uma petição de heresia. Mas quero aqui trazer algumas passagens de Agostinho que mostram afirmações que em sua literalidade não seriam consideradas afirmações efesianas.

Então seguem as passagens:

Porque é que o Filho disse à mãe 'Mulher, que tenho eu e tu com isso? A minha hora ainda não chegou?' Não tem mãe enquanto Deus, mas tem mãe enquanto homem. A mãe é, portanto, a mãe da carne, mãe da humanidade, mãe da fraqueza que assumiu por nós. [...]

A mãe pedia o milagre, mas ele não conhecia entranhas humanas quanto à capacidade de realizar ações divinas. E parece ter dito: Tu não geraste a capacidade que eu tenho de operar o milagre; não geraste a minha divindade: Geraste a minha fraqueza, por isso conhecer-te-ei quando a fraqueza pender na cruz; 'a minha hora ainda não chegou'. [...]

É filho de Maria segundo a carne, e Senhor de Maria segundo a divindade. Maria não era mãe segundo a divindade; o milagre pedido por ela havia de ser operado por meio da divindade; motivo porque respondeu: 'Mulher, que tenho eu e tu com isso?' Não julgue que não te conheço como mãe; 'a minha hora ainda não chegou'. Hei de reconhecer-te como mãe quando começar a pender na cruz a fraqueza [a carne] de que és mãe1.

Essa citação um pouco extensa precisa de certos esclarecimentos. Agostinho obviamente está sendo sistemático com o pensamento que apresenta em toda a sua obra. No De Trinitate II.2 Agostinho afirma a existência de uma regra dupla para a consideração da humanidade e divindade de Cristo. Diz Agostinho:

Há uma regra canônica, disseminada nas Escrituras, e adotada pelos doutos intérpretes católicos das mesmas Escrituras, à qual nós nos atemos com firmeza para compreender como o Filho de Deus é igual a Deus na condição divina que possui; e inferior ao Pai, na natureza humana que assumiu. E como nessa natureza humana, ele é inferior não somente ao Pai e ao Espírito Santo, mas também a si mesmo2.

Dessa regra dupla surge a distinção de naturezas pelas quais, como homem, Cristo é inferior ao Pai e ao Espírito como Servo do Senhor, e inferior a si mesmo enquanto Deus. Agostinho não está jogando fora da regra de Calcedônia, justamente porque sem essa distinção de naturezas se faz impossível compreender passagens como: "O Pai é maior do que eu" (Jo 14.28); ou "E o menino crescia e se fortalecia, tornando-se pleno em sabedoria; e a graça de Deus permanecia sobre ele" (Lc 2.40), pois no primeiro texto, se a humanidade não for computada, a conclusão será de que há gradações em Deus, sendo Jesus um "Deus menor" - o que é metafisicamente absurdo -; e no segundo texto, se a humanidade não fosse computada, teríamos que impor devir em Deus, fazendo com que Deus seja maior em um tempo posterior do que foi em um tempo anterior - o que é metafisicamente absurdo também.

Partindo da percepção dessa regra dupla, ou seja, que enquanto Deus Jesus é igual ao Pai, mas enquanto homem é inferior - incluindo inferior a si mesmo -, Agostinho também interpreta a citação do Salmo 110 (109) contra os doutores da Lei. Ele diz:

Observai também como se lhe chama "Senhor de Davi". São de Davi estas palavras: "Disse o Senhor ao meu Senhor, senta-te à minha direita". Ele mesmo lembrou aos judeus esta passagem, e com ela os refutou: "Se pois Davi lhe chama Senhor, como é seu filho?". É filho de Davi segundo a carne, e senhor de Davi segundo a divindade3.

Notem que Agostinho aqui também segue a regra dupla de forma sistemática.

Essa passagem dos Tratados Sobre o Evangelho de João é antecedida por esta passagem:

Não vos surpreendais de ser ao mesmo tempo filho e Senhor. Assim como se diz que é filho de Maria, também se diz que é filho de Davi; é Filho de Davi, precisamente porque é filho de Maria4.

E o texto mais adiante continua em uma passagem já citada neste texto:

É filho de Maria segundo a carne, e Senhor de Maria segundo a divindade. Maria não era mãe segundo a divindade; o milagre pedido por ela havia de ser operado por meio da divindade; motivo porque respondeu: 'Mulher, que tenho eu e tu com isso?' Não julgue que não te conheço como mãe; 'a minha hora ainda não chegou'. Hei de reconhecer-te como mãe quando começar a pender na cruz a fraqueza [a carne] de que és mãe.5

Esse texto está totalmente proporcionado à compreensão de Agostinho apresentado também no De Trinitate I.XIII.28, onde ele afirma a operação de Cristo segundo a sua dupla natureza, como segue:

Afirmamos, porém, com propriedade, que o Senhor da glória foi crucificado, não no poder da divindade, mas na fraqueza da carne (2 Co 13.4). Assim como dissemos que na natureza de Deus ele julga - ou seja, pelo poder divino e não pelo poder humano -, como homem também há de julgar, assim como foi crucificado o Senhor da glória.6

Mas outro texto que pode deixar ainda mais claro o pensamento de Agostinho a respeito da distinção das naturezas de Cristo é aquele apresentado no A Fé e o Símbolo, que foi um sermão pregado diante do Concílio Plenário dos bispos de Hipona em 8 de outubro de 393 d.C. É como segue:

Também não nos force a negar a mãe de Cristo pelo que foi dito por Ele: "Que queres de mim, mulher? Minha hora ainda não chegou". Queria mostrar, acima de tudo, que Deus, que não tem mãe, se preparava para mostrar a pessoa da majestade divina mudando a água em vinho. Contudo, no que diz respeito à sua cruz, foi crucificado enquanto homem [não enquanto Deus]; aquela hora era a hora que ainda não havia chegado quando foi dito: "Que queres de mim, mulher? Minha hora ainda não chegou", ou seja, a hora de reconhecê-la na cruz. Eis, então, que, como homem crucificado, reconheceu sua mãe e, em modo totalmente humano, recomendou-a a seu amado discípulo. E não devemos pensar diversamente pelo fato de que, quando lhe anunciaram a sua mãe e seus irmãos, ele respondeu: "Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?" Mas, acima de tudo, ensina, para o nosso ministério de anúncio do Verbo de Deus aos irmãos, que, se os parentes nos impedem de exercê-lo [como seus irmãos e mãe pareciam querer impedi-lo], não devemos reconhece-los.7

Há várias considerações a serem feitas nesta passagem. Como segue da questão da dupla regra, veja que Agostinho afirma de modo consequente que, enquanto Deus, Jesus não tem mãe; contudo, enquanto homem, tem mãe e ainda recomenta de modo completamente humano a sua mãe ao seu discípulo. Agostinho coloca na intenção de Jesus que ele não recomenda enquanto Deus a sua mãe ao seu discípulo, tal como enquanto Deus opera o milagre da transformação da água em vinho; mas a recomenda enquanto homem, tal como pende a partir da fraqueza da humanidade o seu corpo na cruz. Abstraiam Éfeso; ele não está em questão aqui. Não cabe aqui fazer a interpretação anacrônica de que Agostinho estava dizendo o que disse de modo a conservar a unidade entre o Verbo e o Homem na hipóstase. Essa não é uma questão para Agostinho neste momento. A questão para Agostinho é harmonizar conceitos bíblicos de modo a não perder de vista a divindade de Cristo, assim como a sua humanidade, de modo a guardar, ao mesmo tempo, a distinção e a integridade das duas naturezas que compõem o ser de Cristo, abrindo espaço para uma comunicação idiomática entre a divindade e humanidade no mesmo e único ser de Cristo.

O raciocínio de Santo Agostinho é fácil de ser apreendido com base nestes dados: 1) Agostinho estabelece um duplo grau na totalidade de Cristo, sem com isso fazer uma divisão real; 2) Cristo é, enquanto homem, menor que o Pai e o Espírito Santo, assim como é menor do que a si mesmo; 3) Cristo, enquanto Deus, é igual ao Pai e ao Espírito; 4) Segundo essa gradação, segue-se também as relações de Cristo com os homens: é filho de Maria e de Davi segundo a natureza humana, mas é Senhor de Maria e de Davi segundo a natureza divina; 5) Mas também segundo esse duplo grau em Cristo seguem-se as operações de ambas as naturezas na economia: Cristo é servo e é o Senhor crucificado segundo a natureza humana; é o operador de milagres e o juiz do mundo segundo a natureza divina.

Obviamente que Agostinho ainda não havia chegado à diferenciação da questão aos moldes de Éfeso ou Calcedônia. Mas mesmo assim a sua teologia é legítima enquanto tentativa de explicação da distinção das naturezas. Também não há um escrito agostiniano de autenticidade indubitável que ele afirme que "Maria é mãe de Deus". Agostinho tratou da questão segundo o que apresentamos, e ao que parece essa percepção de coisas o seguiu ao longo de sua produção teológica cristã sem alteração, diferentemente do que ocorreu com a questão da predestinação ou dos corpos ressurretos. Mas tentar interpretá-lo como alguém que abraçou ou deixou de abraçar Éfeso é, aqui, evidentemente, uma petição de ortodoxia ou petição de heresia.

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1] AGOSTINHO - Tratados sobre o Evangelho de João. VIII.9

2] AGOSTINHO - A Trindade. II.2

3] AGOSTINHO - Tratados sobre o Evangelho de João. VIII.9

4] Ibid.

5] Ibid.

6] AGOSTINHO - A Trindade. I.XIII.28

7] AGOSTINHO - A Fé e o Símbolo. IV.9

sábado, 28 de novembro de 2020

Atanásio Contra a Idolatria (Incompleto)

     Citação: Muitas vezes o próprio estatuário, como que esquecido do que fez, dirige a sua oração às suas próprias obras, e o que recentemente ele esculpia e talhava após o ter trabalhado a sua arte, ele a chama deus. Se estas estátuas são dignas de admiração, precisaria reconhecer a habilidade do artista, em lugar de honrar os objetos que ele configurou. Porque não é a matéria que ornou e divinizou a arte, porém a arte à matéria. Seria então muito mais justo adorar o artista de preferência ao que ele fez, uma vez que ele existia antes dos deuses nascidos da sua arte, e que estes nasceram como ele quis. Ao contrário, rejeitando o que seria justo, e desdenhando a arte e a ciência, adoram a obra da ciência e da arte.1.

    Citação: Esta demonstração não pode deixar de convencer os que os gregos chamam filósofos e sábios; eles não podem negar que estes deuses que se vêem são imagens e figuras de homens e animais desprovidos de razão. Mas para se defender, dizem que assim acontece para que por estas imagens a divindade lhes responda e lhes apareça: porque não se pode conhecer o invisível de outro modo senão por estas estátuas e estes ritos. E os que são ainda mais filósofos e pensam dizer coisas mais profundas, afirmam que estes ídolos foram fabricados e formados para servir a invocar e fazer aparecer anjos e potestades divinas, que aparecendo através deles, revelam aos homens o conhecimento de Deus; são como cartas para os homens que lendo-as podem conhecer e compreender Deus pela aparição dos anjos divinos que se manifestam por estes sinais. Eis a sua mitologia, porque não é teologia, queira Deus. E se este raciocínio for examinado com atenção, ver-se-á que a sua opinião não é menos falsa do que as expostas acima2. 

    Citação: 
Poder-se-ia dizer-lhes, apresentando-se ao julgamento da verdade: como Deus responde ou se faz conhecer por estes ídolos? É pela matéria que os constitui ou pela forma que está neles? Se é pela matéria, de que serve a forma, e porque Deus não se manifesta simplesmente por não importa qual matéria, antes que estas imagens sejam formadas? É inutilmente que se constroem templos para aí colocar uma pedra, um pedaço de madeira ou de ouro, enquanto toda a terra está cheia destas substâncias. Mas se a causa destas manifestações divinas é a forma que lhes é dada, para que serve a matéria, o ouro e o resto, e porque Deus não se manifesta de preferência pelos seres naturalmente vivos dos quais as estátuas têm a forma? Porque segundo o seu raciocínio, ter-se-ia melhor opinião de Deus se ele se manifestasse pelos seres vivos e animados, dotados ou não de razão, em lugar de se fazer esperar nas estátuas, inanimadas e imóveis [...]. Talvez também nada seja, nem a forma nem a matéria a causa da presença de Deus, mas a arte unida à ciência basta para evocar o divino, pois ele é uma imitação da natureza. Mas se é graças à ciência que o divino vem habitar nas estátuas, para que, mais uma vez, serve a matéria, já que a ciência reside nos homens? Em uma palavra, se é graças à arte que Deus se manifesta e por isso se veneram como deuses as estátuas, seria necessário adorar e honrar os homens que são os autores desta arte e tanto mais que eles são dotados de razão e possuem eles próprios esta ciência3.

    Citação: 
Na sua segunda resposta, mais profunda sem dúvida, poder-se-ia dizer isto com bastante propriedade como segue: se vós agis assim, gregos, não por causa da manifestação de Deus mesmo, mas por causa da presença dos anjos nos ídolos, por que dar às estátuas pelas quais invocais estes poderes mais valor que aos próprios poderes que invocais? Se, como afirmais, esculpis estas imagens, é com o obejtivo de conhecer Deus, dando às próprias esculturas a honra e o nome de Deus, cometeis sacrilégio. Porque confessais que o poder divino ultrapassa a humilde condição das estátuas, e por isso não ousais invocar Deus através delas, mas os poderes inferiores; e vós mesmos, negligenciando-as dais à pedra e à madeira o nome daquele cuja presença temíeis, os chamais deuses e os adorais, embora sejam pedras e obra de arte humana. E se, como falsamente afirmais, estas imagens são para vós como cartas que vos permitem contemplar Deus, não é justo dar mais honra ao sinal que à realidade significada. Se alguém escrevesse o nome do rei, não é sem perigo que honraria estas missivas mais que o próprio rei; seria punido de morte, porque a carta é obra da ciência do escriba. Assim vós mesmos, se usásseis salutarmente a razão, não transferiríeis para a matéria o caráter da divindade e não honraríeis a estátua mais que o homem que a esculpiu. Porque se estas imagens são como missivas que indicam a presença de Deus, elas são, por este título, como sinais de Deus, dignas de ser divinizadas; mas ainda mais aquele que as esculpiu e modelou, isto é o artista; é ele que precisaria divinizar, como sendo mais poderoso e mais divino que estas imagens, e tanto mais que é por sua vontade que ele as talhou e modelou. Se, portanto, as cartas são dignas de admiração, aquele que as escreveu é ainda mais admirável pela sua arte e pela ciência do seu espírito. Assim, se não há razão para acreditar que estas imagens são deuses, poder-se-á então interrogar o pagão a respeito da loucura dos ídolos para aprender deles porque lhes foi dada esta forma4. 

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1] ATANÁSIO - Contra os Pagãos.13
2] Ibid. 19
3] Ibid. 20
4] Ibid. 21

Atanásio, a Espiritualidade da Contemplação da Realidade Divina Inteligível e o Afogamento do Homem no Meramente Sensível

    Uma das argumentações mais espetaculares de Atanásio em favor da espiritualidade da contemplação das realidades divinas inteligíveis (supra sensíveis) é que nesse mergulho absoluto do homem no infinito, que era característica do Adão pré-lapso (antes da queda), ele realizava a sua finalidade; contudo, ao perder esse contato com Deus por causa do pecado, o primeiro homem começou a se concentrar nas realidades visíveis e corpóreas. Para Atanásio, a vida estética (como diria Kierkegaard), ou seja, a vida fundamentada nos sentidos, e nos prazeres da visão etc., é a característica do homem caído. E por tanto é só por isso, e apenas em função disso, que ao viver uma vida concentrada nos sentidos, o primeiro homem declinou da intelecção e da concentração espiritual e passou a ter consciência de que estava nú.

    Estas são as palavras de Atanásio:

"Também durante muito tempo, efetivamente, em que ele [Adão] conservou o espírito ligado a Deus, ele se desviava da contemplação do corpo; mas quando, pelo conselho da serpente, ele se afastou do pensamento de Deus e se pôs a considerar-se a si próprio, então foram tomados pelos desejos do corpo, 'e conheceram que estavam nús' (Gn 3.7) e esse conhecimento os encheu de vergonha"1.

    É interessante que ele é categórico ao afirmar que o centro da vida do homem é a contemplação divina, mas ao desviar e corromper esta faculdade, o homem agora contempla "as coisas de baixo", ou se fixava agora com preponderância nas coisas terrenas, invertendo a ordem de contemplação que estava voltada a Deus, e apenas a Deus, como ele diz: "Porque ela [a alma] foi feita para ver Deus, são as coisas corruptíveis e as trevas que ela procurou, como diz em alguma parte o Espírito na Escritura: 'Deus criou o homem reto, mas ele procurou muitas perversões'[sic] (Ecl 7.29)"2.
    E em tom polêmico - mesmo para os dias atuais -, ele acusa a origem da idolatria justamente nessa queda da potência contemplativa, agora não mais voltada para o inteligível, mas apenas para o sensível. Atanásio diz: "Assim, repleta de todas as espécies de desejos carnais e perturbada pela falsa opinião que forma para si própria, conclui por imaginar segundo as coisas corporais e sensíveis a Deus de cujo pensamento esqueceu, e dá às aparências o nome de Deus; só aprecia o que quer e tem como agradável"3.
    É profundamente importante como uma teologia, que muitos acusam de ser algo árido e ocupação especulativa sem relação com a vida prática, visa estabelecer uma fundamentação tão profunda com a espiritualidade cristã, pois ao explicar 1) a finalidade humana na contemplação de Deus, Atanásio também explica que 2) A queda é propriamente um desvio dessa contemplação para coisas inferiores, e que 3) por se concentrar nas coisas inferiores o homem adquire feições animalescas e irracionais, cometendo todo o tipo de avareza, violência, afastando para si próprio a visão de Deus e destruindo em si a imagem de Deus.
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1] ATANÁSIO DE ALEXANDRIA (295-373 d.C.) - Contra os Pagãos.3 . Paulus. p. 49
2] Ibid. 7. p. 55
3] Ibid. 8. p. 55, 56

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Aos Fiscais do "Nestorianismo" Alheio

    Sim, a palavra "nestorianismo" está entre aspas aqui no título, e isso explica já aquilo que eu comentarei neste texto.

    Recentemente um vídeo do Augusto Nicodemus foi postado por um amigo querido que reclamou por ele, aparentemente, ter se mostrado hesitante ao afirmar que Deus morreu na Cruz, porque a sua natureza humana estava unida à sua natureza divina na hipóstase. Confesso que nem vi problema algum com o vídeo. O problema foram as reações mesmo - também de colegas e amigos -, condenando o homem por ser um "nestoriano".
    Confesso ter uma abjeção séria ao comportamento de quem quer que seja que se apresse em condenar alguém. E isso não seria diferente, se eu visse esse comportamento em amigos ou em não tão amigos assim.
    Mas a verdade é que o problema em si nem está nesse vídeo em específico, mas em um vídeo em que Nicodemus diz que Maria é mãe do Cristo, da natureza humana de Cristo, e diz que Maria é "portadora de Deus" - ainda que afirme com reticências que Maria é mãe de Deus. Já me adianto em dizer que não tenho afeições profundas pelo Nicodemus enquanto teólogo, porque para falar a verdade nem conheço a sua teologia, fora naquilo que vi em um vídeo ou outo. Nem mesmo pelo que vi o considero um gênio sem medida. Ele, para mim, é um assunto adiáforo, para falar bem a verdade.
    Mas a questão é que, em que pese Nicodemus ter dito o que disse, a sua resposta à questão de Maria ser ou não Mãe de Deus é uma reposta evidentemente incompleta em função do desenvolvimento da teologia. Só que um salto gigantesco é partir daí para afirmar ser ele um "nestoriano"; nem considero - e julgo que ninguém deveria - um evangélico médio um nestoriano porque nega a formulação de que "Maria é Mãe de Deus", levando em consideração que por um certo ângulo essa negação está evidentemente correta - quando se diz que a divindade passou a existir a partir da concepção de Cristo. Evidentemente que Teótokos não quer dizer isso, senão que Maria gerou em seu ventre alguém que é totalmente homem e totalmente Deus.
    Mas quero trazer aqui um texto de alguém que evidentemente não seria um nestoriano - e que ensinou, claro, antes da controvérsia nestoriana.
    Segue o texto de Agostinho falando da relação entre Jesus e Maria no tratado VIII.9 do Comentário ao Evangelho de João:
"Porque é que o Filho disse à mãe 'Mulher, que tenho eu e tu com isso? A minha hora ainda não chegou?' Não tem mãe enquanto Deus, mas tem mãe enquanto homem. A mãe é, portanto, a mãe da cerne, mãe da humanidade, mãe da fraqueza que assumiu por nós. [...]
A mãe pedia o milagre, mas ele não conhecia entranhas humanas quanto à capacidade de realizar ações divinas. E parece ter dito: Tu não geraste a capacidade que eu tenho de operar o milagre; não geraste a minha divindade: Geraste a minha fraqueza, por isso conhecer-te-ei quando a fraqueza pender na cruz; 'a minha hora ainda não chegou'. [...]
É filho de Maria segundo a carne, e Senhor de Maria segundo a divindade; o milagre pedido por ela havia de ser operado por meio da divindade; motivo porque respondeu: 'Mulher, que tenho eu e tu com isso?' Não julgue que não te conheço como mãe; 'a minha hora ainda não chegou'. Hei de reconhecer-te como mãe quando começar a pender na cruz a fraqueza [a carne] de que és mãe."*
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*] AGOSTINHO - Tratados Sobre o Evangelho de João. VIII.9