segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Considerações de Orígenes sobre o Culto aos Anjos e aos Corpos Celestes; Ou: Não Orar a Anjos ou a Seres Divinos, mas Apenas a Deus

   Orígenes (185-254 d.C), sem sombra de dúvidas, é um dos grandes teólogos do cristianismo e sua obra é um testemunho inequívoco da piedade cristã em seus primeiros séculos. E como buscarei demonstrar com as citações a baixo, a consciência da singularidade absoluta de Deus e do seu Logos implicava na forma de devoção, diferenciando as práticas cristãs das práticas pagãs do entorno, entre elas a prática da oração.
   Segue um texto significativo de Orígenes a esse respeito:
    "Em seguida, como se judeus e cristãos tivessem respondido que aqueles que descem até os homens são anjos, ele responde: Se falais de anjos, dizei-nos quem são eles: deuses ou seres de uma outra espécie? E, supondo nossa resposta, ele acrescenta: - De uma outra espécie, demônios1 [veja a nota], sem dúvida. Pois bem, vamos esclarecer este ponto. De comum acordo dizemos que os anjos são "espíritos servidores, enviados ao serviço dos que devem herdar a salvação" (Hb 1,14). Eles sobrem para levar as súplicas dos homens às regiões celestes mais puras do mundo, ou mesmo às supracelestes mais puras do que aquelas. Em seguida, eles descem de lá para levar a cada um conforme seu mérito uma das graças que Deus ordena dispensar àqueles que recebem seus favores. Portanto, aqueles que aprendemos a chamar de anjos por causa de sua função, nós os encontramos às vezes também nas escrituras sagradas com o nome de deuses, porque são divinos; mas eles não o são a ponto de sermos obrigados a venerar e adorar, em lugar de Deus, aqueles que nos dispensam e nos trazem as graças de Deus. Pois é preciso elevar todo pedido, prece, súplica e ação de graças ao Deus supremo através do sumo sacerdote que está acima de todos os anjos, o logos vivo de Deus. E oferecemos ao próprio logos pedidos, preces, ações de graças, e mesmo súplicas, se formos capazes de discernir entre o sentido absoluto e o sentido relativo da palavra 'súplica'.
    Pois invocar os anjos sem ter recebido a seu respeito uma ciência que ultrapassa o homem não é razoável [e Orígenes não diz aqui que há uma ciência a ser recebida para invocá-los, mas sim que é tolice fazer essa invocação, pois se recebêssemos a ciência celeste, não cometeríamos tal ato ilícito. É essa a razão da explicação que se segue]. Mas suponhamos, por hipótese, que tenhamos recebido esta ciência maravilhosa e misteriosa: esta ciência em si mesma leva ao conhecimento da natureza dos anjos e dos ofícios confiados a cada um deles e não permitirá que ousemos orar a qualquer pessoa a não ser ao próprio Deus supremo, que a tudo pode satisfazer perfeitamente, por meio de nosso salvador, o Filho de Deus, que é logos, sabedoria, verdade e tudo o que dele afirmam as escrituras dos profetas de Deus e dos apóstolos de Jesus"2 (Contra Celso. ed. Paulus. p. 385-386).
   Mas para dermos conta do pensamento de Orígenes nessa questão, é bom partirmos de uma ontologia que perpassa os escritos origenistas. Para isso, vou citar mais um texto e comento logo depois.
   Eis o texto:
"Sem dúvida, não desacreditamos estas imensas criaturas de Deus, nem dizemos com Anexágoras que o sol, a lua e as estrelas são apenas 'massas inflamadas', se professamos nossa doutrina sobre o sol, a lua e as estrelas. É apenas compreender a divindade de Deus que tudo ultrapassa com indizível superioridade, e a do Filho de Deus único que ultrapassa tudo mais. E quando estamos persuadidos de que o sol, a lua e as estrelas oram ao Deus supremo por meio do seu Filho único, julgamos que não devemos orar aos seres que oram: eles mesmos preferem nos remeter ao Deus a quem eles oram, e não nos abaixar até eles ou partilhar de nosso poder de oração entre Deus e eles mesmos." Orígenes - Contra Celso. p. 398
   Entendam, antes de tudo, que aqui não é importante concordar ou não com Orígenes quanto à afirmação de que corpos celestes sejam "almas racionais", ou se eles oram a Deus. Orígenes aqui concorda com a doutrina platônica de que os corpos celestes são seres inteligentes, embora não concorde que sejam deuses, como Platão professava, e com ele o pensamento grego. Importa, no contexto dessa reflexão, o fato de que segundo a compreensão origenista esses elementos possuem essa atividade orante, característica sim a anjos e homens. Entendido isso, vamos à ontologia de Orígenes.
   Como é possível perceber, Orígenes recorre aqui à sua ontologia que confere estrutura ao seu método alegórico, e isso é importante para a gente. Diz que alguns adoram esses corpos celestes por sua luz benéfica dispensada à humanidade, outros por causa da racionalidade que neles habita, enquanto deveríamos adorar a "verdadeira luz que a todos ilumina", isto é, a Deus. Aqui vemos a tripartição que confere a gradação ao método alegórico, que é a tripartição cujo nível mais baixo é o sensível, seguindo para o inteligível e findando no mais alto nível, que é o sobrenatural; a estes três níveis correspondem, em ordem, os três níveis de leitura da Escritura: o nível de leitura literal, o moral-racional e o pneumático-soteriológico. Eis a ontologia de Orígenes, ontologia que implica em uma epistemologia, uma base de cognição teológica.
   Importa perceber que, nesses dois textos, Orígenes contesta que podemos nos dirigir a seres racionais em oração em um contexto em que, ao mesmo tempo, condena também o culto aos corpos celestes. Católicos e Ortodoxos, em relação à intercessão dos santos, poderiam objetar que essa contestação só se dá em um contexto de adoração, já que na recorrência aos anjos e aos santos não há adoração em nenhum sentido. Mas notem que isso não arranha o que há de substancial na contestação, pois Orígenes condena o ato em si, já que, partindo de sua ontologia, devemos nos dirigir à fonte da Luz Verdadeira, e não àqueles seres racionais, ainda que participem desta Luz - pois oram ao Filho. O essencial é isso: os corpos celestes são seres que, possuindo alma racional, oram a Deus, tal como um anjo ora, e oram por meio de Cristo; contudo a estes mesmos é ilícito se voltar em oração, "partilhando de nosso poder de oração entre Deus e eles mesmos".
   Sendo assim não podemos nos dirigir aos seres puramente sensíveis e nem aos inteligentes em oração, mas apenas àquele que é a Luz Verdadeira, ao Ser que confere luz e realidade a todos os seres.
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1) É bom ter em mente que aqui o termo demônio tem um significado diferente daquela que encontramos na angeologia cristã, pois o "demônio" a que se refere Celso é o "daimônion" grego, que tanto são espíritos bons, abençoados, como maus. Tanto o espírito inspirador de Sócrates - por meio do qual ele profetizava -, como o demiurgo platônico eram "daimônio".
2) Note que essa consideração é diametralmente oposta à prática de se dirigir a anjos, tal como é praticada tanto por Ortodoxos como por Católicos Romanos. Qualquer tentativa de reconciliação disso, ao meu ver, não passa de pura sofistaria.