terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Sentimentos Demais e Juízo de Menos


O nosso mundo presente é extremamente guiado pelo afeto, pela sensação visual e por tudo aquilo que se pode perceber de forma mais direta possível - à semelhança dos animais que são débeis na utilização do intelecto. O mundo da razão e o conhecimento dos valores que julgam nossas sensações, com isso, é deixado de lado. Não é difícil ligar esse estado de coisas à situação absurda na qual vivemos. A destruição da inteligência, a redução de todo o mundo ao prazeroso - a plena floração da existência "estética", como dizia Kierkegaard -, a moda sentimental do multiculturalismo que afirma a inexistência de coisas superiores e inferiores no mundo (um pensamento para não deixar ninguém ofendido com as suas misérias), é, ao mesmo tempo, a destruição de toda a capacidade de juízo das ações mínimas na nossa vida concreta.

Uma mente humana comum sabe que diante de escolhas é necessário que optemos pelo mais urgente quando necessário, e pelo lúdico quando possível. A possibilidade mesma de julgar o "bom para o momento" é uma das coisas que caracterizam a inteligência humana e que impedem que caiamos em uma existência amorfa, o que seria algo simplesmente anti-humano - pois aqui, em sentido radical, a vida não vale mais do que a morte. O senso de hierarquia de prioridades é aquilo que possibilita que eu opte gastar o meu salário com a minha família ao invés de gastá-lo com jogos de azar. Toda escolha moral é uma escolha que envolve coisas com as quais estou envolvido de forma irredutível. É justamente isso também que me faz irresponsável quando não cumpro com o meu dever, distribuindo os custos de minhas irresponsabilidades com outros que acabam arcando com as consequências dos meus atos, não obstante não serem responsáveis por isso. É nesse sentido que a vida é inteligível; e é isso mesmo que forma a base de juízo para qualquer espécie de conduta humana, pois nenhuma ação humana está isenta de juízo.

Para a nossa própria orientação o universo moral deve ser evidente, e a política de terra rasada de todo universo moral só tende a beneficiar, em último caso, o imoral. Mesmo o antropólogo que observa uma cultura estranha com "isenção" faz isso em nome de um certo "respeito" e uma "superioridade científica". Mas devemos nos perguntar se até aí a própria atitude de isenção por parte do antropólogo não é algo que parte de um juízo de valor sobre a melhor atitude diante do seu ofício. Nesse sentido a sua imparcialidade é um posicionamento que ele crê ser superior ou adequada ao ofício, se servindo, por tanto, de uma hierarquia de valores e de um tipo de juízo moral que considera "inadequada" a parcialidade ou inferior a atitude de julgamento moral sobre as culturas, algo que não se deveria esperar de um antropólogo. Também é aqui que o multiculturalismo - que apela para uma indiferenciação valorativa de todas as culturas - se coloca como uma espécie de filosofia superior àquelas que julgam que um juízo de valor sobre as culturas - que define o inferior e o superior - não seja apenas adequado, mas imprescindível para conduta humana normal. Por tanto o sistema moral do multiculturalismo - que é sentimentalista e politicamente correto - é destruído em sua própria base.

Mas o que viria a ser a decadência da inteligência com base na orientação meramente sentimentalista das decisões? Muito se ouve falar de que devemos buscar ser "felizes"; contudo só um louco ou Deus podem ser felizes o tempo todo. A vida é mesclada com a infelicidade que nos caracteriza e que também nos humaniza. Não há bem verdadeiro no contexto desta vida que não esteja marcado pela realidade do sofrimento. Esperar ser "feliz o tempo todo" só pode ser um objetivo de vida de uma pessoa mimada. Não é sem razão que hoje, nesta busca desenfreada pelo prazer da felicidade, essa ideia tenha colocado em xeque instituições tão veneráveis com o casamento, e prostituído coisas tão importantes como a Igreja. Tal vez levada também pelo sentimento democrático, a verdadeira literatura e a verdadeira religião que tendiam a confrontar radicalmente o homem de maneira viril, acabou por ser rebaixada em sua verdadeira missão de servirem como o aguilhão da consciência ao nível das propagandas. O menor custo e o maior lucro parecem ser a tábua de juízo em um mundo onde a popularidade é o maior índice de valor que as coisas possuem.

Ao contrário disso, muitos esforços foram empreendidos para a descoberta do verdadeiro Bem para o homem. Sócrates inaugurou uma tradição de reflexão sobre a justiça que até hoje não cumpriu o seu papel de esgotar o assunto. Já o seu pupilo Platão remeteu a solução para o mundo das ideias eternas, cuja reflexão exata sobre essa realidade só poderia alcançar o ponto máximo quando atingisse o infinito, quando o pensamento e o espírito humano se elevassem à identidade absoluta com a Ideia Eterna. Mas os filósofos sabiam - ao contrário dos utópicos e radicais políticos de hoje - que vivemos no mundo da finitude, por isso o filósofo só poderia vislumbrar a totalidade da Ideia Eterna após a morte, quando desobrigados e desembalados da finitude que nos cerca. Da mesma forma o cristianismo prometia a bem-aventurança da Visão de essência eterna de Deus quando nossa alma estivesse em eterno matrimônio com o Eterno após a morte e o Juízo Final. Nessa escola filosófica espiritualista ficava clara a mensagem de que o mundo das paixões atrapalhavam a nossa Visão, ou contemplação da Realidade Absoluta. Por isso forças descomunais foram empregadas pelos intelectuais místicos para a compreensão da realidade, pois eles sabiam que no campo dos sentidos e das paixões - sejam eles afetos sentimentalistas ou o ódio brutal - não existe entendimento.

Falávamos dos afetos. E esses são, porque corrompidos, uma das partes do problema, e não a solução. Com isso não quero afirmar que nossos afetos não possuam um lugar especial na vida humana, pois é deles que nascem os nossos sentidos mas básicos de pertença e compromisso sem os quais nada importaria em nosso mundo. Contudo eles podem, quando deixados a si mesmos, nos transformar em piegas de um sentimentalismo barato ou em monstros ressentidos. A operação da inteligência nesse campo se torna necessária pelo simples fato de que é o intelecto humano que realiza juízos de valor e que estabelece hierarquias por meio dos quais julgamos nossas ações práticas e os nossos sentimentos como bons ou maus no contexto da realidade das nossas relações com o mundo. É por isso que em um país tão entregue aos sentimentos de euforia e de tristezas inexplicáveis - como se as sensações fossem tudo - como o Brasil, algo de sombrio se anuncia no horizonte. Somos muito habituados e ter grandes sentimentos; o problema é que ainda não sabemos explicar o que isso significa.

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