terça-feira, 8 de junho de 2021

A União Hipostática; Ou: O Kenoticismo e a Distinção das Naturezas Humana e Divina na Unidade da Pessoa de Cristo

    A cristologia é uma das matérias mais complexas da teologia, e sua complexidade deriva do fato de que tal matéria demanda extremo equilíbrio metafísico afim de que não incorramos em erros na conjugação de todas as suas partes. Também é evidente que não é fácil discorrer sobre o próprio conceito de Deus, e isso porque uma das noções mais importantes da teologia é a noção de que a Deus convém a simplicidade, o que implica na noção de que Deus é "ato puro" ou "imutável" (vide Berkhof, Turretini, Calvino, Agostinho etc. - ou cf. Tg 1.17, Ml 3.6) sendo o seu conselho imutável (cf. Nm 23.19; Is 46.9-11; Hb 6.17, 18; Sl 33.11), e nisso podemos seguir aquela sentença que afirma que a operação segue o ser ( quod operatio sequitur esse), ou seja, se a operação é imutável e eterna, ela só pode se seguir de um ser imutável e eterno. Isso posto, podemos considerar o Ser de Deus como o vértice da realidade, pois dele tudo o mais flui recebendo dele o seu próprio ser. Assim temos posto que, segundo a fé, Jesus Cristo é Deus, e como tal possuidor de todos os atributos que convém à divindade, tal como a eternidade e a imutabilidade, de onde se segue que o Logos, que é Deus (Jo 1.1) é também ato puro, pois sendo pleno de todas as perfeições (cf. Berkhof), nada há nele em estado de potência que não esteja plenamente realizado. Ora, isso posto, não convém a Cristo enquanto Logos qualquer variação ou sombra de mudança, já que não convém a mutabilidade ao ser perfeitíssimo, posto que Deus não pode vir a ser mais perfeito do que é e nem mesmo via a ser menos do que é (cf. Orígenes in Peri Archôn). Mas evidentemente isso implica em dificuldades quanto à encarnação, pois, como resta óbvio, Cristo, enquanto homem, esteve sujeito às vicissitudes e necessidades humanas, padecendo fome, sede, sofrendo dores e mesmo sofrendo a mais radical das mudanças que é a morte. Também temos a partir da Escritura que Cristo crescia em sabedoria, estatura graça (cf. Lc 2.5), e mesmo que aprendeu a obdeiência (Hb 5.8, 9) e era insciente do dia da volta do Filho do Homem (Mt 24.36). Ora, tudo isso que foi dito não convém ao Ser Perfeitíssimo ou Deus enquanto ato puro, pois sugere certas imperfeições consideradas pelo ângulo da eternidade.

    Uma das saídas para esse impasse é sugerida pela noção de que Jesus ao se encarnar abdicou de certos atributos, esvaziando-se deles. Tal interpretação é tirada dos versículos de Fp 2.5-11, onde se diz que Jesus Subsistindo em forma de Deus se esvaziou (ekenôsen) assumindo a forma de escravo. Na tradução da NTLH de Fp 2.7 se diz que "ele abriu mão de tudo o que era seu" - tradução de resto complicadíssima - etc. Geralmente a interpretação segue aquilo que afirmavam os kenoticistas, ou seja, que Jesus "abriu mão de seus atributos", levando a crer que o Logos, na encarnação, deixou de ser onisciente, onipresente ou onipotente. Ora, há algo aqui que sem a devida reflexão pode vir a causar certos problemas no campo da teontologia, dado tudo aquilo que afirmamos sobre a natureza de Deus à qual não convém a mutabilidade. Então é como segue: devemos reter firmemente que Deus é imutável, e que afirmar mutabilidade em Deus é impor potência passiva, destruindo, como eu afirmei acima, o "vértice de realidade de onde tudo flui". Se o vértice de realidade é algo que muda, logo toda a realidade descarrila - levando em consideração que toda a doutrina de Deus tem incidência direta sobre a doutrina da criação, já que aquela é o fundamento dessa. Sendo assim, o "esvaziar a si mesmo" não pode significar algo como Deus passar por mudanças em sua constituição, pois "se esvaziar a si mesmo" não diz respeito propriamente ao "tomar a condição humana" (que não é o alvo de Fl 2.5-11), mas sim a "forma de servo" (morfen doulou labon), o que mais propriamente constitui aquilo que no protestantismo chamamos de "estado de humilhação", o que implica a sujeição à lei e à morte (na cruz) exigida pela lei, e não a encarnação em si, pois após a ressurreição Jesus já está despojado da forma de servo, tendo todo o poder sobre os céus e a terra (Mt 28. 18), não desfazendo da realidade da encarnação - encarnação que é a condição mesma da nossa possibilidade de salvação. Assim, a encarnação não é propriamente o "estado de humilhação" ao qual convém a "forma de servo". Então quanto a Fp 2.5-11 temos a nossa dificuldade resolvida, já que o "auto-esvaziamento" não implica na remoção dos atributos que convém à forma de Deus, mas sim na assunção da humilhação pela sujeição à lei e à morte na cruz que convém à forma de servo.

    Uma nota complementar deve ser adicionada à compreensão do auto-esvaziamento: a encarnação não destrói a peculiaridade das naturezas, pois Deus continua intacto em sua natureza divina e o homem continua intacto em sua natureza humana. Sendo assim devemos voltar a nossa atenção a uma regra de interpretação básica para realizarmos uma reta consideração a respeito da encarnação. Tais regras são aquelas tais como preceiutou Calcedônia (451), pois na encarnação as naturezas são distinguíveis (não segundo uma distinção meramente de razão, mas sim de realidade), embora não separáveis na hipóstase. Afirmamos que a unidade das naturezas humana e divina, pois ambas as naturezas são unidas na hipóstase, e a união que nomeamos como hipostática, tal como sugere o termo, é unidade substancial, não unidade acidental ou moral (habitual), tal como afirma o nestorianismo. Isso nos livra de considerarmos Jesus Cristo como homem uma pessoa e Jesus Cristo como Deus outra pessoa. Também a distinção das naturezas e a unidade das mesmas na hipóstase nos livra do eutikismo, ou o miafisismo segundo o qual a natureza humana e a divina são unas sem distinção e separação. Ao contrário de ambas a ortodoxia de Éfeso e Calcedônia afirma a distinção de naturezas mas a unidade da pessoa, já que há atribuição formal segundo a Escritura da operação de ambas as naturezas à pessoa una de Cristo, a exemplo da afirmação de que Deus comprou para si a igreja com o seu próprio sangue (At 20.28), ou que crucificaram o Senhor da Glória (1 Co 2.8), ou que o Verbo da vida foi apalpado (1 Jo 1.1), que Jesus é o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim (Ap 22.13) e mesmo o Todo-Poderoso (pantokrátor) (Ap 1.8c), assim como também podemos afirmar que Deus morreu na cruz e, em virtude da unidade na hipóstase, em sentido relativo a essa unidade, mas não em sentido absoluto quanto à eternidade incomposível de Deus, que Maria é Mãe de Deus.

    Com isso devemos dizer que em virtude da dupla natureza unida na hipóstase, segue-se também uma dupla operação, e aqui chegamos no ponto central da argumentação, tal como segue: 1) À natureza divina segue-se a simplicidade incomposível, já que Deus é ato puro; 2) À natureza humana segue-se a temporalidade e a composição, já que o homem é composto de potência e ato, sensibilidade e inteligibilidade, razão e natureza, matéria e forma. Evidentemente essas são as notas de demarcação entre o temporal e o eterno, àquilo que é sujeito à sucessão e àquilo que é incomposível. Assim, certos predicados convém à natureza divina (eternidade, simplicidade, onipotência, onisciência e onipresença) e certos predicados que convém à natureza humana (espacialidade, quantidade, finitude, sucessão, sensibilidade, composição, materialidade etc.). Ambas as naturezas, sem prejuízo algum, foram unidas na pessoa de Jesus sem mistura ou confusão. Assim podemos compreender o que dizemos sobre a distinção de operação, e logo compreender que certa operação convém à natureza humana, e que certa operação convém à natureza divina , ainda que - nunca é demais reafirmar - atribuamos formalmente cada operação à pessoa una de Jesus Cristo.

    Tudo isso que dizemos torna clara certas questões relativas à encarnação, e podemos a partir daí impugnar o kenoticismo como erro teológico grave que impõe a Deus potência passiva. Por potência passiva queremos dizer aquela propriedade que capacita o ente sofrer ações extra se, ou seja, que capacita sofrer mudanças em virtude da ação de uma causa, ex: o que permite o homem crescer, ser aperfeiçoado ou mesmo decair de sua perfeição; assim também o que permite uma casa ser aperfeiçoada pela reforma ou destruída pela ação externa; é aquele tipo de propriedade que implica no devir, no-vir-a ser e mesmo na mutabilidade - seja do homem ou de todos os entes criados. Ora, a potência passiva não convém a Deus, já que pleno de todas as perfeições, como já foi explicado acima. Logo, mesmo na encarnação, não convém à natureza divina a perda de qualquer perfeição, pois esta não pode estar sujeita à sucessão por isso ser algo impossível a ela que é ato puro. Logo, o Verbo ao se encarnar não decai de sua onisciência, de sua onipotência e nem mesmo de sua onipresença, caso contrário ele não poderia continuar sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder (Hb 1.3b). Assim, consideramos Jesus sob o ângulo da natureza divina.

    Dito isso devemos classificar no que consiste então a natureza humana assumida pelo Verbo na hipóstase. Ora, há certamente notas distintivas da humanidade de Cristo, e é pelo ângulo da natureza humana que devemos considerar certas passagens da Escritura nas quais se afirma de Cristo o progresso, crescimento, ou mesmo uma não completude de seu conhecimento a respeito dos atuais ou mesmo dos futuríveis. Assim se diz que Jesus ia crescendo em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens (Lc 2.52), ou mesmo que nem o Filho do Homem sabe o dia da sua vinda (Mt 24.36; par. Mc 13.32), já que esse conhecimento o Pai estabeleceu por sua exclusiva autoridade (At 1.7). Assim lemos em Atanásio: "Como homem, ele não sabia, pois a ignorância é própria dos homens" (ATANÁSIO. Contra Arianos. Oratio 4), evidentemente não sinalizando aquela ignorância que convém à natureza corrupta, mas sim aquela que é proporcionada à natureza humana que não dispõe de natural onisciência. Também diz Ambrósio de Milão: Como ele se desenvolvia na idade de um homem, assim ele se desenvolvia na sabedoria de um homem” (AMBRÓSIO. The Sacrament of the Incarnation of our Lord. cap. 7.77). Ora, como dizemos, há o que convém à natureza humana, e o conhecimento progressivo, indutivo e discursivo a ele convém enquanto homem, diferentemente do conhecimento intuitivo, imediato e noutético, o qual convém a Cristo enquanto Deus. Nisso resolvemos a dificuldade posta pelos kenoticistas, resolvendo a questão por eles legitimamente posta ao mesmo tempo que negamos a sua solução. Nesse sentido, preservamos com a nossa solução tanto a natureza humana segundo aquilo que a ela convém, assim como preservamos em nossa opinião a natureza divina segundo aquilo que a ela convém.

    O modo como resolvemos a questão aqui acaba por resolver todas as demais no que diz respeito à natureza humana e divina em Cristo. Assim, à luz de tudo o que foi dito, podemos também solver o problema posto em João 17.5, onde Jesus diz: e, agora, glorifica-me tú, Pai, junto de ti mesmo com a glória que eu tinha antes que houvesse mundo. Aqui o texto sugere uma perda da glória por parte de Jesus e uma reaquisição desta glória mediante a oração. Essa passagem só pode ser entendida à luz de outras passagens em João, pois ali se afirma que Jesus "desceu do céu" (Jo 3.13), como se a divindade pudesse se deslocar espacialmente de um lugar para o outro. Assim Jesus afirma um paradoxo que só se torna inteligível à luz da unidade das duas naturezas, ou seja: Ninguém jamais subiu ao céu, a não ser Aquele que veio do céu: o Filho do homem que está no céu. Aqui, aos olhos dos seus ouvintes, ele diz estava no céu ao mesmo tempo que evidentemente se encontrava ali corporalmente no mundo. Desta feita, enquanto homem ele estava ali no mundo, mas enquanto Deus estava no céu, transcendendo o mundo. Ora, segundo a operação das duas natureza é possível que Jesus esteja ao mesmo tempo no mundo, no campo da temporalidade, assim como também esteja fora do mundo, no campo da eternidade. Do mesmo gênero é outra afirmação onde se diz: Em verdade, em verdade vos asseguro: antes que Abraão existisse, Eu Sou (Jo 8.58b); nesse sentido, do ângulo da natureza divina Jesus é antes de Abraão, mas do ângulo da natureza humana, sendo que ele não tinha nem 50 anos ao proferir essas palavras (Jo 8.57), ele é depois de Abraão. Assim, do ângulo da natureza divina, sendo Jesus sujeito aos efluxes da graça, pode crescer em glorificação de forma colossal e adquirir aquela glória que pertence ao Filho desde toda eternidade enquanto Deus, mas enquanto Deus jamais decaiu em qualquer grau da totalidade da sua glória que possui desde toda a eternidade. Também, pelo ângulo da humanidade Jesus diz: o Pai é maior do que eu (Jo 14.8); mas pelo ângulo da divindade é justo que homens honrem o Filho, como honram o Pai (Jo 5.23).

    Assim posto, podemos recapitular aquilo que diz respeito ao Estado de Humilhação e acrescentar algo que diz respeito ao Estado de Exaltação. Ora, no Estado de Humilhação, no auto-esvaziamento, Jesus não se torna menos Deus do que é; assim também, no Estado de Exaltação, após Jesus se assentar à Direita da Majestade, Jesus não se torna, enquanto homem, mais Deus do que já era. Tanto o Estado de Humilhação quanto o Estado de Exaltação pertencem conjuntamente à pessoa una de Jesus Cristo, que é totalmente homem e totalmente Deus. Mas à distinção das operações das naturezas não deduzimos a duplicidade de pessoas, assim, na encarnação Deus todo está em Cristo e seus atributos estão substancialmente unidos à humanidade, operando nesta humanidade de Cristo, perfazendo a pessoa una. O que os dogmáticos (luteranos ou reformados) dizem, por tanto, desta unidade, é que visando o eterno propósito da salvação da humanidade Cristo não faz o pleno uso de tais atributos, mesmo que podendo operar imensamente tais atributos para o interior da humanidade sem destruí-la. Assim foi para que vivendo como homem Jesus Cristo pôde experimentar aquilo que é próprio da humanidade - mas sem pecado -, de tal maneira que se sujeitando à Lei e à morte contraída pelo homem em virtude da transgressão da Lei, Jesus pudesse nos livrar da condenação da Lei assim como da morte contraída em virtude da transgressão da Lei.

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