segunda-feira, 17 de maio de 2021

Assumiu a Pena que estava sobre Mim: 30 Citações sobre a Expiação Penal: De Cipriano de Cartago a João Calvino

    O texto que se segue trata-se de uma coletânea de citações não comentadas mas que faz parte de um projeto maior que está sendo desenvolvido e que visa discorrer sobre a a teologia da expiação na história da Igreja, enfatizando não a aplicação da expiação no homem, mas sim a expiação realizada na cruz, assim como discorrer especificamente sobre a compreensão dos reformadores acerca da expiação na cruz. No mais, este texto não necessita de maiores explicação.     Seguem as citações:

    Cipriano de Cartago (? - 249 d.C.)

Que ninguém se engane, que ninguém se engane. Só o Senhor pode ter misericórdia. Só ele pode conceder perdão por pecados que foram cometidos contra si mesmo, que desnudam nossos pecados, que nos entusiasmaram, a quem Deus entregou por nossos pecados. O homem não pode ser maior do que Deus, nem um servo pode se comprometer ou renunciar por sua indulgência o que foi cometido por um crime maior contra o Senhor, para que a pessoa não tenha sido adicionada ao seu pecado, se ele for ignorante que seja declarado, Amaldiçoado é o homem que coloca sua esperança no homem. O Senhor deve ser invocado com súplicas. O Senhor deve ser apaziguado por nossa expiação, que disse, que aquele que o nega Ele negará, que sozinho recebeu todo o julgamento de Seu Pai.[1]

Eusébio de Cesaréia (264 - 339 d.C.)

Mas desde que estava à semelhança da carne pecaminosa Ele condenou o pecado na carne, as palavras citadas são justamente usadas. E nisso Ele fez nossos pecados Seu próprio amor e benevolência em relação a nós, Ele diz estas palavras, acrescentando mais adiante no mesmo Salmo: "O Senhor me protegeu por causa da minha inocência", claramente declarando a impecabilidade do Cordeiro de Deus. E como Pode Ele fazer nossos pecados Seus próprios, e ser dito para suportar nossas iniquidades, exceto por sermos considerados como Seu corpo, de acordo com o apóstolo, que diz: "Agora vós são o corpo de Cristo, e vários membros"? E pela regra de que "se um membro sofre com todos os membros sofrem com isso", então quando muitos membros sofrem e pecam, Ele também pelas leis da simpatia (uma vez que a Palavra de Deus teve o prazer de tomar a forma de um escravo e ser perfurado no tabernáculo comum de todos nós) leva em si mesmo os trabalhos dos membros que sofrem , e faz de nossas doenças Sua, e sofre todas as nossas aflições e trabalhos pelas leis do amor. E o Cordeiro de Deus não só fez isso, mas foi castigado em nosso nome, e sofreu uma penalidade que Ele não devia, mas que devemos por causa da multidão de nossos pecados; e assim Ele se tornou a causa do perdão de nossos pecados, porque Ele recebeu a morte por nós, e transferiu para si mesmo o flagelo, os insultos e a desonra, que eram devidos a nós, e desceu sobre si mesmo a maldição repartida, sendo feito uma maldição para nós.[2]

[Moisés] diz claramente que o sangue das vítimas mortas é uma propiciação no lugar da vida humana. E a lei sobre os sacrifícios sugere que isso deve ser respeitado, se for considerado cuidadosamente. Pois, é necessário que aquele que está sacrificando sempre coloque suas mãos sobre a cabeça da vítima, e leve o animal ao sacerdote seguro por sua cabeça, como quem oferece um sacrifício em seu nome. Assim, ele diz em cada caso: “Ele o trará perante o Senhor e porá as mãos sobre a cabeça da oferta.” Esse é o ritual em todos os casos, nenhum sacrifício é feito de outra forma. E então o raciocínio sustenta que as vítimas são trazidas no lugar das vidas daqueles que as trazem.[3]

Atanásio de Alexandria (296 - 373 d.C.)

E os Salmos 88 e 69, novamente falando na própria pessoa do Senhor, dizem-nos ainda que Ele sofreu estas coisas, não para o Seu próprio bem mas para o nosso. Fizeste repousar sobre mim a Tua ira, diz um; e o outro acrescenta, paguei-lhes coisas que nunca tomei. Pois Ele não morreu como sendo Ele próprio sujeito à morte. Ele sofreu por nós, e suportou em Si mesmo a ira que foi a pena da nossa transgressão, mesmo como diz Isaías, Ele próprio suportou as nossas fraquezas.[4]

Visto que aqui também o ministério por meio dele se tornou melhor, naquilo que a Lei não podia fazer por ser fraca pela carne. Deus enviou Seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa, e por causa do pecado condenou o pecado na carne "livrando-o da transgressão, na qual, sendo continuamente mantido cativo, ele não admitia a mente Divina". E tendo tornado a carne capaz da Palavra, Ele nos fez andar, não mais segundo a carne, mas segundo o Espírito, e dizer repetidamente: "Não estamos na carne, mas no Espírito" e "Pois o Filho de Deus veio ao mundo, não para julga-lo, mas para redimir todos os homens, e para que o mundo fosse salvo por ele". Anteriormente, o mundo, como culpado, estava sob o julgamento da Lei; mas agora a Palavra tomou sobre si mesmo o julgamento e, tendo sofrido no corpo por todos, concedeu a salvação a todos. Em vista disso, João exclamou: A lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.[5]

Desta maneira, uma vez que todos nele morrem, a sentença de corrupção proferida contra os homens será ab-rogada, após ter sido inteiramente consumada no corpo do Senhor. De agora em diante não mais maltratará os homens, seus semelhantes. Ele reconduzirá à incorruptibilidade os homens que se haviam voltado à corrupção, vivificá-los-á, tirando-os da morte. Pela apropriação de corpo humano e pela graça da ressurreição, fará desaparecer, longe deles, a morte, qual palha no fogo.[6]

     Cirilo de Jerusalém (313 - 386 d.C.)

Agora o Gólgota é interpretado, o lugar de um crânio. Quem eram eles então, que profeticamente nomearam este local de Gólgota, no qual Cristo, a verdadeira Cabeça, suportou a Cruz? Como diz o Apóstolo, "Que é a Imagem do Deus Invisível"; e um pouco depois, "Ele é a Cabeça do corpo, a Igreja". E, novamente, "a cabeça de cada homem é Cristo"; e, novamente, "Que é o Chefe de todo o principado e poder". A cabeça sofreu no lugar do crânio.[7]

Essas coisas que o Salvador suportou, e fizeram as pazes através do sangue de Sua Cruz, para as coisas no céu, e as coisas na terra. Porque éramos inimigos de Deus através do pecado, e Deus tinha nomeado o pecador para morrer. Deve haver, portanto, necessidades ter acontecido uma das duas coisas; ou que Deus, em Sua verdade, deve destruir todos os homens, ou que em Sua bondade amorosa Ele deve cancelar a sentença. Mas eis a sabedoria de Deus; Ele preservou tanto a verdade de Sua sentença, quanto o exercício de Sua bondade amorosa. Cristo levou nossos pecados em Seu corpo na árvore, para que nós, por Sua morte, possamos morrer para o pecado, e viver até a justiça.[8]

    E não admira que o mundo inteiro tenha sido resgatado; pois não era um mero homem, mas o Filho unigênito de Deus, que morreu em seu lugar. Além disso, o pecado de um homem, mesmo o de Adão, teve poder de trazer morte ao mundo; mas se pela transgressão de uma morte reinou sobre o mundo, como não deve a vida reinar muito mais pela justiça do Um? E se por causa do fruto da árvore eles foram então expulsos do paraíso, os crentes agora não entrarão mais facilmente no paraíso por causa da Árvore [cruz] de Jesus? Se o primeiro homem formado da terra trouxe a morte universal, Aquele que o formou da terra não trará vida eterna, sendo Ele mesmo a Vida? Se Finéias, quando ele se tornou zeloso e matou o malfeitor, reprimiu a ira de Deus, Jesus não, que não matou outro, mas se entregou por um resgate, afastar a ira que está contra humanidade?[9]

Gregório de Nazianzeno (329 - 390 d.C.)

Tome, no próximo lugar, a sujeição pela qual você submete o Filho ao Pai. O que, você diz, Ele não é agora sujeito, ou, se Ele é Deus, está sujeito a Deus? Você está modelando seu argumento como se se ocupasse de algum ladrão, ou de alguma didade hostil. Mas olhe para ele desta maneira: que, como para o meu bem, ele foi chamado de maldição, que destruiu a minha maldição; e pecado, que tira o pecado do mundo; e se tornou um novo Adão para tomar o lugar do velho, só para que Ele faça a minha desobediência Sua própria como Chefe de todo o corpo.[10]

Ambrósio de Milão (340 - 397 d.C.)

Jesus assumiu a carne de modo a destruir a maldição da carne pecaminosa, e tomou-Se maldição em nosso lugar para que a maldição desaparecesse devido à bênção... Ele também assumiu a morte sobre Si para que a sentença fosse executada, de maneira que cumprisse o julgamento de que a carne pecadora deve ser amaldiçoada até a morte. De modo que nada se fez contrário à sentença divina, visto que tais estipulações foram cumpridas.[11]

Adão está no deserto, no deserto está Cristo: pois ele sabia onde encontrar o condenado para dissipar sua distração e trazê-lo de volta ao paraíso; mas como ele não poderia voltar a ele coberto com os despojos deste mundo, como ninguém pode ser um residente do céu sem ser privado de toda culpa, ele deixou o velho [re]vestido com o novo: assim, como os decretos divinos não podem ser revogados, haveria mudança de pessoa ao invés de comutação de sentença.[12]

Então você aprendeu que Ele ofereceu o sacrifício a partir da nossa natureza. Qual foi a causa da Encarnação exceto que a carne que pecou pode ser redimida por meio em si?[13]

Agostinho de Hipona (354 - 430 d.C.)

A casta união conjugal não é culpada, mas o pecado original acarreta a merecida pena. O marido não é mortal enquanto tal, mas devido ao pecado. O Senhor também era mortal, mas não por causa de algum pecado. Aceitou a pena que merecíamos, e assim apagou a nossa culpa. Com razão, portanto, todos morrem em Adão, mas em Cristo todos são vivificados (cf. 1Co 15,22)[14].

Se fez maldição por nós', como não teme dizer: por todos. Este que morreu é o mesmo que se fez maldição; porque a mesma morte parte da maldição e maldição é todo pecado, tanto aquele do qual se segue o castigo, como o próprio castigo [morte], que com outro nome se nomeia pecado, que procede do pecado. Cristo tomou sobre si, sem culpa, o nosso castigo, para apagar a nossa culpa e para por fim ao nosso castigo.[15]

Se lemos: "Maldito por Deus é todo aquele que está pendurado no madeiro", o acréscimo das palavras "de Deus" não cria nenhuma dificuldade. Pois, se Deus não tivesse odiado o pecado e nossa morte, Ele não teria enviado Seu Filho para suporta-los e aboli-los. E não há nada de estranho em Deus amaldiçoar o que Ele odeia, pois Sua prontidão em nos dar a imortalidade que obteremos na vinda de Cristo é proporcional à compaixão com que Ele odiou nossa morte quando ela foi pendurada na cruz na morte de Cristo. E se Moisés amaldiçoa todo aquele que está pendurado em uma árvore, certamente não é porque ele não previu que os homens justos seriam crucificados, mas sim porque Ele previu que os hereges negariam que a morte do Senhor fosse real, e tentariam refutar a aplicação desta maldição a Cristo, a fim de que eles possam refutar a realidade de Sua morte.

[...] Maldito todo aquele que é pendurado no madeiro; não este ou aquele, mas absolutamente todos. O que! O filho de Deus? Sim, com certeza. É exatamente a isso que você se opõe e da qual está tão ansioso para escapar. Você não vai permitir que Ele foi amaldiçoado por nós, porque você não vai permitir que Ele morreu por nós. A isenção da maldição de Adão implica a isenção de sua morte. Mas, como Cristo suportou a morte como homem e pelo homem; assim também, Filho de Deus como Ele era, sempre vivendo em Sua própria justiça, mas morrendo por nossas ofensas, Ele se submeteu como homem, e pelo homem, para suportar a maldição que acompanha a morte. E como Ele morreu na carne que Ele recebeu ao suportar nossa punição, assim também, enquanto sempre abençoado em Sua própria justiça, Ele foi amaldiçoado por nossas ofensas, na morte que Ele sofreu ao suportar nossa punição.

[...[ O crente na verdadeira doutrina do evangelho compreenderá que Cristo não é reprovado por Moisés quando fala Dele como amaldiçoado, não em Sua majestade divina, mas pendurado na árvore como nosso substituto, suportando nosso castigo [...] Agora, o castigo do pecado não pode ser abençoado, ou então seria algo a ser desejado. A maldição é pronunciada pela justiça divina, e será bom para nós se formos redimidos dela. Confesse então que Cristo morreu, e você pode confessar que Ele carregou a maldição por nós [...] Então ele exclama: Amaldiçoado; significando que Ele realmente morreu. Ele sabia que a morte do homem pecador, que Cristo, embora sem pecado, suportou, veio daquela maldição: “Se você tocar nela, certamente morrerá”.[16]

    Cirilo de Alexandria (376 - 444 d.C.)

A cruz, então, que Cristo carregou, não foi pelos seus próprios méritos, mas foi a cruz que nos esperava, e nos era devida, por meio de nossa condenação pela lei. Pois assim como Ele foi contado entre os mortos, não por Si mesmo, mas por nós, para que pudéssemos encontrar Nele, o Autor da vida eterna, subjugando por Si mesmo o poder da morte; assim também, Ele tomou sobre Si a Cruz que nos era devida, transmitindo sobre Si a condenação da Lei, para que a boca de toda iniquidade pudesse doravante ser calada, de acordo com a palavra do Salmista; o Imaculado tendo sofrido condenação pelo pecado de todos.[17]

E o título continha um escrito contra nós: a maldição que, pela Lei Divina, pair asobre os transgressores, e a sentença que foi contra todos os que erraram contra essas antigas portarias da Lei, como a maldição de Adão, que foi contra toda a humanidade, na qual todos quebraram os decretos de Deus. Pois a ira de Deus não cessou com a queda de Adão, mas Ele também foi provocado por aqueles que depois dele desonraram o decreto do Criador; e a denúncia da Lei contra transgressores foi estendida continuamente sobre todos. Estávamos, então, amaldiçoados e condenados, pela sentença de Deus, através da transgressão de Adão, e através da violação da Lei estabelecida depois dele; mas o Salvador aniquilou o escrito contra nós, pregando o título de Sua Cruz, que claramente apontou para a morte sobre a Cruz que Ele sofreu para a salvação dos homens, que estavam sob condenação. Para nosso bem, ele pagou a pena pelos nossos pecados. Pois embora fosse aquele que sofreu, estava muito acima de qualquer criatura, como Deus, e mais era precioso do que a vida de todos. Portanto, como diz o salmista, a boca de toda foi interrompida, e a língua do pecado foi silenciada, incapaz de falar mais contra os pecadores. Pois estamos justificados, agora que Cristo pagou a pena para nós; pois por Suas pisaduras estamos curados, de acordo com as Escrituras.[18]

    Gregório Magno (540 - 604 d.C.)

    Mas devemos considerar como Ele é justo e ordena todas as coisas com justiça, mesmo quando condena aquele que não merece ser punido. Pois, o nosso mediador não merecia ser punido por si mesmo, porque Ele nunca foi culpado de qualquer contaminação do pecado. Porém, se Ele não tivesse sofrido uma morte que não lhe fosse devida, nunca teria nos libertado de uma morte que era devida com justiça a nós. E assim, enquanto 'O Pai é justo', ao punir um homem justo, 'Ele ordena todas as coisas justamente’. É por estes meios Ele justifica todas as coisas, tendo em vista que por causa dos pecadores, Ele condena aquele que não tem pecado para que todos os eleitos pudessem ser elevados a altura da justiça, na mesma proporção que Ele que, acima de todos, sofreu as punições de nossas injustiças. O que então está naquele lugar chamado de 'ser condenado sem merecimento', é aqui referido como sendo 'condenado sem causa’. No entanto, embora a respeito de si mesmo Ele tenha sido 'afligido sem causa', em relação aos nossos atos não foi 'sem causa. Pois a ferrugem do pecado não poderia ser removida, a não ser pelo fogo do tormento. Ele então veio sem pecado, e deveria se submeter voluntariamente ao tormento, para que os castigos devidos à nossa maldade pudessem com justiça perder as partes detestáveis, visto que injustamente haviam mantido Ele, que estava livre delas. Assim, foi ambos – com causa e sem causa - que Ele foi afligido, pois realmente ele mesmo não cometeu crimes, mas limpou com seu sangue a mancha de nossa culpa.[19]

Portanto, deixe o homem santo se lembrar de onde a raça humana escapou, deixe-o olhar para as desgraças da morte eterna, sendo claro que a justiça humana nunca poderia resistir. Deixe-o ver quão perversamente o homem tem ofendido, deixe-o ver quão severamente a ira do Criador é dirigida contra o homem, e que ele clame pelo Mediador entre Deus e o homem [...] Pois o Redentor da Humanidade foi feito Mediador entre Deus e o Homem através da carne, porque só Ele apareceu justo entre os homens. Ainda que sem pecado, Ele veio para suportar a punição do pecado [...] Ele deu exemplos de inocência quando levou sobre Si o castigo devido à maldade. Assim, pelo seu sofrimento, Ele convenceu a Um e a outro, pois ele tanto repreendeu o pecado do homem infundindo-lhe a justiça como abrandou a ira do Juiz através de sua morte. Ele impôs Sua mão sobre ambos, uma vez que Ele deu exemplos aos homens que eles poderiam imitar, e exibiu em Si mesmo aquelas obras para Deus, pelas quais Ele poderia ser reconciliado com os homens. [...] Assim, Ele impôs Sua mão sobre ambos, pois pelos mesmos passos ensinou as boas obras aos culpados, e também apaziguou o indignado Juiz.[20]

Martinho Lutero (1483 - 1546 d.C.)

    Desse conhecimento de Cristo e dessa consolação tão agradável de que Cristo foi feito maldição em nosso lugar para nos resgatar da maldição, privam-nos os sofistas, quando separam Cristo dos pecados e dos pecadores e o apresentam apenas como exemplo que deve ser imitado por nós. Desse modo, não apenas tornam Cristo inútil para nós, mas, também, o constituem como juiz e tirano, que se irrita com os pecados e condena os pecadores.

    Mas nós devemos envolver Cristo em nossa carne e sangue e reconhecer que, da mesma maneira como ele está envolto na carne e no sangue, também o é nos pecados, na maldição, na morte e em todos os nossos males. Mas, na opinião deles, é um grande absurdo e uma afronta chamar o Filho de Deus de pecador e de maldição. Se queres negar que ele é um pecador e uma maldição, nega também que ele sofreu, foi crucificado e morreu. Pois não é menos absurdo dizer que o Filho de Deus, como nosso Credo confessa e ora, foi crucificado, suportou as penas do pecado e da morte, do que dizer que ele é um pecador e uma maldição. No entanto, se não é um absurdo confessar e crer que Cristo foi crucificado entre ladrões, também não é um absurdo dizer que ele foi uma maldição e um pecador dos pecadores. Certamente, não são inúteis as palavras de Paulo: "Cristo foi feito maldição em nosso lugar" e: "Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus".

    Da mesma forma, João Batista o chama de "Cordeiro de Deus", etc. Ele, com efeito, é inocente, porque é o Cordeiro imaculado e incontaminado de Deus. No entanto, como carrega os pecados do mundo, a sua inocência é suprimida com os pecados e a culpa de todo o mundo. Quaisquer pecados que eu, tu e nós todos cometemos e, no futuro, cometeremos, são de tal modo os pecados de Cristo como se ele mesmo os tivesse cometido. Em poucas palavras, importa que o nosso pecado se torne o próprio pecado de Cristo, do contrário, pereceremos eternamente. Esse conhecimento verdadeiro de Cristo, que nos transmitiram Paulo e os profetas, os ímpios sofistas obscureceram.[21]

    E este é o nosso supremo consolo de revestir-nos de Cristo e envolvê-lo em meus, em teus e nos pecados de todo o mundo, vendo-o carregar todos os nossos pecados. Se é visto desse modo, ele, facilmente, remove as opiniões fanáticas dos adversários a respeito da justificação por obras. Pois os papistas sonham com uma fé formada pelo amor por cujo intermédio querem remover os pecados e ser justificados. Isso é despir inteiramente a Cristo, desembaraçá-lo dos pecados, fazê-lo inocente e carregar e esmagar-nos a nós mesmos com nossos próprios pecados, encarando-os não em Cristo, mas em nós mesmos. Isso é, verdadeiramente, abolir a Cristo e torná-lo inútil. Pois, se é verdade que abolimos o pecado pelas obras da lei e pelo amor, então, não é Cristo que os tira, mas nós. Mas, se ele é, verdadeiramente, o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, foi feito maldição em nosso lugar e foi envolvido em nossos pecados, então, necessariamente, conclui-se que não podemos ser justificados e tirar os pecados pelo amor, pois Deus não colocou os pecados sobre nós, mas sobre Cristo, seu Filho. Se eles são tirados por ele, não podem ser tirados por nós. Isso toda a Escritura afirma e nós confessamos e oramos o mesmo no Credo, quando dizemos: "Creio em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que padeceu, foi crucificado e morto por nós".

    Essa é a mais agradável de todas as doutrinas e a mais plena de consolo, que ensina que temos essa inefável e inestimável misericórdia e esse amor de Deus. Quando o Pai misericordioso viu que estávamos sendo oprimidos pela lei e sujeitos à maldição e nada nos poderia libertar dessa situação, ele enviou, por esse motivo, seu Filho ao mundo, sobre o qual lançou todos os pecados de todos os homens e disse a ele: "Tu és Pedro, que te negou; tu és Paulo, o perseguidor, blasfemador e homem violento; tu és Davi, o adúltero; tu és o pecador que comeu o fruto no paraíso; tu és o ladrão na cruz. Numa palavra, tu és a pessoa de todos os homens que cometeu os pecados de todos os homens. Pensa, pois, como os pagarás e farás satisfação por eles". Nesse momento vem a lei e diz: "Considero esse homem um pecador que assumiu sobre si os pecados de todos os homens e, além disso, não vejo nenhum pecado, a não ser os que estão sobre ele. Que morra, portanto, na cruz!" E, assim, ela o ataca e mata. Por esse feito, todo o mundo é purificado e remido de todos os pecados e, portanto, também Libertado da morte e de todos os males. Uma vez abolidos o pecado e a morte, por esse homem singular, Deus não gostaria de ver nada mais, em todo o mundo, sobretudo se cresse, a não ser mera purificação e justiça. E, se permanecessem alguns restos de pecado, Deus não os consideraria por causa desse sol, que é Cristo.

    Assim, pois, devemos exaltar o artigo da justiça cristã em oposição à justiça da lei e das obras, ainda que não haja palavra alguma nem eloquência que possa concebê-lo dignamente, muito menos, exprimir sua grandeza. É, por isso, o argumento do qual Paulo trata aqui, o mais poderoso e o mais elevado de todos contra todas as justiças da carne, pois contém essa invencível e irrefutável antítese, a saber: Se os pecados de todo o mundo estão sobre esse único homem, Jesus Cristo, então, não estão sobre o mundo. Mas, se não estão sobre ele, estão, ainda, sobre o mundo. Da mesma forma: Se Cristo mesmo é feito culpado por todos os pecados que nós todos cometemos, então somos absolvidos de todos os pecados, mas não por causa de nós mesmos, ou por causa de nossas obras ou méritos, mas por causa dele. Se, contudo, é inocente e não carrega os nossos pecados, então nós os carregamos e neles morreremos e seremos condenados. "Mas, graças a Deus, que nos dá a vitória por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo" [Co 15.57]. Amém.[22]

    Recebamos, pois, com ações de graça e com inabalável confiança essa doutrina tão suave e tão plena de consolo que ensina que Cristo foi feito maldição por nós, isto é, pecador culpado da ira de Deus e que revestiu-se de nossa pessoa e colocou em seus ombros os nossos pecados e disse: "Eu cometi os pecados que todos os homens cometeram". Por isso, ele, verdadeiramente, tornou-se amaldiçoado, não por causa de si mesmo, mas, como diz Paulo: yper ernon [por nós]. Pois, se ele não tivesse recebido em si mesmo os meus, os teus e os pecados de todo o mundo, a lei não teria tido nenhum direito sobre ele, porque condena e mantém sob a maldição, apenas, (sic) os pecadores. Por isso, jamais poderia ter se tornado um amaldiçoado nem ser morto se a causa da morte e da maldição fosse o pecado do qual era imune. Mas, porque assumiu os nossos pecados, não porque fosse coagido, mas voluntariamente, era preciso que ele suportasse o castigo e a ira de Deus, não pela sua pessoa que era justa e invencível e, por isso, não podia tomar-se culpada, mas por causa de nossa pessoa.[23]

    Assim, por meio de uma feliz permuta conosco, recebeu nossa pessoa pecaminosa e nos deu a sua inocente e vitoriosa pessoa. Por ela, cobertos e vestidos, somos libertados da maldição da lei, porque o próprio Cristo tomou-se maldição em nosso lugar, dizendo: "Eu, por causa de minha pessoa humana e divina, sou abençoado e não careço de absolutamente nada, mas me esvaziarei, assumirei a vossa vestimenta e máscara e, nela, andarei e sofrerei a morte, a fim de que vos liberte da morte. E, como carregasse, dessa maneira, o pecado de todo o mundo em nossa máscara, ele foi preso, crucificado, morto e feito maldição em nosso lugar. Mas, porque ele era uma pessoa eterna e divina. foi impossível que a morte o retivesse. Ressuscitou, portanto, da morte no terceiro dia e, agora, vive eternamente e não mais se encontram nele o pecado, a morte e a nossa máscara. mas pura justiça, vida e bênção eternas[24].

    A fé une a alma com Cristo como uma noiva é unida com seu noivo [...]. Assim, segue-se que tudo que eles têm é comum aos dois, seja bom ou mau. Dessa maneira, o crente pode se gabar e se gloriar em qualquer coisa que Cristo possui, como se fosse seu; e o que quer que o crente tenha, Cristo reivindica como seu. Vejamos como isso funciona e como isso nos beneficia. Cristo é cheio de graça, vida e salvação. A alma humana é cheia de pecado, morte e danação. Agora deixe a fé intervir entre eles. Pecado, morte e danação passam a ser de Cristo; e graça, vida e salvação passam a ser do crente.[25]

João Calvino (1509 - 1564 d.C.)

    Consideremos agora o contraste entre justiça e pecado. Como é possível que nos tornemos justos diante de Deus? Da mesma forma como Cristo se fez pecador. Porque ele assumiu, por assim dizer, nossa pessoa, de modo que ele pôde ser o infrator em nosso lugar e, assim, ser considerado pecador, não em razão de suas próprias ofensas, mas em razão das ofensas alheias, visto que, pessoalmente, Ele era puro e livre de toda e qualquer mancha e cancelou a penalidade que era nossa, e não dEle próprio.[26]

    O outro requisito de nossa reconciliação com Deus era este: que o homem, que se havia perdido por sua desobediência, à guisa de remédio contrapusesse a obediência, satisfizesse ao juízo de Deus, pagasse integralmente as penalidades do pecado. Portanto, nosso Senhor adiantou-se como verdadeiro homem, revestiu-se da pessoa de Adão, assumiu-lhe o nome, para que, em obedecendo-lhe, fizesse as vezes do Pai, para que apresentasse nossa carne como o preço de satisfação ao justo juízo de Deus, e na mesma carne pagasse completamente a pena que havíamos merecido. Uma vez que, afinal, nem podia, como somente Deus, sentir a morte, nem como somente homem podia superá-la, associou a natureza humana com a divina, para que sujeitasse à morte a fraqueza de uma, no afã de expiar pecados; e, sustentando luta com a morte pelo poder da outra, nos adquirisse a vitória. Logo, aqueles que despojam a Cristo ou de sua divindade, ou de sua humanidade, na realidade lhe diminuem tanto a majestade quanto a glória, obscurecem igualmente sua bondade. Mas, por outro lado, não menos detrimento causam aos homens, cuja fé assim abalam e subvertem, a qual não pode permanecer firme a não ser neste fundamento.[27]

    Mas, visto que só no sacrifício e na ablução com que se expiam os pecados as consciências aterrorizadas acham descanso, somos, com razão, para aí dirigidos, e então na morte de Cristo se nos depara a essência da vida. Todavia, visto que ante o tribunal celeste de Deus permanecia nossa maldição resultante da culposidade, menciona-se, em primeiro lugar, a condenação perante o procurador da Judéia, Pôncio Pilatos, para que saibamos que a pena a que havíamos de sujeitar-nos fora infligida ao Justo. Não podíamos fugir ao horrível juízo de Deus. Para que daí nos livrasse, Cristo se deixou condenar diante de um homem mortal, aliás, até mesmo ímpio e profano. Pois, o nome do procurador é expresso não só para confirmar a fidedignidade da história, mas ainda para que aprendamos o que Isaías ensina: “Sobre ele esteve o castigo de nossa paz, e por sua pisadura fomos curados” [Is 53.5]. Ora, nem era bastante que, a fim de tolher-nos a condenação, arrostasse ele qualquer modalidade de morte. Pelo contrário, para que nos satisfizesse à redenção, foi-lhe imposto escolher um gênero de morte em que, não só transferisse para si a condenação, mas também tomasse sobre si a expiação, e de uma e outra nos livrasse. Se Cristo tivesse sido degolado por assaltantes ou tumultuariamente morto em uma sedição do poviléu, em morte desse tipo nenhuma espécie de satisfação teria subsistido. Quando, porém, é ele colocado diante do tribunal como réu, é acusado e é premido de testemunhos contrários, é sentenciado à morte pela boca do próprio juiz. Com essas provas compreendemos que ele assumiu a pessoa de um criminoso e malfeitor.[28]

    Além disso, a própria forma da morte de Cristo não carece de grande mistério. A cruz era maldita não apenas na opinião humana, mas também por decreto da lei divina [Dt 21.23]. Logo, enquanto é nela alçado, Cristo se faz sujeito à maldição. E se impôs agir assim para que, enquanto ela é transferida para ele, eximidos fôssemos de toda maldição, a qual, em conseqüência de nossas iniqüidades, nos estava reservada, ou, antes, pendia sobre nós. Isto fora prefigurado até mesmo na lei. Pois as vítimas oferecidas pelos pecados e no Antigo Testamento eram expiatórias, as chamavam ASCHAMOT, vocábulo com que, com propriedade, se designa o próprio pecado. Com esta aplicação do termo, o Espírito quis indicar que elas equivaliam a καθαµάτων [katharmáton – sacrifícios ou ritos de purificação], que tomariam sobre si e susteriam a maldição devida às transgressões. O que, porém, fora representado figurativamente nos sacrifícios mosaicos, isso se exibe em Cristo, atualizado no arquétipo. Portanto, para que levasse a efeito a justa expiação, ofereceu ele a própria vida como um ascham, isto é, um sacrifício expiatório do pecado, como o diz o Profeta [Is 53.10], sobre o qual lançada, de certa maneira, a mancha e a pena, para que deixe de ser-nos ele imputado. Mais explicitamente, isto mesmo testifica o Apóstolo, quando ensina que “Aquele que não conhecera pecado, foi pelo Pai feito pecado por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” [2Co 5.21]. Ora, o Filho de Deus, absolutamente limpo de toda mácula, revestiu-se, entretanto, do opróbrio e da ignomínia de nossas iniqüidades, e por seu turno nos cobriu de sua pureza. O mesmo parece ter Paulo contemplado quando, em referência ao pecado, ensina ter sido o mesmo condenado em sua carne [Rm 8.3]. Pois, de fato, o Pai anulou o poder do pecado, quando a maldição foi transferida para a carne de Cristo. Indica-se, portanto, com esta afirmação, que em sua morte Cristo foi imolado ao Pai como vítima expiatória, para que, efetuada propiciação por seu sacrifício, não mais nos apavoremos com a ira de Deus.[29]

    Cristo foi pendurado. Com toda certeza, porém, ele não sofreu tal castigo por sua própria culpa. Segue-se, pois, ou que ele foi crucificado em vão, ou que a nossa maldição foi lançada sobre ele para que pudéssemos ficar livre dela. Ora, o apóstolo não diz que Cristo era maldito, porém algo mais, a saber: que ele se fez maldição, significando que a maldição de todos nós foi lançada sobre ele. Se isso parece abrupto a alguém, que o tal também se envergonhe da cruz de Cristo, em cuja confissão nos gloriamos. Deus não ignorava o tipo de morte que seu filho morreria, quando pronunciou: "Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro".

    Mas, como é possível, que o Bem-Amado Filho fosse amaldiçoado por seu Pai? Minha resposta é que há duas coisas a serem consideradas, não só na pessoa de Cristo, mas também em sua natureza humana. Uma é que ele era o imaculado Filho de Deus, cheio de benção e graça. Outra é que ele assumiu o nosso lugar, e assim se tornou um pecador sujeito à maldição, não em si mesmo, mas em nós; toda via de tal maneira que lhe era indispensável agir em nosso nome. Ele não podia estar fora da graça de Deus, e no entanto suportou a sua ira. Pois como poderia reconciliar-nos consigo se considerasse o Pai um inimigo e fosse odiado por Ele? Portanto, a vontade do Pai sempre repousou sobre ele. Além disso, como poderia ele ter-nos livrado da ira de Deus se não a houvesse transferido para si próprio?[30]

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[1] CIPRIANO DE CARTAGO. De Lapsis. 17.

[2] EUSÉBIO DE CESARÉIA. Demonstratio Evangelica. Lib. 10.1.

[3] Ibidem. 1.10.

[4] ATANÁSIO DE ALEXANDRIA. Carta a Marcelino.

[5] Idem. Oratio Contra Arianos. 1.60.

[6] Idem. A Encarnação do Verbo. 8.4. Ed. Paulus 2015. P. 135
[7] CIRILO DE JERUSALÉM. Orações Catequéticas. 13.23.

[8] Ibidem. 13.33.

[9] Ibidem. 13.2.

[10] NAZIANENO, Gregório de. Oração. Quarta Oração Teológica. 30.5.

[11] AMBRÓSIO. De Fuga Saeculi. 44. apud. KELLY, J. N. D. A Patrística. Ed. Vida Nova 2009. p. 295, 296.

[12] Idem. Expositio evangelii Lucas. 4.7

[13] Idem. The Sacrament of the Incarnation of Our Lord. 56. Ed. The Catholic University of America Press 1963. p. 268 – tradução feita por mim.

[14] AGOSTINHO. Comentário aos Salmos: Salmos 1-50. Salmo 50.10.7. Patrística 9/1. Ed. Paulus 1ª ed. 1997. 4ª reimp. 2017. p. 909.

[15] Idem. Contra Faustum Manichaeum Libri Triginta Tres. 14.4.

[16] Ibidem. 14.6, 7.

[17] CIRILO DE ALEXANDRIA. Comentários sobre João. Livro 12. João 19.16.

[18] Ibidem. João 19.19.

[19] MAGNO, Gregório. Morals on the Book of Job. Vol I. Part 1 and 2. Oxford 1844. 3.27. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=jfAXAAAAYAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false

[20] Ibidem. 9.61.

[21] LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas Vol. 10. Comentário à Epístola aos Gálatas. Gálatas 3.13. Ed. Sinodal. 2008. p. 267, 268.

[22] Ibidem. p. 269, 270.

[23] Ibidem. p. 272, 273.

[24] Ibidem. p. 273

[25] Idem. Weimarer Ausgabe.7.25-6

[26] ​CALVINO, João. Comentário à Segunda Carta aos Coríntios. Ed. Fiel
2008. p. 16

[27] Idem. Institutas da Religião Cristã Vol. 2. Cap. XII.3 Ed. Casa
Editora Presbiteriana 1985. p.232.

[28] ​Ibidem. cap. XVI.5. p. 274.

[29] ​Ibidem. cap. XVI.6. p. 275, 276.

[30] Idem, Gálatas. 3.13. Edições Pracletos 1998. p. 94, 95.

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