quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Notas Fundamentais da Teologia Luterana da Satisfação Vicária e a Sua Conformação a Determinados Aspectos Essenciais da Teologia da Substituição Penal

    A doutrina da expiação Luterana conhecida como satisfação vicária, tem também, hoje, uma base paradigmática na Dogmática Cristã de John Theodore Mueller escrita na década de 30 do século passado. A importância dessa obra se reflete no fato de que, ainda hoje, ela é o texto base para a formação de clérigos luteranos da IELB, sendo essa ligada ao Sínodo de Missouri. E o que desejo com este texto é por em evidência a constituição da teologia da satisfação vicária luterana, assim como pontuar certa confluência entre essa teologia e a teologia da Substituição Penal reformada, em que pese o anti-calvinismo evidente de Muller.

Mas comecemos pela citação da obra de Muller. É como segue:

1) As circunstâncias da concepção e nascimento de Cristo constituem também o estado de humilhação, e tem valor propiciatório:

"Sua concepção e nascimento. Ambos esses acontecimentos pertencem ao estado de humilhação de Cristo, visto que a encarnação que, em si mesma não constitui humilhação, ocorre sob circunstâncias muito humilhantes. Pela encarnação, o Filho de Deus levou sobre si mesmo toda a miséria e desolação que o pecado fizera subverter ao ser humano caído [...]; pois por sua santa concepção e nascimento, trouxe expiação por nossa concepção e nascimento pecaminosos"1;

A concepção de Muller não destoa da concepção de Calvino, ou de outros teólogos reformados.

Calvino, nas Institutas, afirma: "Enfim, desde que Se revestiu da pessoa de servo, começou a pagar o preço de [nossa] libertação a fim de redimir-nos"2.

2) A circuncisão de Cristo faz parte do seu estado de humilhação através do qual é trazido ao homem e expiação dos pecados:

"Circuncisão, educação e vida de Cristo: Assim como todas as crianças judaicas do sexo masculino eram circuncidadas ao oitavo dia, Jesus foi sujeito à Lei divina pela corcuncisão ao oitavo dia (Lc 2.21), embora fosse Senhor da Lei. [...] Daí ser a circuncisão de Cristo, com justiça, considerada parte da obra redentora. [...]

Durante a sua permanência na terra, Cristo apareceu na forma de servo e semelhança dos seres humanos, suportando todas as aflições, perigos, tentações, vitupérios e vicissitudes comuns aos seres humanos em geral. [...] Sujeitou-se também, voluntariamente, ao governo civil [...], e aparecia publicamente como simples ser humano, de modo a ser considerado igual ou inferior aos demais"3.

A questão é que toda a vida de Jesus é redentora, e em tudo ele sofre vicariamente, ou seja, substitutivamente, cumprindo a vontade de Deus tanto ativa como passivamente. 1) Ativamente Cristo cumpre a justiça de Deus pelos homens; 2) Passivamente tanto em função dos sofrimentos, e provações a que fica submetido em seu estado de humilhação, incluindo a passio magna na Cruz. É um erro pensar que Jesus sofre e obedece vicariamente apenas na hora, ou seja, na passio magna.

Muller diz: "Para que pudesse redimir-nos mediante a sua santa obediência ( ativa Gl 4.4,5; passiva, Is 53.4-6), Cristo, desde a hora de sua concepção até a sua revivificação na sepultura, abster-se do uso completo e constante ( cheesis ) dos atributos da majestade e glória que lhe foram comunicados. [...] Durante toda a sua vida terrena [desde a concepção], até a conclusão de sua obra redentora, mostrou-se na forma de servo, tomando sobre si todas as fraquezas e enfermidades da natureza humana depois da queda e sendo sujeito à obrigação (Mt 3.15; Gl 4.4) e maldição (Gl 3.13) da Lei divina"4.

Berkhof, em sua famosa teologia sistemática, coloca a obediência passiva e ativa de Cristo nos seguintes termos:

"É costume distinguir-se entre obediência ativa e a obediência passiva de Cristo. Mas ao fazer-se discriminação entre ambas, deve-se entender distintamente que elas não podem ser separadas. As duas acompanham uma à outra em todos os pontos da vida do salvador. Há uma constante interpenetração de ambas. Uma parte da obediência ativa de Cristo era que ele se sujeitasse voluntariamente aos sofrimentos e à morte. Ele mesmo diz, referindo-se à Sua vida: 'Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou', Jo 10.18. Por outro lado, também era parte da obediência passiva de Cristo que ele vivesse em sujeição à lei. Seu viver de servo constituiu um importante elemento dos Seus sofrimentos. A obediência ativa e a obediência passiva de Cristo devem ser consideradas partes complementares de um todo orgânico"5.

A similaridade não é fortuita aqui, pois tanto na teologia reformada, como na teologia luterana, o modo da expiação de Cristo importa em virtude da teologia da justificação, sendo crucial que tanto a obediência passiva, assim como a obediência ativa, sejam computadas como significativas na constituição do benefício da justificação conquistada por Cristo aos homens.

3) O significado do padecimento de Cristo na Cruz se faz claro à luz da imputação:

"A agonia de Cristo de ver-se esquecido de Deus (MT 27.46), constituiu no padecimento da sua alma, da ira divina por causa dos pecados dos seres humanos, precisamente como se ele tivesse cometido as transgressões imputadas. Foi o padecimento das dores infernais (dolores infernales ), que consistem essencialmente na separação de Deus. [...]

Com muita correção, nossos dogmáticos descrevem a agonia da desertio como sensus irae divinae propter peccata hominum imputa. É antiescriturístico atribuir desespero a Cristo (desesperatio) em sua angústia extrema, uma vez que desespero é iniquidade e, por tanto, não está em acordo com seu caráter não pecaminoso"6.

Sobre essa citação, há muito o que dizer. Praticamente a conformidade entre o modo da morte de Cristo nas teologias luterana e reformada é absoluta, incluindo as nuances distintivas que evita um julgamento errôneo quanto a natureza da morte vicária de Cristo. Não estamos discutindo a questão da extensão da expiação, coisa que pode ser tratada em seu lugar próprio, mas sim a questão do modo da morte de Cristo, que é caracterizada pelas seguintes notas: 1) Cristo morre substitutivamente, levando sobre si a pena da humanidade; 2) Essa pena é entendida como a razão da passio magna de Cristo; 3) Essa passio magna é, segundo o entendimento luterano e reformado, caracterizado pelas dolores infernales; ) Tais dolores infernales é propriamente o sentimento da ira de Deus em função dos pecados dos homens.

Sobre essa questão, Calvino afirma: "E assim se impôs fazer-se, para que, enquanto para com ele se transfere [a maldição], eximidos fôssemos de toda maldição que, em consequência de nossas iniquidades, se nos reservava, ou, antes, impedia sobre nós"7.

Em outra parte Calvino afirma: "Ouça, porém, por outro lado, [o] que a Escritura ensina: haver sido alienado de Deus pelo pecado, herdeiro da ira, sujeito à maldição da morte eterna. excluído de toda esperança da salvação. alijado de toda benção de Deus, escravo de Satanás, cativo sob o julgo do pecado, destinado, afinal, a horrível exício, e já [nele] envolvido; neste ponto, haver Cristo intercedido [como seu] advogado, haver tomado sobre Si e haver pago a pena que do justo juízo de Deus ameaçava a todos os pecadores, haver expiado com o Seu sangue os maus feitos que rendiam abomináveis a Deus. com este sacrifício expiatório haver satisfeito e devidamente propiciado a Deus o Pai, mercê deste intercessor haver-lhe sido aplacada a ira, neste fundamento haver-se firmado a paz de Deus com os homens, neste vínculo conter-Lhe a benevolência para com eles"8.

Mas importa também estabelecer aqui o caminho unívoco entre as teologias luterana e reformada na questão da permanência da santidade e justiça de Cristo na provação da Cruz. E Sobre isso Calvino afirma: "Aqui, certos embusteiros, na verdade, indoutos [..] bradam que estou a fazer atroz injustiça a Cristo, por isso que teria sido mui longe de consentâneo que Ele temesse quanto à salvação da [Sua] alma"9. Para mais à frente afirmar: "Insistem que indignamente se atribui a Cristo [o] que é de si inquinável. Como se, na verdade, mais sabedoria tenham que o Espírito de Deus, Que concilia, a um tempo, essas duas [cousas]: haver sido Cristo em tudo tentado como nós [o somos] e, todavia, sem pecado. [...] Tudo quanto, porém, de livre vontade, sofreu por nós nada Lhe detrai o poder"10.

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1] MULLER, John Theodore - Dogmática Cristã. Ed. Concórdia Editora. 2004. p. 287
2] CALVINO, João - Institutas da Religião Cristã. Ed. Casa Editora Presbiteriana. 1985. vol. II. cap. XVI.5, p. 273.
3] MULLER - Ibid. p.288.
4] Ibid. p. 282.
5] BERKHOF, Louis - Teologia Sistemática. Ed. Cultura Cristã. 1ªed. 1990. p. 348.
6] MULLER - Ibid. 288, 289.
7] CALVINO - Ibid. XVI.6. p. 275.
8] CALVINO - Ibid. XVI.2. p. 270, 271.
9] CALVINO - Ibid. XVI.12. p. 282.
10] Ibid. p. 283.

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