terça-feira, 9 de março de 2021

O Direito, a Intuição e a Abstração

Uma das desvantagens que o direito tem frente à opinião pública é que o direito tende a ser contra-intuitivo, ao contrário da opinião pública, que quase sempre é fruto de uma reação fundada na percepção imediata dos fatos. Se por um lado essa reação imediata tem o seu lugar próprio em certas situações que demandam uma resposta imediata, a verdade é que não raro a opinião pública é insuficiente para lidar com assuntos mais diferenciados, cujo significado não é tão intuitivo assim, exigindo um longo processo de abstração. O direito, por ser fruto de um longo processo de reflexão, deliberação e reflexão sobre as deliberações, é um desses assuntos cujo sentido escapa à capacidade de juízo da opinião do vulgo.

E aqui oponho a ideologia intuicionista à teoria da abstração, a percepção imediata ao pensamento diferenciado. Esclarecer essa oposição é necessário em função do clima de opinião reinante nesses tempos confusos, pois esses tendem a provocar várias torções, algo ao qual não está sujeito o pensamento diferenciado no que tange a assuntos mais complexos, pois a sua verdade é somente acessível à mente cultivada. Há uma barbarização profunda no que diz respeito aos bens culturais diferenciados, incluindo aí o direito, pois o direito público está em disputa, sendo contestado por fanáticos e entusiasmados de vários matizes políticos.

A opinião publica, ou o clima de opinião, desse modo, não deveria ser concebido como o juiz supremo da verdade, nem o índice de aferição da verdade, mas sim apenas como o índice de compreensão do povo no que diz respeito a determinado assunto. Não raro o povo pode, em seu acesso de fúria, dirigir seu descontentamento a um alvo errado, principalmente quando enfeitiçado por uma espécie de narrativa que, tal como uma cenoura de burro, tende guiar o imaginário da população, ou de uma parte considerável dela. Tal enfeitiçamento é provocado, invariavelmente, por atores públicos, e na maior parte das vezes pelos intelectuais públicos - papel que nos últimos anos tem sido desempenhados por jornalistas, influenciadores digitais, artistas etc.

No mais das vezes, essa situação sugere que o intelectual público serve como um intérprete dos sentimentos que a massa desorientada nem consegue nomear muito bem. E o descontentamento sempre será uma matéria fértil e abundante para o trabalho do intelectual público. Dando certa interpretação verossímil para o descontentamento geral, o intelectual público concede ao povo ou a um grupo uma causa e um sentido pelo qual se orientar. Alguns, subindo acima das suas competências, buscam fornecer uma espécie de mito fundador pelo qual guiar a massa.

Podemos aqui seguir a mesa orientação de Aristóteles e enxergar a relação entre o intelectual público e a massa como a relação entre a potência e o ato. Nesse sentido os sentimentos imediatos, ainda confusos e sem uma orientação definida, mesmo que causados por fatos concretos - como a perda, frustração, empobrecimento e todos os males, sejam eles públicos ou privados -, seriam como que a matéria, sendo tais sentimentos conduzidos por uma forma argumentativa que molda e direciona tais sentimentos a um certo fim, dando à percepção dos males um certo sentido. O intelectual público obviamente habita o plano do pensamento diferenciado, enquanto que grande parte da população, que tem apenas que sobreviver e se ocupar de seus afazeres diários, habita a esfera da reação imediata fundada em certa intuição ou percepção imediata das coisas, não elevando muitos desses assuntos à esfera da diferenciação.

O grande problema disso está fundado na moral do intelectual público, que pode manipular a opinião segundo fins escusos, principalmente em relação àqueles assuntos que fogem à competência de muitos, e não raro dos intelectuais públicos. O caso do direito é, como dissemos antes, um desses casos, pois poucas pessoas tem em mente a importância do que seria o devido processo legal, ou qual o mecanismo de um habeas corpus, e qual a importância concreta de tais coisas na vida publica ou privada. O recente caso envolvendo a suspeição do ex juiz Sérgio Moro em relação ao caso de Lula exemplifica de forma cristalina esse caso. O que podemos dizer é que é quase impossível achar que a população no geral tenha qualquer informação substancial quanto as questões relacionadas às regras de competência, ou quão grave é um juiz desconsiderar os elementos da acusação - no caso os cinco contratos -, e mesmo assim condenar - o que nesse caso significa que, ao desconsiderar os cinco contratos como a fonte da propina, o juiz deixa de ser o juiz natural da causa.

Contudo, o caso seria mais simples de considerar se o próprio Lula, para bem ou para mal, não tivesse evidente importância e poder político. As paixões de veneração irracional ou de ódio insano gravitam em torno dele, e por carregar em si a significação de uma corrente política que se manteve por 13 anos no poder, não raro nas considerações sobre Lula paixões políticas são misturadas indevidamente com direito, o que, por fim, acaba por destruir a reta consideração do direito, que ainda que tenha sua função a cumprir dentro da comunidade política (no sentido de pólis), é indiferente a questões eleitoreiras, o que é agravado quando tais questões eleitoreiras carregam certo significado apocalíptico, algo que vem ocorrendo mais drasticamente desde 2013. A questão é que todo esse ódio e voragem insana da política é algo que dita o tom das considerações públicas, o que gera ocasião para o surgimento de certos profetas que passam a guiar o ódio das massas, criando esse cenário dantesco em que vivemos.

Mas antes que alguém diga que estou aqui para defender pessoa x ou y, e mesmo o Lula, cabe dizer que esse ódio político tem no Brasil moderno, como uma de suas causas, o próprio modo de agir político do ex presidente Lula. Também a narrativa política petista e as alianças ideológicas travadas pelo partido ao longo dos anos de governo incitou a justa indignação de muitos. Levando isso em consideração, ao direito ficou a tarefa não grata de agir confirme os seus fins. A questão é lembrar que o direito não visa "retirar" a culpa de ninguém, e que absolver alguém de uma acusação não implica que o réu seja intrinsicamente inocente; o que absolver alguém significa é que, segundo aquilo que é possível ao direito no momento, não foi possível provar a culpa - o que é diferente de dizer que alguém seja intrinsicamente sem culpa. Cabe à parte que apresenta a denúncia provar a culpa do réu dentro daquilo que é possível. Um tribunal não é o trono do juízo, e nem tem sobre si o atributo da onisciência.

Informações como essa acima é algo que escapa à cultura comum da maioria da população, e isso é assim porque a legislação, ou o direito, não são coisas intuitivas cujo conceito é de fácil acesso, como o é o conceito do calor a que chega a alguém que tem a pele abrasado pelo Sol a pino. A opinião pública é guiada tanto pelo sentimento imediato da insatisfação - e pelo juízo afetado por um ardor desordenante -, quando pela narrativa verossímil. Não raro tal narrativa será tão mais palatável quanto mais exploração houver ao ardor, à ira e às paixões baixas em geral, pois essas conferem àqueles que delas são afetados de certo sentimento de vivacidade. Ao contrários dessas coisas, o direito, mesmo que contado com certas falhas em sua realidade concreta nas legislações específicas de cada povo, é fruto do que de mais alto há no espírito humano, e essa esfera só é alcançada por um longo processo de abstração.

Um comentário:

  1. Poste mais textos sobre Filosofia e Metafísica, eles são ótimos, e ajudam muito a ter uma base!

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