sexta-feira, 24 de setembro de 2021

A Predicação dos Atributos de Deus a Partir dos Nomes Divinos: Uma comparação entre a Bíblia Hebraica (BHS) e a LXX a partir da profecia de Is 1.1-15.

    Embora você já deva ter ouvido que a Septuaginta (LXX) seja mais fiel ao texto original do que a Bíblia Hebraica que dispomos hoje (o texto do códice de Leningrado, por exemplo), é necessário reconhecer que na tradução do texto hebraico para o grego há perdas, principalmente no que diz respeito ao seu aspecto poético, o que implica em uma percepção mais opaca do aspecto teológico do texto. Uma breve comparação dessas duas versões a partir do bloco textual de Isaías 3.1-15 pode lançar luz sobre isso. Embora substancialmente o sentido não difira entre essas duas versões, a construção textual e os termos utilizados nos rendem maior ou menor acesso a uma visão mais ampla da profecia, e mesmo a forma como o profeta apresenta a relação de Deus com o povo de Judá e Jerusalém, assim como o seu modo de revelação. Mas ao texto propriamente dito.

    O texto de Isaías 3.1 começa da seguinte forma na ARA: "Porque eis que o Senhor, o Senhor dos Exércitos" etc. A reduplicação da palavra "Senhor" não é comum nem ao texto da BHS (Bíblia Hebraica Stuttgartensia) e nem mesmo ao texto da LXX. O texto hebraico começa da seguinte forma: כִּי֩ הִנֵּ֨ה הָאָדֹ֜ון יְהוָ֣ה צְבָאֹ֗ות (ki hinneh ha'adon yehwah zeva'oth), ou seja: "Pois remove ha'adon, o Senhor dos Exércitos". Já no texto da LXX temos: Ιδου δη ο δεσποτης κυριος σαβαωθ (ido de hó déspotes kürios sabaoth), ou: Eis que o Senhor, o Senhor dos Exércitos. Aqui, para o nosso interesse, é importante observar a equivalência entre "o Senhor, o Senhor dos Exércitos" com "הָאָדֹ֜ון יְהוָ֣ה צְבָאֹ֗ות" e "ο δεσποτης κυριος σαβαωθ". Note que a única duplicação de termos ocorre na tradução para o português, e isso porque realmente os temos "Senhor" e "Senhor dos Exércitos" correspondem a nomes divinos, que, embora distintos em significado, possuem certa equivalência, mesmo que não absoluta.

    Mas vamos tornar mais específica a nossa comparação: o primeiro termo o Senhor corresponde ao הָאָדֹ֜ון (ha'adon) hebraico e ao ο δεσποτης (hó déspotes) grego. A palavra hebraica הָאָדֹ֜ון é um termo que contém o prefixo הָ, que é um típico prefixo que indica o artigo definido (a, o) e que encontramos antes de uma consoante gutural como é o caso de א (álef), a primeira letra do alfabeto hebraico que transliteramos pelo sinal " ' ". Portanto, o substantivo propriamente dito é אָדֹ֜ון ('adon) e corresponde a outros nomes divinos, como por exemplo אֲדוֺנַי ('adonay). No léxico analítico de Benjamin Davidson1 é dito que אֲדוֺנַי, que significa basicamente meu Senhor, majestoso ou glorioso, provém da raiz דון (dvn) a qual guarda correspondência com דין (dyn), ou mesmo דּוּן (dûn) e דִּין (dîn). O significado de דּוּן e דִּין é respectivamente julgar, governar ou mesmo disputar, pleitear ou defender a causa de alguém (cf. Jr 5.28, onde דִּין é um termo repetido duas vezes no versículo e tem o sentido de defender a causa, ou julgar a causa). Em Gn 6.3, onde se diz que meu espírito não contenderá para sempre com o homem, a palavra contenderá é יָדוֺן. Também a tradução do nome de דִּינָה (ddînah = Diná), a filha de Jacó, significa julgada. Em Pv. 22.10, as dois termos que são traduzidos por contenda, e que poderiam ser mais propriamente traduzidos por disputa desonrosa, são דִּ֣ין וְקָלֹֽון, e o termo דִּ֣ין significa aqui disputa. E por fim em Jó 19.29, a última palavra do versículo em questão na BHS é lida2 (qerê) שַׁדִּין embora seja escrita (ketîv) שַׁדּֽוּן. Mas em ambos os casos, sendo precedidas pela partícula relativa שַׁ (sha), os termos significam que haverá julgamento (דִּין ou דּֽוּן). No dicionário bíblico de Luis Alonso Schökel3, דִּין se refere à administração da justiça, e sendo essa a principal tarefa de um governante, o sentido de דִּין é coextensivo ao sentido de governar e reger. Também Strong vai nesse mesmo sentido4. Mas propriamente se referindo ao termo אָדֹ֜ון, vemos o seu uso em textos como Gn 18.12, onde Sara se refere a Abraão como meu senhor (אדֹנִ֖י), sendo esse o termo que o servo de Abraão usava ao se referir a ele (Gn 24.9ss), ou o termo que Ló usou ao se referir aos anjos (Gn 19.2), chamando-os de senhores (אֲדֹנַ֗י = 'adonay). Portanto compreendemos o sentido desse título divino se referindo a Senhor, déspota, rei, mestre, contendo o título forte carga de significação majestática.

     Já o termo δεσποτης (déspotes) tem o sentido geral de amo, senhor, sendo a distinção entre δεσποτης e κυριος o fato de que δεσποτης é utilizando sempre em um sentido mais lato, como denotando alguém que possui amplo e ilimitado poder e autoridade, sobretudo sobre pessoas; já κυριος possui sentido mais estrito, se tratando de um senhor que exerce seu poder de forma benigna. Na LXX, em Jó 5.8ss, temos o termo παντων δεσποτην indicando o Déspota sobre tudo, ou Senhor de tudo, como Aquele a quem deve ser exposta a demanda. No Novo Testamento encontramos o termo relacionado a Deus em Atos 4.24, onde se diz: δεσποτα συ ο θεος ο ποιησας τον ουρανον και την γην, ou: Senhor, tú Deus, o criador dos céus e da terra. Simeão, no cântico de Lc 2.29-32 também chama a Deus de δεσποτα, como encontramos no vs. 29: νυν απολυεις τον δουλον σου δεσποτα κατα το ρημα σου εν ειρηνη, ou: Agora despedes em paz o teu servo, Senhor, segundo sua palavra. E é interessante que aqui encontramos a relação δεσποτα + δουλος (doulós), ou melhor, a relação senhor + escravo, o que é muito apropriado segundo o uso dos termos no grego. Em 2Pe 2.1, encontramos δεσποτην se referindo a Cristo, como ocorre também em Jd 4, quando se refere ao único Soberano, ou ao μονον δεσποτην. Também encontramos o termo relacionado a chefe de família em 1Pe 2.18, no sentido do senhor do escravo doméstico: οι οικεται υποτασσομενοι εν παντι φοβω τοις δεσποταις, assim devem os servos domésticos (οι οικεται) se sujeitar (υποτασσομενοι) com todo temor (εν παντι φοβω) aos seus senhores (τοις δεσποταις). Os demais textos de 1Tm 6.1-2; 2Tm 2.21 e Tt 2.9 vão no mesmo sentido deste último uso.

    Feitas todas essas considerações, agora podemos partir para Isaías 3.1-15 para vermos a importância das palavras hebraicas no estabelecimento do sentido teológico do bloco textual. Assim, Isaías, na bíblia hebraica, começa apresentando Deus em sua profecia como אָדֹ֜ון. A profecia em questão trata-se de um juízo proclamado sobre a Judá e a Jerusalém do séc. VIII a.C., ou seja, uma profecia voltada ao Reino do Sul. E podemos, por amor à precisão, nos remeter aos vs.13-15 onde vemos a clara oposição de Yahewh que se dispõe a entrar em juízo ou melhor, a pleitear e julgar os povos em favor do oprimido e do Seu povo. As palavras usadas no texto hebraico de Is 3.13 para se referir aos termos para pleitear ou a para entrar em juízo é, nessa mesma ordem, לָרִ֖יב (ladîv) e לָדִ֥ין (ladîn), entendendo que para ambas as palavras o לָ (la) é um prefixo que indica um movimento em direção a algo (para, ao etc.), sendo a raiz da palavras, em ordem רִ֖יב (dîv) e דִ֥ין (dîn). No texto grego essas duas palavras são traduzidas por κρισιν (crisin), que vem de κρισις (krisis), significando respectivamente julgamento, separação, juízo. Obviamente que a relação entre κρισις e δεσποτης não é uma relação absolutamente clara, como é a relação entre אָדֹ֜ון e דִ֥ין, pois ambos guardam a proporcionalidade semântica entre o juiz que promove a justiça e o julgamento justo. Também é importante observar a sonoridade poética da frase que liga justamente a ação de 'adon que se dispõe a ladîn, ou seja, a pleitear a causa. Outros substitutos poderiam ser usados para se falar de justiça, como é o caso de מִשְׁפָּט, que aparece apenas uma vez no vs.14. Também, se a tarefa do soberano, como observa Shökel, é promover a justiça, nada cabe mais a 'adon do que assim fazer, promovendo a justiça. E o texto, nesse sentido, relaciona maravilhosamente o título divino (אָדֹ֜ון) com uma ação que lhe é correspondente (לָדִ֥ין).

    É importante observar que no Antigo Testamento os nomes divinos desempenham um papel muito mais importante do que podemos observar com uma leitura superficial do texto. Já há muito tempo se estabeleceu que certas porções de textos carregam certa "tradição teológica" conforme os nomes divinos e os assuntos são enfatizados nessas porções. Assim se tornou costume falar em tradição javista, ou tradição heloista etc. Mas o que podemos perceber é que o título divino é equivalente ao seu modo de revelação. Quando falamos do Deus da provisão, por exemplo, nos remetemos a Gn 22.1-19, ao episódio do sacrifício de Isaque, e mais especificamente ao vs. 14 onde Abraão nomeia o lugar de יְהוָ֖ה יֵרָאֶֽה (Yhaweh yr'eh = Javé Irê), ou O Senhor proverá. É importante perceber a questão do modo de revelação ligado ao nome divino porque temos aqui aquela matéria da teologia pela qual falamos sobre a predicação de certos atributos de Deus a partir dos nomes pelos quais Ele mesmo se fez conhecido. Portanto a escritura hebraica nesse ponto lança uma luz absolutamente poderosa na forma como, segundo o registro do texto, Deus decidiu se revelar em Is 3.1, 14 e 15 como Deus Justo que julga a causa do oprimido (עֲנִיִּ֖ים), pois é Ele quem estabelece o direito (מִשְׁפָּט) dos indefesos e fracos contra aqueles que destroçam (תְּדַכְּא֣וּ) esmagam (תִּטְחָ֑נוּ) a suas faces.

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[1] BENJAMIM, Davidson. Léxico Analítico Hebraico e Caldaico. Ed. Edições Vida Nova, São Paulo-SP. 2018. p. 317, 318

[2] O sistema qerê e ketîv é um sistema de distinção que encontramos nos manuscritos hebraicos e que preservam a tradição que diferencia a forma com a qual um determinada palavra é tradicionalmente lida (qerê) e como ela é escrita (ketîv).

[3] SCHÖKEL, Luiz Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico Português. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 1ª ed. 1997, 6ª Reimp. 2018. p. 154

[4] STRONG, James. Dicionário Hebraico do Antigo Testamento. in: Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico e Grego. CPAD. Rio de Janeiro-RJ, 2ª reimp., 2ª ed., 2011. ref. Strong. 1777, p. 1597. ou mesmo em ref. Strong 136, p. 1509.

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