terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Das Categorias ao Silogismo; Ou: Reflexões sobre o Lógico e o Ontológico: Dos Elementos Supostos no Reto Pensar

A lógica enquanto disciplina repousa sobre sobre determinados fundamentos constitutivos que não podem ser ignorados por quem se dispõe a fazer uso desse ferramental indispensável para a boa ordem do pensar. O presente texto visa refletir sobre tais fundamentos segundo o que dessa disciplina foi pensada por seu fundador e sistematizador, Aristóteles de Estagira.

A lógica nada mais é do que um conjunto de regras e procedimentos que visam conferir ordem ao processo do pensar. O grande ferramental teórico sobre a disciplina que chamamos de lógica foi produzido e organizado em um conjunto de textos que hoje nomeamos de Órganon, conjunto este que contém um total de seis tratados, que são: Categorias, Da Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores, Tópicos e Refutações Sofísticas. Desconsiderando uma análise de todos esses tratados, o que pretendo aqui é colocar em foco certos fundamentos para disciplina da lógica, discorrendo sobre a relação entre as Categorias e o Silogismo.

Aristóteles define silogismo como "uma locução em que, uma vez certas suposições sejam feitas, alguma coisa distinta delas se segue necessariamente devido à mera presença das suposições como tais"1, ou seja, trata-se de uma locução formada por certas premissas, ou suposições, ou mesmo juízos, dos quais uma conclusão necessariamente se segue. Um silogismo é, por tanto, constituído de premissas e premissas são orações que negam ou afirmam algum predicado de determinado sujeito. Assim, a oração, ou a premissa, pode ser classificada como universal, particular, ou indefinida. Por universal se compreende aquilo que se aplica ou não à totalidade do sujeito; por particular se entende aquilo que se aplica, ou não se aplica, parcialmente ao sujeito, ou a nada deste; por indefinida aquilo que se aplica, ou não se aplica, sem se referir universalmente ou particularmente ao sujeito. Sobre os tipos de premissas falaremos mais adiante.     Estabelecida essa questão é importante considerarmos algumas coisas importantes aqui, já que definimos formalmente o que é um silogismo, e o que são as premissas que constituem um silogismo. Tendo em mente que uma premissa é algo que nega ou afirma algo deste sujeito, devemos entender o que é um sujeito e como podemos compreender quais são os predicados que são possíveis de serem negados ou afirmados deste sujeito - e aqui já podemos determinar que a lógica enquanto disciplina repousa sobre fundamentos que dizem respeito à constituição do ser, ou seja: o uso consequente do ferramental lógico repousa sobre um fundamento ontológico, pois todo pensar é um evento que ocorre no ser.
    Quando falamos de ontológico nos referimos ao ser, e mais especificamente à ciência da constituição do ser. Aristóteles, quando refletiu sobre essa constituição estabeleceu aquilo que chamamos de Categorias, que são elementos constitutivos do ser percebidos pelos sentidos e discernidos pela razão, ou seja: a razão, a partir de notas captadas pela experiência da realidade, discerne e distingue as categorias pelas quais conhecermos os objetos e as leis constitutivos da própria realidade. Essas Categorias são em número de dez, uma se referindo à substância e nove outras se referindo aos acidentes, ou seja: dez são os tipos de categorias que podemos predicar de um sujeito. Estas categorias são:     1 - Substância: Tudo o que existe existe ou em si mesmo ou em um outro; e quando existe em si mesmo isto é uma substância, tal como homem, ou animal; se existe em um outro são acidentes, tal como é o peso, a cor, ou a qualidade (inteligência, força, sagacidade) de um homem específico. Das substâncias podemos classifica-las como substância primeira e substância segunda. Animal, por exemplo, é algo que constitui um gênero em relação ao qual Homem é uma espécie, espécie à qual pertence o indivíduo Sócrates. Destas apenas Sócrates é uma substância primeira, pois é a realidade concreta perceptível pelos sentidos em relação à qual gênero e espécie são realidades abstratas, em si mesmas impossíveis de serem captadas pelos sentidos, sendo discernidas apenas pelo intelecto, p. ex: homem (no sentido de humanidade), não é possível de ser individuado em si mesmo, mas é percebido naquele ou neste homem específico; também somente este ou aquele homem em específico pode ser delineado in concretum em um desenho e ser apresentado aos sentidos, no entanto o homem (humanidade) é captado apenas in abstractum pela razão através da predicação da substância primeira, p.ex: Sócrates ou César, que são homens in concretum e não a humanidade in abstractum (substância segunda) etc.; da mesma sorte não há exemplos do que seria um animal in genere, mas apenas aquele ou este animal daquela ou desta espécie, neste ou naquele exemplo específico, como naquele homem Sócrates, neste boi etc. Mas acerca disso falaremos mais adiante. No entanto importa saber que é na substância em que ocorrem os nove tipos de acidentes listados abaixo;
    2 - Quantidade: A quantidade é a determinação quantificável da matéria da substância, p. ex: quando identificamos pelos sentidos que um homem é alto ou baixo;     3 - Qualidade: A qualidade é a determinação da natureza ou da formal de uma substância, p. ex: quando chamamos alguém de inteligente, arguto, belo, gentil etc.;     4 - Relação: A relação é a determinação a respeito da referência que uma determinada substância, ou um acidente, tem em relação a outra substância ou acidente, p. ex: quando nos referimos a alguém como pai, mãe, subordinado, patrão, mestre, amigo, inimigo, sucessor etc.;     5 - Ação: A ação é a determinação da substância a respeito da sua capacidade de exercer poder afim de provocar um efeito em si mesmo ou em outro, p. ex: discursar, operar uma máquina, curar, apaziguar, guerrear, orar etc.;     6 - Paixão: A paixão, ou a passio, é a determinação da substância a respeito da recepção sofrida (pathos) de um efeito causado por uma cação sobre si mesma, p. ex: lesionado, curado, consolado, fortificado, ferido, amado, esquecido etc.;    7 - Quando: Quando é a determinação da substância que a posiciona no curso dos eventos extrínsecos que medem a sua duração, p. ex: ontem, na sexta-feira, no séc. x, etc.;     8 - Onde: Onde é a determinação da substância que a posiciona em relação a outras substâncias corpóreas posicionadas no entorno, mensurando e determinando o seu lugar, p. ex: no céu, na cidade, em casa, num púlpito, no beco, na Igreja, no campo etc.;     9 - Postura: Postura é a determinação da substância que indica a posição de partes da mesma em relação a outras partes, p. ex: deitado, encolhido, estirado, sentado etc.;     10 - Estado: Estado é a determinação da substância que indica o elemento (de destaque) extrínseco à substância que a posiciona em relação a outras substâncias, ou de indivíduos em relação a outro indivíduo, ou a um ou mais grupos de indivíduos - tal determinação envolve vestimentas, hábitos, armas, o ornato -, p. ex: alguém calçado, uniformizado, armado etc.

    Aqui identificamos acidentes com determinações, já que ambos compreendem as realidades pelas quais uma substância particular pode se tornar conhecida.     Seguindo a estruturação da irm. Mirian Joseph, as categorias podem ser organizadas em três subcategorias pelos quais podemos classificar as predicações do sujeito, subcategorias que, em ordem se referem 1. À substância enquanto sujeito mesmo; 2. Aos predicados enquanto intrínsecos ao sujeito; 3. Aos predicados enquanto extrínsecos ao sujeito. Para esclarecer essa divisão, colocarei abaixo, em itálico e negrito meus, o texto da própria Irm. Mirian Joseph, como se segue:     1. O predicado é o sujeito mesmo. Se o predicado é aquilo que o próprio sujeito é, e não o que existe no sujeito, o predicado é uma substância (Maria é um ser humano).     2. O predicado existe no sujeito. Se o predicado que existe no sujeito flui absolutamente da matéria, o predicado é uma quantidade (Maria é alta). Se o predicado que existe no sujeito flui absolutamente da forma, o predicado é uma qualidade (Maria é inteligente). Se o predicado existe no sujeito como relação com respeito o outro, o predicado está na categoria da relação (Maria é filha de Ana).     3. O predicado existe como algo extrínseco ao sujeito. Se o predicado existe em alguma coisa extrínseca ao sujeito e é parcialmente extrínseco como princípio de ação no sujeito, o predicado é então uma ação (Maria analisou os dados). Se o predicado existe em algo extrínseco ao sujeito e é o termo de uma ação sobre o sujeito, então o predicado é uma paixão (Maria foi ferida). Se o predicado existe em algo extrínseco ao sujeito e é totalmente extrínseco como medida do sujeito em relação ao tempo, então o predicado está na categoria do quando (Maria estava atrasada). Se o predicado existe em algo extrínseco ao sujeito e é totalmente extrínseco como medida do sujeito em relação ao lugar, o predicado está na categoria do onde (Maria está aqui). Se o predicado existe em algo extrínseco ao sujeito e é totalmente extrínseco ao sujeito como medida do sujeito relativamente à ordem das partes, o predicado está na categoria postura (Maria está de pé). Se o predicado existe em algo extrínseco ao sujeito e é meramente adjacente ao sujeito, o predicado está na categoria do hábito (traje, aparato, posse, provisão, habilitação, etc.) (Maria veste roupa de gala).2     O conhecimento do que seriam os predicados ou as determinações do sujeito são propedêuticos, ante-salas, preliminares, ou conhecimentos fundamentais para o prosseguimento na disciplina da lógica, pois a aquisição de regras formais básicas não é por si mesma suficiente para aquilo que chamamos de raciocinar lógico. O conhecimento da estruturação da realidade é, também, fundamental e pré-condição básica para a execução de um pensar consequente. Entendido isso, vamos discorrer sobre a constituição básica de um silogismo.     Como dito anteriormente o silogismo é "uma locução formada por certas premissas, ou suposições, ou mesmo juízos, dos quais uma conclusão necessariamente se segue". Silogismos são constituídos de premissas, e como dito anteriormente as "premissas são orações que negam ou afirmam algum predicado de determinado sujeito". E para além daquela classificação que fizermos ao dizer que as premissas podem ser tanto universais, particulares, ou indefinidas, podemos dizer que a estrutura do silogismo é constituída de três juízos/proposições, ou melhor, duas premissas e uma conclusão. Portanto, mais especificamente, um silogismo é constituído por uma premissa maior, uma premissa menor e uma conclusão.     *Concretamente, isto é um silogismo: Premissa maior: Animal é aquilo que se move por si mesmo; Premissa menor: o homem é algo que se move por si mesmo; Conclusão: o homem é um animal.     Analisemos esse silogismo: Toda a argumentação proposta acima segue certa regra básica de predicação e subordinação segundo a constituição da substância, ou do sujeito, da qual podemos concluir que tal silogismo se trata, segundo as regras básicas propostas por Aristóteles, de um silogismo perfeito. Mas para lançarmos mais luz sobre a questão, lembremos das regras básicas propostas pelo Estagira para a compreensão daquilo que nomeamos de substância. Mas antes de mais nada definamos a substância como a categoria metafísica sobre a qual ocorrem aquilo que nomeamos de acidentes. Como dizemos ad supra, as substâncias são classificadas em substância primeira e substância segunda, e isso corresponde à distinção que se faz entre gênero, espécie e indivíduo. Essa gradação da substância trata-se de uma distinção de razão fundada no exemplo concreto do qual predicamos a classificação das substâncias. No silogismo acima lidamos com graus distintos na mesma substância, como é o caso de animal e homem, e ainda posicionamos na proposição, como termo médio do silogismo, uma nota distintiva que percebemos no homem concreto, que é o auto-movimento (se move por si mesmo) . Todas essas informações são essenciais para o que vem a seguir.
    A premissa maior é aquela na qual o termo maior contém totalmente o termo médio; a premissa menor é aquela na qual o termo menor se subordina ao termo médio. Assim classificamos como animal todo aquele que é semovente (aquele que se move a si mesmo - ad supra), já que mover-se a si mesmo é algo que predicamos de animal. Da mesma forma predicamos de homem o auto-movimento, já que in concretum é nota distintiva desse ou de qualquer homem, em graus variados, o auto-movimento, caso contrário ele não teria animação, e não seria, portanto, um animal. Mas prestemos atenção na gradação da substância aqui: podemos certamente predicar animal de homem, mas jamais poderíamos, segundo a gradação da substância (gênero, espécie), predicar homem de animal. Este ou aquele homem é a substância concreta, o objeto do conhecimento do qual podemos predicar homem (humanidade) e animal, atingindo níveis constitutivos da substância cada vez mais abstratos. Assim, podemos predicar uma determinação distintiva pela qual se reconhece todos aqueles que estão, sub genere, como animais; ora, a premissa maior que contém o juízo universal, contendo totalmente em si o termo médio, é formada pelo termo mais abstrato (animal), o qual subordina a si tanto o termo menor (homem), assim como o termo médio (auto-movimento), que aqui é um duplo acidente que podemos classificar como ação/paixão - já que mover-se é provocar (reflexivamente) uma ação sobre si mesmo, sedo a substância tanto sujeito da ação, como paciente dela. Não podemos dizer que o termo menor (homem) contém em si in toto o termo médio, já que o auto-movimento não é uma determinação distintiva apenas do homem, mas também das várias espécies de animais. É por isso que dizemos que o termo menor se subordina ao termo médio. Assim dizemos que se animal (A) se aplica a todo auto-movimento (B), mas que homem (C) não se aplique a todo B, então temos um silogismo perfeito.     Em sentido contrário, se a proposição/juízo universal se referir ao termo menor, então neste caso não pode haver silogismo, p. ex: Premissa maior: Todo homem se move a si mesmo; Premissa menor: É característica do animal se mover a si mesmo; Conclusão: O animal é homem. Sublinhamos o termo médio para seguir toda a regra estabelecida em relação ao silogismo. Aqui a premissa maior, ainda que suposta como verdadeira, não contém o mais universal do termos do silogismo, já que não contém em si in toto o termo médio - pois como constatamos anteriormente, nem todo aquele que se move a si mesmo é homem, e assim se mover a si mesmo (B) não é algo que se aplique a todo homem (A). Já animal (C) em relação a homem não pode servir de termo menor, já que subordina a si tanto o semovente quanto o homem. Também na conclusão não é certo que animal seja em si homem, pois nesse caso há uma confusão na gradação da substância, subordinando o mais abstrato ao menos abstrato.     Obviamente que há outros arranjos e regras silogísticas, mas estes dois exemplos nos quais empreendemos a nossa análise evidenciaram aquilo que nos propomos no início: dizer que as regras da lógica estão fundadas em certa constituição do ser, ou melhor, que o pensar lógico está fundado naquilo que chamamos de ontológico. ____________________________________________________________________ 1] ARISTÓTELES - Orgánon: Analíticos Anteriores. ed. Edipro, 2016. p. 118.
2] JOSEPH, Irmã Mirian - O Trivium: As Artes liberais da Lógica, da Gramática e da Retórica. ed. É Realizações, 2014. p. 51.

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