sábado, 26 de março de 2016

Abolição da Liberdade


   Para fazer um pequeno exercício de reflexão nestes tempos sombrios, vamos lembrar de 1968, quando Michel Foucaut instruía jovens maoístas (aqueles apegados à revolução chinesa de Mao Zedong) sobre a verdadeira justiça proletária.

   Na ocasião Foucaut ensinou que para que houvesse justiça de fato, havia a necessidade de abolir as instituições jurídicas da nação para que os vícios burgueses fossem extirpados, já que na visão marxista a justiça também fazia parte da superestrutura - o "véu" cultural - que era sustentada pela infraestrutura, constituída basicamente pelas relações exploratórias de trabalho e pelos modos de produção capitalista baseados na divisão de trabalho.

   Deixar tudo para traz, fazer terra rasada do mundo, abolir as instituições, colocar em curso a marcha revolucionária cujo intuito é se desfazer de todas as estruturas de ordem do mundo, da história e de um patrimônio resultado de séculos de tradição de reflexão e raciocínio que buscou compreender o homem, e que possui as marcas dos tempos que como um espelho nos dá a entender a nossa forma, em nome da libertação escatológica do proletariado. Eis o quadro do futuro comunista, onde reina a liberdade ... na casa dos corações partidos - para fazer uma breve referência ao poeta anglo-americano T. S. Eliot.

   Existem coisas que só os intelectuais tem a capacidade de acreditar e inventar. E como diz o ditado, o caminho do inferno é pavimentado de boas intenções, sendo a destruição do direito penal - e pasmem, coisa obscena que floresce entre a cabeças inventivas do direito - uma delas. Imaginem só um mundo de liberdade ilimitada, onde cada qual, ao seu modo, buscasse a sua forma de fazer justiça sem um terceiro poder para arbitrar entre as partes? Não seria isso dar curso para a justiça do mais forte? Imagine só como seria também submeter à justiça gente de poder e influência - o mais poderoso, por exemplo? Imagine um mundo onde a vontade do rei é a lei e a lei é a vontade do rei? Mas alguém pode objetar: "Há, mas serão todos iguais!" Mas quem disse isso? Quem garante algo assim? A julgar pela história - e é mais fácil conhecer o ser humano pelo que ele já foi, do que por aquilo que ele será, já que o "será" é o mesmo que nada -, a ideia de igualdade social - queira nós desejemos isso ou não - é totalmente absurda. Não existe este mundo dos joelhos onde "todo es igual, nada es mejor".

   O poder é o componente necessário da vida humana, pois poder é liberdade e capacidade de ação. Mas é óbvio que ele precisa ser contido. O homem necessita de regras e leis e isso não depende e jamais dependerá de uma estrutura econômica, mas é algo que se faz a partir do interior para o exterior do mundo - da mente para a história, por assim dizer. E qualquer um que viva a vida comunitária sabe disso - sabe que de coisas comuns é necessário que alguém consagrado que as cuide - que arbitre no mundo pelo bem de todos. Mas se é o homem a arbitrar é óbvio que ele mesmo deve ser restringido, pois não é a vontade humana só a medida de todas as coisas. É nisso que nascem as instituições, leis, ritos etc. A razão - que especula (se coloca como reflexo da verdade universal) -, sabe que o bem de todos está nas mãos de verdades de validade universal, que sejam válidas para um eu e para um tu com a mesma força, imparcialidade e isenção, e que prescindir disso é dar margem para exageros, desproporções, injustiças e arbitrariedades. Em nome de quê? De poder? De um ódio universal às coisas que aí estão para as quais não prestamos a nossa sujeição em nome da "liberdade". Mas a liberdade mata - e que seja dito! O uso da liberdade não é boa em si - e nos parece que intelectuais de todos os calibres querem que assim creiamos neste delírio. Pois sem leis o que teremos é a mão de todos contra todos - já dizia Moisés e Thomas Hobbes. As prisões e os grilhões são os filhos legítimos da autonomia. Ela não existe como um bem em si mesma, a não ser que seja incondicionada, mas aí ela é metafísica e não somos capazes para tanto, pois a nossa autonomia sofre a resistência daquele que está à minha frente, pois existir é resistir.

   Daqui surge outro importante tema que é o da tradição de pensamento. "Sacudamos os seus grilhões", já dizem os mais afoitos, ansiosos por liberdade. Mas as coisas não são tão simples, como um não de mãe não é tão simples. Já dizia a sabedoria bíblica no quarto mandamento: "honrarás pai e mãe". E não somos órfãos quando recebemos um mundo por herança. E mais: todo o dom do mundo é algo a ser conservado, assim como aperfeiçoado - jamais destruído. Por mais que façamos a grita contra as "estruturas de morte", herança do velho pecado do mundo, não é possível que vejamos o que recebemos de maneira tão macabra e sombria. Há mais motivos para conservar o mundo do que destruí-lo, e o sentimento de gratidão de quem anda por essa vida, acompanha todos aqueles que contemplam o homem e o mundo como uma criação boa. Implodir tudo em nome de um futuro sem traços passados, sem arte, língua ou estátuas é a materialização do ódio. E é impossível que sobre essa base construamos algo melhor. E estrutura da tradição é eterna, pois se rompemos com algo hoje imprimimos nas mentes dos descendentes que eles deverão romper amanhã - e uma tradição de ruptura não pode, por mera questão lógica, ser eficiente na construção do pensamento, já que qualquer construção de pensamento é trabalho para mais de trinta vidas, é é justamente isso que faz da tradição, ao invés do monstro que se prega, uma cadeia de amizades e consensos, assim como de paz. São amizades construídas para além da vida - sinal que aquilo que pensamos foi o certo a ser feito. A tradição é o único vestígio da unidade da razão e da unidade da humanidade. É o elo de comunhão mais poderoso que pode haver. Já a ruptura, sem exceção, é inimizade - seja isso para bem ou para mal -, pois constitui a diferença - diferença que pode ser considerada apenas à luz do juízo divino - é denegar o que quer que seja como inútil.

   Mas voltando para a revolução, é óbvio que quem pouco faz de mais de séculos de reflexão incorre certamente em erro. E qual não seria o empobrecimento da humanidade na abolição de todas as coisas? O depósito da cultura não é para ser desprezado, pois nele sempre há algo da essência divina. Imagine mentes sem referência para o juízo, sem a orientação do passado e sem as instituições que basicamente se constituem dos sinais impressos dos tempos, nos livros, registros e homens. Ao abolir estruturas de juízo damos certamente o livre curso à besta, cuja vontade livre só pode nos fazer afundar na morte. O direito é hostil, em sua essência, à destruição, e a ruptura do direito penal só poderia ser a quebra das barreiras daquilo que impede o avanço do pior daquilo que pode haver no mundo. Pois sem o que nos deter, nos reprimir e nos restringir, o que é que nos deterá, nos reprimirá e nos restringirá?


   Mas, trazendo mais para perto, imaginem só mais uma vez, desfeitas as instituições jurídicas, o poder de ação daqueles que, aqui no Brasil, fazem este agravo do qual se espanta o que ele vê? Por isso aqueles que pedem em excesso por liberdade nada mais vazem do que suprimi-la - e isso parece que em sua ingenuidade e paixão irracional, Foucaut não compreendeu.

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