quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Eric Voegelin e o Docetismo; Parte I: A Influência de Kierkegaard na Filosofia de Eric Voegelin

   Eric Voegelin é um filósofo muito mais famoso pelo uso panfletário de determinados aspectos do seu pensamento do que, de fato, por ser alguém estudado de forma integral. É interessante o uso que muitos apologistas católicos fazem de trechos de sua obra, especialmente do livro IV do História das Ideias Políticas - na parte em que ele trata da Reforma (A Grande Confusão) -, partes do livro V e do "Nova Ciência Política", em especial o uso polêmico - e não compreendido em todos os seus aspectos - do termo gnosticismo. Escamoteada é a crítica duríssima de Voegelin ao pensamento neotomista (nem citadas são por aqui as oposições entre Voegelin e Lonergam, conforme são retratadas por Eugene Webb no livro "Filósofos da Consciência"), as críticas que ele faz de Francisco de Assis (como o promotor no Ocidente dos movimentos de massa), de Thomas More (que ele afirmava ser um santo sem fé), e de que o papado foi quem promoveu a primeira estrutura totalitária do Ocidente (já que o papa assumiu a figura do Paráclito que fez desaparecer a totalidade da Igreja na sua pessoa, transformando-a em uma estrutura piramidal ao moldes das seitas gnósticas). É incrível que muitos católicos achem em Voegelin um ativo à sua causa - a não ser que façam cherry picking ao lidar com sua obra; coisa que qualquer protestante poderia fazer também, ao lidar de forma temerária com a obra dele.

   No mais, a obra do filósofo alemão é constituída fundamentalmente por influência de autores protestantes de vertente luterana, além da influência de K. Jaspers e dos filósofos gregos, sobretudo Platão. Tragamos à mente a influência de Kierkegaard e de Schelling à sua obra.

   De Kierkegaard Voegelin herda a distinção entre fé eminente e de fé no sentido comum, assim como elabora com base em Kierkegaard a sua noção de "Salto no Ser". A fé em seu sentido comum é fundada, por sua vez, em uma compreensão anti-iluminista - e mesmo anti-hegeliana - da operação da razão sobre os dados da história, dados para os quais não há nenhuma possibilidade de dissecação absoluta, mas apenas lacunar - o que é uma percepção anti-iluminista tipicamente alemã e romântica que foi teorizada já por Hamman, o "Mago do Norte".

   A fé no sentido eminente, por sua vez, trata-se daquela fé sobrenatural que surge do encontro do homem com Deus. Tal encontro não está sujeito à crítica histórica, pois o "evento da fé" é, em sentido próprio, "meta-histórico", embora paradoxalmente o cristão fundamente em uma ocorrência histórica a sua felicidade eterna. Um dos escritos mais elucidativos de Kierkegaard a esse respeito está no "Pós-Escrito às Migalhas Filosóficas", lá onde ele discorre a validade da bíblia para a fé e o "parênteses" do criticismo histórico - parênteses que se abre e que coloca a fé em suspeita até tudo ser resolvido pela ciência histórica. Kierkegaard diz que seria inútil para a fé alguém esperar pela investigação positivista da Bíblia para a validação de algum dado da fé, já que em relação à fé nem o homem e nem a fé podem esperar. A Bíblia é válida no contexto próprio da fé e não precisa do auxílio do positivismo histórico para validar a si mesma. É interessante que mais tarde essa perspectiva de Kierkegaard, junto com a perspectiva da escola de Erlangen, iria criar a teoria da distinção entre Geschichte (história pragmática) e Heilsgeschichte (história sagrada) em escolas como a de Rudolf Bultmann, cuja estrutura Voegelin usaria para fazer a distinção entre "História Paragmática" e "História Pradigmática" na obra Ordem e História - e que correspondem também à teorização voegeliniana sobre a 'realidade Coisa' e a 'realidade Isso', com as quais se relacionam, em ordem, as operações da consciência chamadas intencionalidade e luminosidade (mas discorreremos mais à frente sobre esses termos).

   O noção de Salto no Ser também possui influências kierkegaardianas, já que Kierkegaard é aquele que teoriza sobre a ideia do "Salto na Fé", que é uma postulação polêmica anti-hegeliana que se volta contra o conceito de mediação. Se percebermos o significado da ideia de "Salto no Ser" também perceberemos a forte oposição de Voegelin ao conceito hegeliano de História, pois para Hegel a história é uma elaboração da Ideia Absoluta que se apresenta como um circuito logicamente estruturado, se desdobrando dialeticamente. Para Voegelin o "Salto no Ser" é constituído por eventos teofânicos que deram ocasião para o surgimento da filosofia platônica-aristotélica, assim como da revelação israelita/mosaica e cristã, as quais romperam com uma compreensão compacta do cosmos, revelando aos alvos da teofania a transcendência supracósmica, não seguindo, como Hegel pensava, uma sequência lógica, já que eventos teofânicos ou se dão ou não se dão. Nisso Voegelin não seguia apenas Kierkegaard, mas também Schelling, de quem Kierkegaard herdou certa estrutura de pensamento em sua filosofia.

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