quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

All Hallowes; Ou: A Vitória de Todos os Santos

   Datas celebrativas são em geral problemáticas no meio protestante de uma vertente mais linha dura. Tecnicamente tal vertente evangelical mais purista é geralmente aliada a um pensamento mais anabatista ou puritano. Refratários ao desenvolvimento teológico, tais alas em seu desenvolvimento mais radical tendem a manifestar tendências semelhantes àquelas que vemos em grupos como os Amish, que ao fraudar o princípio do Sola Scriptura, confundem esse princípio reformador que serviria como ferramenta de juízo a tudo aquilo que se diz Cristão para defender uma aberrante "Scriptura Solus", negando o desenvolvimento lógico da revelação. Grupos como os Amish, por exemplo, afirmam ser pecado a utilização de luz elétrica, ou equipamentos eletrônicos, já que não há evidência nas Escrituras de que o povo de Deus se servia de tais coisas - ainda que hoje hajam grupos de Amish mais abertos a isso. E, seguindo essa lógica confusa, eles entendem que aquilo que a Escritura não permite explicitamente o uso, logo é proibido. Isso é um estreitamento grotesco da vida e de todo o potencial humano que nos foram instilados por Deus. Mas sigamos!
   O princípio do Sola Scriptura é um princípio epistemológico, e não serve para a negação da tradição, do desenvolvimento teológico ou litúrgico. Se, por tanto, não serve para a negação em um primeiro plano, isso significa que o princípio da Sola Scriptura serve para a afirmação de todo o desenvolvimento teológico compatível com o espírito da Escritura, e isso significa que o desenvolvimento que é aliado da Escritura é positivamente aprovado por ela, e é bom compreendermos isso para sermos introduzidos ao assunto a que nos propomos por hora.
   Particularmente não pensei que a frase que escrevi sobre a ideia de o Halloween ser bíblico causaria uma celeuma e ataques puristas tão absurdos. Mas vamos aos elementos históricos que atestam os elementos cristãos dessa data afim de que nos desembaracemos de notórios erros quanto a essa data.
   A palavra Halloween, como é de conhecimento de muitos, é uma contração das palavras "All Hallows'Eve", e quer dizer "Véspera de Todos os Santos", que é uma dada em que se rememora todos os cristãos que já partiram deste mundo. Há controvérsias quanto à origem dessa data, se ela é uma capitulação de uma festa pagã no seio de uma cultura religiosa cristã - e existe evidências fortes de não ser esse o caso, já que os mártires eram celebrados desde o século IV d. C. É interessante que a expressão "All Hallows'Eve" é semelhante à expressão "Hallowed be Try name" que é a expressão em inglês do Pai nosso que afirma "santificado seja o vosso nome". O Halloween, portanto, é a data que antecede o dia 1º de Novembro, data em que se comemora o "All Hallows" (Allhallowtide), e se assemelha à festividade de Véspera de Natal, sendo a véspera do Dia de Todos os Santos, a data em que historicamente cristãos antigos lembravam aqueles mortos - mas que estão vivos em Cristo - salvos pela graça de Cristo. Trata-se de uma comemoração da salvação.
   Historicamente o dia 31 de Outubro também se liga ao início da Reforma Religiosa do Ocidente, dia em que Martinho Lutero pregou na Catedral de Wittenberg as 95 Teses redigidas para polemizar contra o abuso das indulgências. A catedral de Wittenberg (Schlosskirche) também é chamada de "Catedral de Todos os Santos", e é muito provável que Lutero tenha escolhido esse dia de caso pensado, já que se esperava que a essa catedral em especial afluísse a população para a celebração da véspera do "Dia de Todos os Santos", angariando mais atenção às suas teses. Essa é a razão pela qual o Halloween é celebrado no mesmíssimo dia em que se comemora a Reforma Protestante.
   Mas antes de prosseguirmos, atentemos para a razão da celebração dessa festa. Como escreveu J. B. Jordan, texto postado no site "Lecionário", a festa nos lembra justamente o fato de que uma hora escatológica desponta em que Cristo efetivará a consumação da destruição do mal já operada suficientemente na Cruz. Mas a forma dessa consumação muito nos interessa para os nossos propósitos: A "Hora Final" é o drama escatológico em que se dará uma vitória que Cristo realiza, também, como diria Agostinho, na alma dos seus santos. Mais especificamente, na interpretação do Salmo 2.3, Agostinho afirma: "'Rir-se-á deles o que habita nos céus. Deles zombará o Senhor'. É repetição. Ao invés de dizer 'o que habita nos céus', da segunda vez encontra-se 'o Senhor". Em lugar de 'rir-se-á' temos 'zombará'. Não se tomem carnalmente essas expressões, como se Deus se risse, ou zombasse, torcendo a boca ou o nariz. Mas, hão de ser entendidas no sentido da força concedida por Deus a seus santos. Estes, olhando o futuro, isto é, o nome de Cristo e o seu domínio estendido aos vindouros e alcançando todas as gentes, compreendam que aqueles tramaram em vão. Tal capacidade de previsão constitui a irrisão e zombaria da parte de Deus. 'Rir-se-á deles o que habita nos céus". Se os céus são as almas santas, por meio delas, Deus, que conhece o futuro, rir-se-á e zombará deles" (AGOSTINHO - Comentário aos Slamos. Slamo 2.3).
   Contudo, como diria o J. B. Jordan: "O conceito, conforme dramatizado no costume cristão, é bastante simples: em 31 de Outubro, o reino demoníaco tenta uma última vez alcançar a vitória, mas é banido pela alegria do Reino.
   Qual é o meio pelo qual o reino demoníaco é vencido? Em uma palavra: zombaria. O grande pecado de Satanás (e nosso grande pecado) é o orgulho. Assim, para afastar Satanás de nós, nós o ridicularizamos. É por isso que surgiu o costume de retratar Satanás em um ridículo traje vermelho com chifres e cauda. Ninguém pensa que o diabo realmente se parece com isso; a Bíblia ensina que ele é o Anjo caído. Portanto, a ideia é ridicularizá-lo porque ele perdeu a batalha contra Jesus e não tem mais poder sobre nós".
   Aqui tocamos em um ponto sensível por causa da estética absoluta, na verdade anti-histórica, que constitui o puritanismo cujo ethos perfaz grande parte do evangelicalismo do Brasil. Mas é necessário frisar que todas as dramatizações teatrais em que se encenam em muitas Igrejas é utilizado fantasias em que Satanás é representado por cristãos. O espírito do Halloween, que é uma festa popular, é buscar uma dramatização lúdica ligada à zombaria, já que os cristãos não temem o poder diabólico, nem aquele poder que se mostrará no momento que antecede o fim, no dia de irrupção da última maldade.
   Obviamente muito daquilo que entendemos por Halloween não vem da nossa cultura, e é algo estranho a ela. Obviamente, pouco se sabe da razão pela qual crianças pedem doces de casa em casa nesse dia, dizendo: "trick or treat" (travessuras ou gostosuras) - e se diz que essa festa ganhou as configurações atuais no século XIX. É lógico, no entanto, que não seria demonstração de bom senso fazer uma defesa ou uma condenação com base na nossa sensação imediata da questão. Julgamentos puramente estéticos tendem a ser julgamentos pobres. Muitos evangélicos ignoram ou acham estranha tal celebração - o que é perfeitamente compreensível. Contudo condenações como a de que se trata de uma festa que celebra "satanismo" é algo absurdo.
Enfim, a palavra "Halloween", como foi demonstrado, tem origem eminentemente cristã, e nas configurações atuais trata-se de uma festa que precede a festa de Todos os Santos, ou seja, a festa daqueles que venceram em Cristo, ou melhor, daqueles através dos quais Cristo vence, zombando, todos os poderes das trevas que dominam esse mundo. Não temamos os poderes das trevas! Mas nos alegremos acima de todos eles.

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