quinta-feira, 12 de agosto de 2021

A Igreja, a Homossexualidade e a Justificação

    Há um movimento recente nos EUA que busca fazer a distinção entre a atração homoerótica e o ato. De resto há verdadeiro respaldo na tradição cristã entre a distinção entre pecados atuais e veniais (ou materiais), sendo o último considerado aquilo que a Escritura nomeia como concupiscência.

    Devemos lembrar, contudo que esse é o tema decisivo do embate ente a Reforma e o Catolicismo Romano, e ouso dizer que também isso se trata do cerne de muitas das discussões disciplinares e mesmo da tendência em enxergar uma maior austeridade nas Igrejas provenientes do movimento de Reforma e uma maior liberalidade no Catolicismo Romano. - e isso não é mera picuinha, ou ranhetagem teológica, pois os desdobramentos dessa questão são realmente imensos.
    Uma coisa a se notar: há uma tendência crescente das Igrejas nos EUA a se distanciarem de certos moldes impressos pela Reforma, seja pelo molde da "Primeira Reforma" ou da assim chamada "Reforma Radical" - de onde surgiram os batistas etc. E a questão aqui disputada é evidência disso: a distinção entre pecados atuais e materiais está, na verdade, na base da teologia da Justificação pela Fé, e a própria justificação compreendida como a imputação da justiça de Cristo ('Iustitia Imputata Christi') ou justiça de outro (Iustitia Aliena) é indiscernível sem essa compreensão de pecado. E quando esse moviento desconsidera a era "atração homoerótica" como pecado, esse movimento apostatou de toda consideração da Reforma a respeito da questão.
    Falando mais especificamente, a distinção entre pecados atuais e pecado material é uma distinção que existe tanto no catolicismo romano quanto no protestantismo; contudo, embora a distinção seja semelhante, a conclusão teológica é absolutamente diversa, e isso pelas seguintes razões: 1) Embora tanto o protestantismo quanto o catolicismo romano concordem que o pecado atual, imputado como razão de condenação, é aquilo que chamamos de 'pecado contra a razão', posto que a vontade aqui (que é um faculdade distintamente racional, diferentemente do apetite) é vista como deficiente em função da concordância entre a razão e os apetites maus, 2) eles discordam quanto à consideração dos pecados veniais como razão de condenação.
    Para melhor definição da questão, os pecados veniais são aqueles que não contam com a concordância entre a razão e a apetição em estado de defecção, sendo estes meramente resultado do seguimento irrefletido da vontade a qual pode ser materializada como uma explosão de ira, um pensamento libidinoso, uma cobiça má etc. Podemos encontrar essa discussão até mesmo em autores como Aristóteles ( in E.E. VI.7), que fez a distinção entre o desregrado, que faz as suas ações deliberadamente por prévia escolha - e esses são efetivamente maus, pois fazem o mal com o concurso da razão; e o descontrolado que pratica seus atos por certa impulsividade, não contanto com isso com o pleno concurso da razão para a realização dos atos maus, sendo, portanto, passíveis de indulgência.
    Assim, a questão dos pecados veniais pode ser discutida sob o ângulo da consideração das seguintes esferas: a civil e a teológica, ou religiosa. Temos, na esfera civil, um indivíduo justo como aquele que não age como transgressor da lei, muito embora suas intenções por vezes não sejam computadas para a consideração do seu status de justo, e a discussão aristotélica casa evidentemente com essa esfera; mas diferentemente disso é a discussão teológica em relação à questão. Os reformadores acusaram a teologia católica de fazer uma confusão entre a esfera teológica e civil e, como disse Tillich, Berkhof etc., o catolicismo romano parece não considerar o aspecto teológico do pecado, já que não afirma que pecados veniais são suficientes para a condenação, mas apenas o chamados "pecados mortais", os quais se caracterizam por serem pecados praticados, como dito anteriormente, com o concurso da razão (ou os pecados conscientes).
    Diferentemente da consideração católica romana, os reformadores disseram que os pecados veniais, por estarem fundados na concupiscência (a depravação inerente), são anomia, e por serem assim estão em frontal colisão contra o mandamento de Deus e a sua justiça; assim, a depravação inerente é condenável porque se constitui como óbice para a realização da perfeita justiça, e por ser como tal está devotada à ira de Deus, por ser a característica desse "corpo de morte" (Rm 7.24). Assim concorda a Escritura, pois em Rm 7 temos que a "lei que milita em meus membros" é contrária à lei de Deus; e como tal, exige salvação, e salvação de Deus, sendo portanto, em sentido reflexo, algo suficiente para a condenação.
    Isso tem algumas implicações para o aconselhamento pastoral no universo do protestantismo, e por mais radicais que sejam as premissas teológicas aqui, como veremos essas premissas teológicas não levam a uma prática excludente nas igrejas senão que lançam uma a verdadeira luz sobre a condição da existência do cristão sob Cristo, consignando a vida cristã com a luta contra o pecado. Na verdade, a teologia sobre a imputação da justiça de Cristo, por esse ângulo, ganha aqui toda a sua razão de ser.
    Os reformadores foram unânimes em considerar que mesmo depois da regeneração, a corrupção inerente, que é imputável por ser anomia, não é retirada do homem. Assim, após a outorga da fé salvadora os cristãos ainda contam com os "resquícios do pecado" característicos da natureza caída em Adão. Esses resquícios de pecado não são apenas pecado, mas também pena do pecado (Rm 1.24ss). Ainda na época da Reforma, a corrupção inerente era denominada - como já haviam feito os teólogos antigos - concupiscência, mas essa denominação abarcava mais do que a mera pulsão sexual desordenada, cobrindo ainda a noção dos "pecados espirituais", como a cobiça de bens, a soberba o ódio etc. Nesse sentido, a única justificação possível não era a justificação entendida como "infusão de justiça", como havia feito Trento e o velho catolicismo romano medieval, pois a justificação por "infusão de justiça" só poderia ser possível na esteira do enfraquecimento da própria noção de justiça, excluindo dela a real ofensa dos chamados pecados veniais - os quais, para o catolicismo romano, embora ofensivos à vida cristã, por diminuírem a caridade, não eram considerados como razão de "ruptura da amizade", ou da destruição da posse da graça salvadora.
    Lutero defendeu uma consideração diversa da justificação, estando esta não mais presa à estreiteza de uma confusão da justiça civil com a justiça teológica, mas separando ambas as esferas. Assim fazendo, localizou o problema da justificação de sua época, alegando a impossibilidade de uma justificação como fundada na justiça própria, já que essa justiça infusa não era alcançada pelos cristãos nem por obras e nem mesmo pelo batismo. Por isso a justiça com a qual somos justificados só pode ser uma "justiça imputada", não uma "justiça infusa"; uma justiça extrínseca, não uma justiça intrínseca; uma justiça dada por Deus por amor a Cristo, não uma justiça reconhecida porque adquirimos pelo que somos o amor de Deus; uma justiça pela fé, e não uma justiça visível pela qualidade das nossas obras; e assim é porque mesmo depois de regenerados e justificados, permanece em nós a deficiência da justiça pela permanência do pecado, o qual agora não nos é mais imputado por amor a Cristo - ora, se o pecado não é imputado, logo somos considerados (declarativamente) justos (por amor a Cristo).
    Aqui Lutero considerou que embora fosse metafisicamente plausível a consideração de que a presença do pecado no sujeito é como a presença de uma qualidade na substância, teologicamente essa sentença não alcançou a verdade da justificação. A questão é que só essa consideração da justificação como justiça imputada atinge abarca toda a amplitude da noção teológica de justiça, pois o pecado inerente (material) é pecado, e como tal está devotado à ira de Deus; assim, só a não imputação do pecado faz sentido para a realização da justificação - pois todos os pecados foram destruídos quando Jesus os levou sobre si, carregando também em si a responsabilidade sobre todos eles, destruindo-os na Cruz. Aqui aqueles que se aliançam com Cristo tomam sobre si tudo o que é de Cristo (sua justiça, santidade, vida e paz com Deus), tal como Cristo tomou sobre si tudo o que era nosso (a condenação, o pecado e a morte e a ira de Deus).
    Entendido isso chegamos ao cerne da questão da condição do homem justificado na Igreja; não que nenhum deles não tenham pecado, nem mesmo corrupção; mas todos se encontram, pela fé, sob a justiça de Cristo, e, como tais, não possuem nenhuma condenação. Portanto, não é um tipo ou outro de concupiscência que é condenável diante de Deus; não só a pulsão homoerótica que está sob a sanção do mandamento; todas as concupiscências de todos os homens que caminham sob este mundo, atados a esse corpo, estão sob a sanção do mandamento. Mas em Cristo todos estão perdoados sob o ângulo da justificação.
    Mas é importante notar que a justificação não resume a vida cristã, pois todos os seus efeitos também pertencem à Igreja; assim, não pertence ao fiel apenas a justiça, mas também a santidade, santidade onde Deus vai infundindo em nós a sua justiça.
    Daqui se segue que embora a regeneração não retire do homem a sua corrupção, contra ela o homem ficou obrigado a lutar unindo-se a Cristo na Cruz. Assim, se Cristo para nós é justificação, a orientação da nossa vida em virtude dos benefícios de Cristo só pode ser a santificação. A Cruz então é vista sobre esse duplo aspecto, o da justificação e o da santificação, e é sob esse duplo aspecto que está submetida toda vida cristã, pois a vida cristã só é cristã se está sob a Cruz. A luta contra as chagas do pecado - a concupiscência - é o meio pelo qual nos unimos a Cristo na Cruz, e é por isso que tal como o efeito assinala a realidade de uma causa, a santificação assinala a realidade da justificação, mas não é assim tão simetricamente que a causa seja totalmente equiparada a seu efeito, tal como o mundo, como efeito, não está em um mesmo nível de realidade do que a sua Causa, que é Deus; pois embora a justificação quite a condenação contraída pelo pecado, a santificação não quita em nós todas as corrupções, permanecendo elas em nós como realidade, mas sendo destruídas em nós no que diz respeito à culpa.
    Do que foi dito acima é importante compreender que não é da santificação como remoção de toda impureza inerente de onde flui a nossa justificação e a nossa salvação; ela é um efeito da posse da graça salvadora, não a causa dela. Portanto, há espaço na Igreja de Cristo para todos os concupiscentes, e isso inclui todos aqueles que possuem atração homoerótica. Em sentido idêntico, todos os glutões, beberrões, ávaros, iracundos e adúlteros no nível das pulsões e mesmo dos atos, estão, perdoados e justificados, na Igreja de Cristo, mas como tais estão convocados, em virtude da graça da justificação que repousa sobre eles, à luta contra a tendência das suas pulsões e à realidade dos seus atos. A Igreja só pode ser a igreja daqueles que são ao mesmo tempo justos e pecadores, o que não significa que haja leniência em favor da realidade dos pecados atuais - muito embora haja perdão e tolerância -, pois a Igreja é a Igreja que também está sob o mandamento de Deus, e como tal ela deve segui-lo.
    Para concluir, é muito possível que alguém que possua tentações homoeróticas assim permaneça por toda a sua vida, como também é possível que não permaneça - da mesma maneira que é possível ao ávaro, ao glutão e ao iracundo permanecerem assim toda sua vida, embora devam lutar contra isso por toda a vida. Mas é relevante notar que a posse da concupiscência não influi no status da nossa justificação; o que influi é a posse da fé pela qual somos justificados diante de Deus, pois é pela fé que recebemos o perdão de Cristo. É possível que certas feridas permaneçam por todo tempo do mundo sobre o corpo de Cristo, chagas essas que serão abolidas completamente na ressurreição, e é assim convidados à esperança da libertação que como cristãos exortamos os homens à fé e à luta que à qual nos convoca a fé, tendo a consciência consoladora de que as chagas da Igreja, do corpo de Cristo, ainda são as chagas do corpo de Cristo, e não chagas fora do corpo de Cristo, o que sinaliza para nós que ainda que possuídos da corrupção, há para nós a esperança da liberdade da ressurreição e a realidade da paz com Deus.
    Portanto, que permaneçamos na fé crendo, resistindo e confiando.

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