domingo, 29 de agosto de 2021

A Noção Participativa de Justiça e o Pecado Original

Certo concepção liberal, atomista e mesmo nominalista de justiça é uma das coisas que hoje influenciam na oposição que encontramos em certos teólogos contra a teologia do pecado original (a exemplo do Padre Queiruga), pois a teologia do pecado original afirma punibilidade da raça em razão do pecado de um só, cuja transgressão levou a consequências catastróficas, trazendo juízo para toda a extensão do mundo. A questão é que a percepção de justiça no mundo antigo era algo infinitamente mais vertical do que como consideramos hoje; e isso é uma das razões pelas quais a percepção de justiça do Antigo Testamento é para nós algo quase impenetrável diante da consideração atomista onde uma sociedade é percebida como um aglomerado de átomos individuais e não uma comunidade unida por um laço universal.

Mas se nas sociedades antigas a noção da responsabilidade individual não era inexistente, os laços de família ou de comunidade eram mais acentuados em virtude de uma noção mais profunda de participação. Isso é relatado na literatura antiga de forma evidente, e a obra "O Trabalho e os Dias" de Hesíodo disso é um testemunho, como se segue:

"Mas para aqueles que praticam excessos cruéis e obras malignas, o Crônida [Zeus], aquele que tudo vê, lança contra eles sua justiça. Muitas vezes, toda uma cidade paga pela culpa de um único homem que se extravia e trama perversidades. Grandes sofrimentos são lançados do céu contra eles pelo filho de Crono: fome e peste de uma só vez. E assim esses povos desaparecem" (HESÍODO - O Trabalho e os Dias. 238-247).

No Antigo Testamento, possivelmente um dos testemunhos mais evidentes disso está em Números 16.1-40, ali onde se fala sobre o caso da rebelião de Corá liderada por Datã e Abrirão, quando esses fizeram oposição à liderança de Moisés e Arão.

Após a sedição Moisés pede para que todos se afastem das tendas desses, e pede para que os líderes da rebelião, Datã e Abirão se reúnam diante da tenda da congregação com sua mulheres, e seus filhos grandes e pequenos. No hebraico a palavra para filhos pequenos é 'tappam' e que também denota "pequeninos", significando também os 'passos curtos' característicos de crianças.

No vs. 31 temos a conclusão de todo um processo, e a exclamação de Moisés nos versículos anteriores de que se houvesse algo miraculoso e Deus criasse algo como tragar a família pela criação de um abismo, então assim seria confirmada na sinalização divina a veracidade da rebelião de Datã e Abrirão. Então a Escritura afirma que a terra se fendeu, e no vs. 32 se diz que a fenda tragou as casas (que significa, grosso modo, famílias), todo ser humano (kal ha'adam) e seus bens - muito ao estilo da consideração teológica a respeito dos anátemas.

A questão da justiça que enfrentamos aqui é simplesmente teológica. Não se trata de olhar a questão meramente a partir da esfera da justiça civil, pois desse modo o argumento perde toda sua luz. Em ambos os casos, tanto no Antigo Testamento quanto no "O Trabalho e os Dias", a consideração é feita à luz da teologia. Então ela não segue uma consideração atomista, onde a punição cobre meramente o agente, pois está vinculada a uma noção mais estreita de participação e da honra partilhada dos membros de uma comunidade estreitada por laços de pertença grupal, religiosa ou familiar.

No caso do Antigo Testamento é interessante notar que o juízo pela rebelião não é provocado por Moisés; a causação do juízo é divina e é levada a efeito por meio de uma operação miraculosa. Se tivermos estômago suficiente para entender o caso, aqui temos temos literalmente em ato a mente de Deus. Assim o juízo cobre tudo o que pertence a Datã e Abirão e, por isso, toda família, punindo-os pela ofensa dos cabeças da congregação (Datã e Abirão), e nisso se inclui até mesmo aqueles que estão fora da idade da razão.

Contudo, se noção de participação é responsável pelo alargamento da catástrofe, também é necessário que vejamos isso não apenas em seu aspecto prejudicial e negativo, mas também em seu aspecto bonificador e positivo. Pois se a injustiça de um ou dois é a causa da ruína de muitos, a justiça de um ou mais é também responsável pela salvação de muitos. No Antigo Testamento em Gn 18.32 Deus confirma que não destruiria Sodoma e Gomorra se ali houvessem dez justos, e em honra a eles. Talvez aqui entendamos o adágio de Lutero que afirma que Deus nos considera justos, nos perdoando por amor a Cristo. Assim, iluminados pela honra de Cristo, ganhamos a nossa justificação.

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