sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Glorificado com a Glória que Tinha Antes Junto ao Pai; Ou: O Kenoticismo e a Encarnação

    Alguns kenoticistas afirmam que as palavras de Jesus na oração sacerdotal onde pediu ao Pai que "glorifica-me junto a Ti, com a glória que Eu tinha contigo antes que o mundo existisse" (Jo 17.5) significa necessariamente que Jesus "se esvaziou dos atributos" no sentido de que houve uma mutação na natureza divina. Mas isso é um disparate, já que natureza divina é imutável. No entanto, se os kenoticistas estão errados, como é possível entender a afirmação que Jesus "tinha uma glória" que agora pedia para ser "reintegrada"? A explicação se dá pela via da verdade na consideração da noção de "pessoa" (hypóstasis) na qual subsistem duas naturezas distintas.

    Ora, se a pessoa do Verbo assumiu a natureza humana da substância da Virgem Maria, afirmamos a realidade de um suposto único, onde a pessoa do Verbo assume para si a natureza humana; e é por isso que as operações da natureza divina dizem respeito a Jesus enquanto Deus-homem (theanthropon). Nesta união se diz que formalmente tudo que oque se predica das operações de ambas as naturezas se atribui formalmente a essa hipóstase (pessoa, substância) singularíssima, naturezas que continuam essencialmente distintas por se atribuir operações distintas quanto à peculiaridade dessas formas (a forma humana e a forma divina).
    Aqui entendemos que não se predica o que é comum à natureza segunda a forma divina se atribuindo àquilo que é comum à forma da natureza humana e vice-versa, mas isso enquanto realidades separadas não unidas na hipóstase; mas se atribui comumente ambas as operações a uma única pessoa, e isso em sentido absoluto porque a a singularidade da hipóstase é absoluta. Nesse sentido é a pessoa divina que morre na Cruz, porque é Deus quem morre na Cruz, e é a pessoa divina que assume a natureza humana, sendo uma só a pessoa do Verbo e a do homem.
    É por isso que dizemos "aquele homem criou as estrelas", ou "aquele homem que criou os anjos"; pois embora não seja próprio da natureza humana a criação de nada, contudo é próprio da pessoa de Cristo a criação, já que nessa pessoa há a unidade pessoal de ambas as naturezas, uma criadora e outra criatura. Nesse sentido não é impróprio Jesus dizer que "tinha uma glória", se tudo o que é do Verbo é também do homem; pois como unicamente como Deus antes da encarnação estava pleno de glória, mas como homem não manifestou-se ao mundo até aquele momento em sua glória total, como é próprio à glória de Deus a qual o Verbo nunca perdeu, nem mesmo na encarnação. Também não é impróprio Jesus dizer, ao mesmo tempo, que o Filho ia "subir onde primeiro estava" (Jo 6.62), ou que "o Filho desceu do céu, mas ainda continua no céu" (Jo 3.13).
    Ora, entendemos que essa é uma linguagem paradoxal usada no Evangelho de João pela qual ele atribui a mutabilidade característica das coisas humanas àquilo que é divino (descer do céu, p. ex.). Jesus faz isso em duplo sentido, tanto para a acomodação ao nosso entendimento, atribuindo o mutável ao imutável e o imutável ao mutável, tanto porque porque ambas as coisas (o mutável e o imutável) se predicam de uma pessoa única. Assim em certo sentido Jesus "tinha uma glória" porque como homem a ele pertence tudo o que é de Deus, e ainda não havia manifestado em todo poder a glória de Deus que é uma glória sua, mas nunca manifesta enquanto homem (assim, na unidade da pessoa, por certo ângulo, Jesus tinha uma glória); mas em outro sentido ele nunca perdeu a glória, porque tudo o que é característico de Deus é necessariamente imutável, e Jesus é Deus.
    Enfim, como homem ele nunca havia manifestado a totalidade da sua glória, pois Jesus aprendeu e cresceu na graça e no entendimento (Lc 2.52), embora a ele pertencesse essa glória que manifestava em todo o seu esplendor enquanto apenas Deus e Segunda Pessoa da Santíssima Trindade antes da encarnação; mas como Deus ele sempre esteve no Céu e é imutável tal como o Pai é imutável (Jo 1.1; Jo 3.13) em todo esplendor da sua glória. Entendido assim o que entendemos por auto-esvaziar-se se diz do ocultamento da glória de Deus sob o véu da carne humana de Cristo a qual, em seu próprio tempo, manifesta gloriosamente toda a plenitude da divindade.

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