domingo, 1 de junho de 2014

Contemplação, Estética e Personalidade



   Tal vez uma das razões para a decadência da moral humana em um determinado lugar seja a ausência de exemplos modelares que indiquem a existência de uma realidade mais elevada, assim como um padrão mais alto pelo qual pautar a conduta pessoal em determinados momentos da vida. 
   
   Uma das funções definitivas da religião cristã - e por isso, uma das contribuições mais decisivas e essenciais para a vida humana - tal vez seja o apontamento para uma realidade que transcenda as movimentações ordinárias, indicando a falha nas mais diversas dimensões da existência. 

   Uma das contribuições decisivas da religião judaica - e endossada pelo cristianismo - foi a execração da ideia da divinização humana (como, por exemplo, em Ex 20:2), o que permitiu a contemplação de um padrão eterno, ainda que inatingível para a vida temporal, assim como leis fixas que não deveriam ser revogadas, ainda que o ser humano jamais pudesse, em suas falhas existenciais, cumprir em si as exigências provenientes da Lei divina (Rm 7).  

   Devido a isso, é de salutar importância a ideia da transcendência - ou mais precisamente a ideia de Deus - e do incondicionado em meio a cultura humana, pois tal transcendência possui um poder que alavanca e estimula a ascensão da consciência até ao nível de um padrão moral por meio do qual se pautar, permanecendo fixo e irrevogável pelos séculos dos séculos. 

   Não houve para a vida intelectual científica, religiosa e pública - a começar por Moisés e os profetas de Israel, Paulo, Sócrates, Platão, Aristóteles, os pais da Igreja, Lutero, Leibniz, Newton, Montesquieu, Descartes, Kierkegaard etc. - uma contribuição que inspirou de maneira mais decisiva a acensão antropológica e a construção e consolidação de ideias, culturas, leis, nações, modos de relação, de produção, e instituições do que a ideia de um Ente-de-Razão-Superior e Eterno, fundamento da realidade ou da moral, que fornece por si uma cosmovisão, quer para o indivíduo, quer para a sociedade, apresentando por Si Mesmo o Seu SIM ou o Seu NÃO a toda e qualquer ação desempenhada no âmbito da realidade. 

***

   Em quê se pautar? A pergunta para essa resposta não pode ser fácil ou mesmo simplória, pois, nestes dois casos, o que se coloca em jogo é a resposta fundamental que indica para o ser humano como agir, pensar,  esperar, em fim: viver. 

   Uma resposta essencial para essa pergunta é dada ao ser humano através da religião, e não é atoa que aquilo que é colocado diante dos olhos do ser humano como um Ser Superior, objeto de sua contemplação, sempre se imponha, também, como o objeto supremo de desejo do adorador, seja o desejo da incorporação total dessa divindade em si mesmo, ou seja na participação das forças e energias divinas em meio a história da vida, eliminando, com isso, os problemas existenciais presentes, passados e evitando os futuros. 

   Na Bíblia, vemos da parte de Jesus um apelo: "Sede perfeitos como o vosso Pai Celestial é perfeito" (Mt 5:48), assim como da parte da tradição religiosa judaica: Sede Santos porque Eu, o Senhor vosso Deus, Sou Santo (Lv 19:02; e, paralelamente a isso: I Pe 1:16). Que seria isso, senão uma exigência para que o contemplador, ou adorador, se esforçasse para atingir o mais alto padrão de vida no contexto da própria vida, através da prática constante da espiritualidade, que envolve a compreensão da existência de coisas eternas e perfeitas, não constatáveis no contexto da existência humana individual ou coletiva, mas acima dessa e invencível sobre essa?

   Na prática da obediência a Deus, no âmbito da fé cristã, se encontra a prática da oração, onde por um envolvimento profundo do indivíduo na contemplação divina, através da fé - o que não pode ser concebido como a projeção do "meta-humano" de Feuerbach -, o ser humano é colocado, definitivamente, perante o Absoluto à quem ele roga, se espelha e deseja, em um movimento místico que atinge até as raízes do seu ser, promovendo curas psíquicas, físicas e meta-físicas - ou espirituais. 

   Não tratamos, aqui, essas coisas como puro idealismo, visto que as possibilidades de tal perfeição não possem a sua origem, puramente, do pensamento humano, mas sim numa correspondência à uma realidade de ordem superior a qual é intuída ou revelada, de onde emanam e se fundamentam a ordem, a perfeição, e onde reside, definitivamente, a razão e o significado do ser humano em seu estado mais belo, puro, perfeito, ou seja: universal. 

***

   Não é por acaso que da negação de princípios fixos, da ideia do Eterno, do Verdadeiro, de um Bom-em-Si, assim como a ausência da contemplação de padrões elevados de vida, piedade e virtude - ou seja, da estética autêntica, que é um campo do conhecimento filosófico cujo objeto de estudo é o Belo -, siga-se uma relativização agressiva que coloca em xeque toda a fundamentação da moral, rebaixando a mesma ao nível da degradação total e deformando incontornavelmente a personalidade e cultura humanas.

   No contexto atual da sociedade brasileira, é óbvio que podemos enxergar uma cultura doente, sem senso de direção, perdida em si mesma, assim como frustrada com relação aos pontos de apoio que para si criou como meios de obter consolação frente às demandas da vida pessoal, política e mesmo religiosa. 

   A quantidade infindável de receitas, de criações culturais, de livros, programas terapêuticos, eventos, músicas, e soluções já criaram a falsa sensação de conforto por causa da opulência desses meios que chegam próximo ao infinito, pondo, até mesmo, uma nuvem pseudo-profilática que fornece apenas um paliativo, mas que no momento seguinte se revela como impotente para por um fim definitivo à dor do espinho da carne que incomoda intensamente, e que revela uma dimensão mais profunda e infinitamente mais séria do mal presente na humanidade.  

   A sede humana por padrões altos, assim como a exigência que por parte da sociedade humana se faz com relação às coisas ordeiras, justas que permitam a construção de uma personalidade moral autêntica - pelo menos no Brasil, onde essa exigência é profundamente alta, hoje -, apontam para um anseio humano de totalidade, de transcendência, cuja correspondência não pode ser menos do que o perfeito como uma resposta aos dilemas existenciais que pedem, a altos rogos, por cura, e nada menos do que Deus e a contemplação de Sua perfeição, beleza, eternidade e santidade pode fornecer um padrão definitivo de como pensar, agir e esperar e assim curar o cor inquietum (coração inquieto, em latim), que, segundo o bispo cristão Agostinho de Hipona, é o desejo eterno da alma pelo descanso em Deus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário