terça-feira, 3 de março de 2015

Niilismo e a Destruição Universal


   
   Uma das coisas com as quais tenho me debatido de maneira intensa, e que se constitui como uma linha de pensamento que vem se mostrando de maneira expressiva hoje (como foi no século XIX - onde tudo começou de maneira mais clara), é a proposta filosófica que ganhou o nome de niilismo (do latim Nihil que significa "Nada"), e que basicamente aposta na transvaloração, ou seja: na abolição dos valores e da moral tradicional em nome de algo "novo". 


   O filósofo Nietzsche se notabilizou como o seu livro "Assim Falou Zaratustra", que baseado em uma compreensão cerca do "senso histórico" (algo cujas origens remontam a Hegel) e de descobertas científicas, compreendeu que aquilo que se firmava como tradicional era já ultrapassado, e que, por isso, "Deus estava morto" porque nós e a nossa cultura O matamos. 


   A tentativa objetiva de buscar resolver a história das ideias por meio da utilização de uma "psicologia das ideias", vasculhando as "motivações subjacentes" a tudo que era relacionado à moral, religião, e "tradição", na perspectiva de Nietzsche deveria ser lido apenas à luz de uma categoria metafísica chamada "Vontade de Potência", que, no fim, seria a origem de todos os valores. Para ele nenhuma moral nasce pronta, mas é justamente fruto de uma "imposição da vontade", uma imposição dos "povos aristocráticos", sob os quais muitos fracos e perdedores, gemendo, criaram a sua moral (a moral de escravo, como ele chama), que agiria como uma gangrena nas consciências dos "mais fortes". É justamente daí, segundo Nietzsche, que surge a ideia de pecado, de religião, de Deus, de Redenção, e de Cristianismo, que, segundo ele, se constituía em uma doença, uma moral de escravos por excelência, pois estaria aí para satanizar os "espíritos livres" - e aí esta a sua tese de que o Império Romano se esfarelou diante do cristianismo

   De fato, sob algumas perspectivas a filosofia nietzscheana não deixa de conter a sua grandeza por causa de questões pertinentes que ela encerra no campo da "utilização da moral como poder de dominação de determinadas castas religiosas e políticas"Isso é fato - como atestado em diversas teorias psicológicas acerca da neurose, da histeria, assim como evidentes nos mais diversos fanatismos religiosos e políticos que, ao invés de libertarem, causaram (e causam) a "alienação de rebanho" e a destruição da vida. 

   Mas se por um lado o nietzscheanismo pode conter algo de libertador, a sua visão positivista e linear - coisa herdada de Schoppenhauer -, também não deixa de encerrar males como o obscurantismo, unilateralismo, e vários ilogismos. Isso ocorre justamente por causa do seu pessimismo antropológico radical que elimina da esfera da razão a capacidade de captar uma verdade universal - fruto da epistemologia kantiana da qual ele e grande parte dos pensadores alemães da época eram  partidários; e também da tradição luterana e reformada que, a começar por Lutero, chamou a razão de prostituta, compreendendo a legitimidade da verdade apenas pelo viés da autoridade, tal como afirmavam, já na Idade Média, os nominalistas.


   Mas o niilismo também foi um movimento político e filosófico na Rússia do Século XIX, e que apostou nesta ideia da destruição de qualquer autoridade superior, seja da monarquia, seja a autoridade paterna e de tudo aquilo que seria compreendido como "cultura", "religião", "bem ou mal", tendo em mente a libertação de todas as amarras peias que, fundada em uma determinada autoridade, manietavam os homens em uma espécie de julgo escravo.



   Salvo determinadas críticas que se fundam de maneira válida em pontos relevantes da própria cultura russa, a história nos mostra que, sob o pretexto de acabar com a opressão, o movimento niilista russo criou uma besta incomparavelmente pior do que aquilo que se propunha a combater, e isso justamente por causa da eliminação de pressupostos tradicionais que de certa maneira freavam a animalidade sob a qual o ser humano sem princípios se manifesta - e sobre isso já apontava os escritos de Tolstói, Dostoiévski e Turguêniev.  


***

   Mas introduzidos parcialmente nesta compreensão sobre o niilismo através de Nietzsche e um pouco da história russa, é impossível que de suas premissas não se siga algumas coisas um tanto quanto óbvias nesta empreita sobre a destruição dos valores. 



   Um opositor célebre o niilismo foi o romancista russo foi o já citado Dostoiévski, que contra o que ele chamou de ateísmo político, escreveu um livro - evidentemente panfletário - a este respeito chamado "Os Demônios", escrito em 1871, onde, dominado por uma espécie de intuição divinatória, fundada em um fato histórico, ataca algumas bases deste pensamento que viria mais tarde a se degenerar em um fanatismo cruel, e nos totalitarismos do século XX e XXI. 



   Vamos a uma passagem do livro citado onde ele ataca exclusivamente o que pode ser considerado uma antecipação do "Assim Falou Zaratustra", através da contraposição entre o "direito natural" - afirmado timidamente pelo personagem narrador do livro - e a transvaloração - defendida por Kiríllov.


   Segue o texto:


   "- O homem teme a morte porque ama a vida, eis o meu entendimento - observei -, e assim a natureza ordenou. [Narrador] 

   - Isso é vil e aí esta o engano! - os olhos dele brilhavam. - A vida é dor, a vida é medo, e o homem é um infeliz. Hoje tudo é dor e medo. Hoje o homem ama a vida porque ama a dor e o medo. E foi assim que fizeram. Agora a vida se apresenta como dor e medo, e nisso está todo o engano. Hoje o homem ainda não é aquele homem. Haverá um novo homem. Quem vencer a dor e o medo se tornará Deus. E outro Deus não existirá. [Kiríllov]

   - Então ao ser ver o outro Deus existe mesmo ? [Narrador]

   - Não existe, mas ele existe. Na pedra não existe dor, mas no medo da pedra existe dor. Deus é a dor do medo da morte. Quem vencer a dor e o medo se tornará Deus. Então haverá uma nova vida, então haverá um novo homem, tudo novo... Então a história será dividida e, duas partes: do gorila à destruição de Deus e da destruição de Deus ... [Kiríllov]

   - Ao gorila? [Narrador] 

   - À mudança física da terra e do homem. O homem será Deus e mudará fisicamente. O mundo mudará, e as coisas mudarão, e mudarão os pensamentos e todos os sentimentos. O que você acha, então, o homem mudará fisicamente? [Kiríllov]

   - Se for diferente viver ou não viver, todos matarão uns aos outros e eis, tal vez, em que haverá mudança. [Narrador]

   - Isso é indiferente. Matarão o engano. Aquele que desejar a liberdade essencial deve atrever-se. Aquele que atrever a matar-se terá descoberto o segredo do engano. Além disso  não há liberdade; nisso esta tudo, além disso não há nada. Aquele que atrever-se a matar-se será Deus. Hoje qualquer um pode fazê-lo porque não haverá Deus nem haverá nada. Mas ainda ninguém o fez nenhuma vez." [Kiríllov] (DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os Demônios. p. 120, 121)

   É interessante lembrar de um pensamento que transformou-se em um lugar comum de reflexão na Europa do século XIX, assim como na Alemanha nazista, e que apregoava o suicídio como o maior ato de liberdade que o ser humano poderia executar. Uma coisa própria de um "espírito livre".

   Mas pensemos sobre a ideia própria de valores que fundamentam a nossa compreensão de mundo, assim como de nós mesmos e do nosso próximo. Lembremos de tudo aquilo que, para nós, possui importância; na hierarquia de valores que fundamentam - mesmo que inconscientemente - as nossas ações no mundo.

   Entre estas coisas que importam para nós esta, como disse o narrador acima, a vida.

   Um termo muito peculiar que encontramos na fala do nosso Narrador é este: "O homem teme a morte porque ama a vida [...] assim a natureza ordenou". Mas que isso quer dizer? Bem, devemos voltar os nossos olhos para uma outra obra sua - já citada neste blog duas vezes -, que é o "Crime e Castigo", onde o jovem Raskólhnikov, derrubando os interditos, ou saltando por cima das travas morais, para ir "além do homem", decide matar uma velha agiota em nome de uma moral superior - a moral dos gênios e fundadores de civilizações, como ele chama. Mas, não obstante a tudo isso, ele é atingido por aquilo que Shakespeare chama no livro "Macbeth" de "implulsos da natureza". Sim, há a alusão da palavra "natureza" - como cria a teologia cristã Ortodoxa, da qual Dostoiévski era um seguidor - no sentido de finalidade e "caminho da consciência", o que pauta o sentido de existência, assim como confere a capacidade do homem reconhecer, sobre tudo, o amor, a preservação da vida e a busca pelo melhor - ou do Supremo Bem. Devido a isto, o "salto" do super homem acabou, por causa da transgressão das regras desta "natureza", por provocar uma culpa mortal em Raskólhnikov, sendo ele esmagado por conta da reação compulsiva da natureza em sua própria consciência.

   Aqui nós esbarramos na concepção de natureza como que concebendo nesta uma determinada finalidade. Algo preordenado e predestinado. Aquilo que pauta tudo o que podemos chamar de "Direito Natural", onde, por meio de diversas reflexões, se reconheceu com esta finalidade o direito humano à vida, à liberdade, à auto-defesa, à propriedade, felicidade (no sentido do makárioi grego) etc.

   Bem, mas se agora concebermos o mundo a partir do pensamento niilista, segundo o qual não existe um fundamento objetivo para nada daquilo que foi sendo consolidado na cultura, onde estão os diretos de existência desses bens culturais? Se a cultura não é o resultado da "tradução da natureza" por via da razão, mas sim o resultado de uma suposta "imposição de narrativas", o que pode impedir a implosão da cultura? Como justificar a existência de um fundamento objetivo da vida humana e, consequentemente, evitar que a mesma não seja considerada como um lixo, um mero acaso, ou uma espécie entre espécies, retirando dela o valor que cremos ser a ela inerente através do que dita os "caminhos da consciência"? E, least but not least, o que impede que não sejamos "Raskólhnikóvs" a saltar, aqui e ali, por cima de travas morais - matando, roubando, caluniando ou destruindo -, em nome de uma "nova moral", quando desconhecemos valores objetivos que fundamentam a própria vida?

   Com estes questionamentos, podemos afirmar que o raciocínio que se embasa em um fundamento objetivo da vida, na questão da "natureza" - e espero que isso tenha ficado claro -, é o único que pode justificar objetivamente o valor da mesma vida, e, consequentemente, impulsionar a consolidação daquilo que nós chamamos de civilização. Se isso não é verdade, então pensemos bem sobre as razões que levou a cultura a ser consolidada de maneira a emitir juízos proibitivos com relação ao assassinato, a antropofagia, infanticídio, o furto etc. Nada mais estranho do que prescindirmos da ideia de que o homem tudo faz para preservar a vida como um bem último, e que tal bem último se constitui em um valor objetivo cuja destruição só pode consequentemente arrastar o homem para um estágio infra-humano de animalidade. A cultura, por assim dizer, retira o homem deste estado de animalidade; mas é impossível que ela faça isso sem premissas que, por sua vez, não esteja fundadas na própria realidade, o que, por consequência lógica, concede um poder e autoridade que impede que o homem seja destruído pela marcha irracional do caos.

   Aliás, em se tratando do caos, a essa luta contra ele que muito da cosmogonia antiga e bíblica faz referência, apelando para um fundamento metafísico, para um princípio absoluto do universo que impede que este não seja tragado ou destruído por falta daquilo que o ordene e o fundamente. É justamente deste lócus que surge toda a matriz de sentido em torno da qual a totalidade das civilizações se constituíram.

***
   
   Com tudo isso, procurei clarear essa "consciência do fundamento" para o qual muito da constituição civilizacional deve. Também é forçoso reconhecermos com isso que se apelarmos para as bases epistemológicas do niilismo, dificilmente poderemos extrair daí - seja por força de um apelo aos costumes, para as tradições para a consciência - uma razão suficiente que crie interditos, e que possibilitem a preservação da vida, evitando que o homem seja demolido por causa da sua animalidade, ou por causa da animalidade de um outro alguém. Nada disso adiantará, pois sem valores objetivos - e isso por mais bem intencionada que sejam as atitudes para que o caos draconiano não triunfe - toda a cultura ruirá. É aí que reside o fim de todas as coisas.  


OBS: Acima vai a foto que mostra o momento em que o câmera Santiago Andrade (morto) foi atingido por um morteiro disparado por um manifestante que, supostamente, lutava contra o mal representado pela mídia. Não estaria aí mais uma história de um Raskólhnikov?    

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