terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

A Filosofia Moral Kantiana e a Questão da Humanidade Como Paradigma da Moralidade

    A filosofia moral kantiana concorda que um imperativo deve ser aquele que liga a vontade à razão, entendendo que a volição humana deve ser determinada por uma lei apriori da qual só a razão é capaz. Essa razão prática apriori também ordena que se deva considerar a humanidade como que pertencendo ao reino dos fins, o que significa dizer que a humanidade (em mim ou no próximo) deve ser levada em consideração na determinação material da ação, ou seja, a humanidade como princípio apriori deve determinar a vontade de tal forma que o termo da ação realize o propósito da humanidade, já que meu dever nesta realização da humanidade é incondicionado, pois a humanidade é humanidade racional, e o padrão absoluto de tudo o que podemos chamar de moralidade.     Poderíamos nos perguntar a que tipo de humanidade se refere Kant, pois obviamente ele se refere aqui a um ideal de ação fundada em uma idéia absoluta de humanidade. E levando em consideração que a ideia em Kant se trata de uma regra universal abstrata que subsume uma ação determinada, ação que uma vez conformada à ideia se converte como um ideal, então temos que concluir que ao fundar a sua noção de ideia aprioristicamente, Kant assume a humanidade como a medida total pela qual se mede todo conceito de moralidade. E entendendo, por tanto, que a fonte de todos os valores é antropológica – já que fundada na própria natureza humana -, há de se perguntar o que é esta humanidade a partir da qual podemos formar o cânone da razão e da própria moralidade.     A questão aqui é evidentemente difícil, pois se pressupõe que a humanidade é a regra de sua própria razão, pertencendo, como natureza racional, ao reino dos fins. Obviamente se desejamos afirmar a razão prática como a fonte pela qual formamos o cânone da moralidade, só podemos estar nos referindo a algo que se queira como absoluto, válido por todos os tempos e em todos os lugares. Não falamos da humanidade e da razão enquanto pertencente ao reino do contingente e relativo e sim enquanto pertencente – ou constituindo – à esfera do absoluto. Não se trata de um homem em particular afetado pelas suas inclinações, vícios e pela sua arbitrariedade, pois esse seria o exemplo sensível do anti-homem, mas sim do Homem enquanto cânone da humanidade, sendo esse acessível à razão e do qual podemos provavelmente não dispormos de exemplo sensível algum, posto que homem ideal determinado de forma absoluta em todos os seus atos particulares pela ideia de humanidade.     Kant lidou de forma profunda com a questão da moralidade, respondendo a essa questão aos moldes de uma filosofia platônica que não mais conhecia a ideia de homem ou de moral no céu das ideias abstratas, mas sim no reino da razão apriori. Podemos dizer que as ideias não são realidades constitutivas extra-nós, mas sim intra-nós. O homem seria assim como que o fundamento da sua própria humanidade, pois dotado de algo extremamente estável como é a razão. Devemos investigar aqui o quanto o conceito de imortalidade da alma – que é a única que pode oferecer tal conceito à filosofia kantiana –, em seu molde critão-escolástico, influenciou Kant em seus postulados. Obviamente pode surgir a objeção de que mesmo o pensamento escolástico não é tão aprioristico como o pensamento de Kant. Mas ainda que concedamos isso, esse ponto não influi em nada na questão proposta, já que esta depende de outra, que é se é possível ao homem ter um conceito de si a partir da intuição de sua própria natureza, mesmo que em grau ínfimo.     A dificuldade da questão kantiana ainda se impõe a nós se chegarmos à conclusão de que a afirmação de que o homem não é fundamento de si mesmo é, ainda hoje, não raramente posta de modo absolutamente dogmático e não epistêmico. Digo modo dogmático como são dogmáticas as opiniões postas com base na autoridade e na opinião comum, e não em conformidade com uma asserção racionalmente fundada. Para ilustrar a questão, vamos nos remeter à opinião antiga de que Deus, e não o homem, é o fundamento do homem. Deus, por tanto, é o fim, e a sua vontade é o fim como prima causa in causado. Essa questão teleológica implica necessariamente que a humanidade deve, como princípio material, ser conformada à vontade divina. O cânone da razão prática que deve conformar a vontade, lhe fornecendo não apenas o princípio, mas a forma absoluta da ação, é aqui a sabedoria divina a partir da qual todas as coisas foram estabelecidas. Temos a vontade divina como princípio intelectivo de conformação da vontade humana, percebendo-a a razão humana participante na razão divina participada. Dessa forma teríamos uma forma universal que serviria como que o padrão universal da conformação da vontade. Em Kant vemos que quem faz as vezes desse princípio formal absoluto é a ideia de humanidade. No pensamento antigo temos o princípio divino como padrão absoluto de conformação da vontade, e em Kant temos a ideia de humanidade como princípio formal absoluto desta conformação. Esses dois princípios aqui, evidentemente, servem de base para dar estabilidade à noção de moralidade.     Nesse sentido a questão, ao que parece, não pode ser revolvida na confrontação direta desses princípios, já que ambos assumem a mesma forma na discussão e servem aos mesmos fins. E a dificuldade se alarga ainda mais quando nos damos conta que, assim como Kant, a filosofia/teologia moral antiga também se agarrava ao conceito de imortalidade da alma – a fonte da qual podemos abstrair o conceito do homem. Mas mesmo seguindo o ceticismo kantiano, podemos nos perguntar em qual medida podemos afirmar uma mesma natureza racional, e não várias, para tudo aquilo que chamamos de humano; assim também podemos nos perguntar se a própria natureza humana racional, tal como Kant a concebe, está devidamente adequada à verdade. Outra questão que poderíamos levantar é sobre a etiologia da razão: De onde provém a razão humana?; ou mesmo: Podemos garantir uma adequação absoluta entre a razão humana e a natureza? Ou: A origem da razão humana não deveria ser idêntica à origem da natureza exterior, já que a percepção das leis da natureza não exige princípios idênticos partilhados entre natureza e razão? Ou melhor: Se a ideia de natureza conforma as categorias imanentes pelas quais se organiza a minha experiência àquilo que está fora da minha mente, então não seria o caso de que, compartilhando a mente e a natureza exterior fora de mim de leis conformes à razão, estaremos compartilhando leis e princípios que não estão apenas antropologicamente confinadas à mente, mas sim exteriormente presentes e que independem da mente humana para ser o que são?     Aqui apresentamos questões que certamente constituem uma longa discussão a respeito da filosofia kantiana, discussão essa que deve ser encarada certamente, mas não é neste texto que vou exaurir essa questão, deixando para outros textos uma tentativa de resolução desses problemas.

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