sábado, 2 de abril de 2022

Agostinho, o Aniconismo e a Metodologia Espiritual

Com toda segurança é possível afirmar características seriamente aniconistas na teologia de Agostinho. E apesar de todo contorcionismo mental para provar o contrário, é possível encontrar muitos testemunhos nos escritos dele que corroboram com isso. Contudo, mais do que uma simples "negação das imagens", ao que tudo indica o aniconismo agostiniano é uma metodologia espiritual, uma metodologia que visa distinguir radicalmente a realidade última (Deus) das realidades penúltimas (o mundo, o corpo e o espírito), como se segue:

"Se vocês levarem em consideração o que é simples produto do vosso espírito sujeito a erro, vocês falam com as suas imagens [mentais], e não com o Verbo de Deus, e as imagens [mentais] de vocês os enganam. [...] Jamais vocês atingirão Deus se não ultrapassarem o campo do espírito. [...] Os que saboreiam a carne, quão longe estão de saborear o que é o próprio Deus. [...] Nem poderiam saborear o que é o próprio Deus, ainda que saboreassem o que é próprio do espírito. [...] O que me criou está acima de mim. Ninguém o atinge senão se ultrapassar a si mesmo.
A vossa alma é uma coisa admirável. Mas por que digo é? Subi também acima da alma de vocês. Ela também está sujeita a mudanças, embora seja superior ao corpo. Ora conhece, ora não conhece. Ora se esquece, ora se recorda. Ora quer, ora não quer. Ora peca, ora é justa. Subi, portanto, acima de tudo o que sofre mudança; e não só acima de tudo o que se vê, mas ainda acima do que pode mudar-se. Vocês ultrapassaram para além da carne que se vê, além do céu, do sol, da lua, e das estrelas que se veem. Passem além do que está sujeito a mudanças. Ultrapassadas todas essas coisas, vocês já vieram à alma de vocês, mas também aí encontraram mutabilidade.
Deus será mutável? Passem para além da alma de vocês. Derramem a alma de vocês mesmos para se colocarem em contato com Deus, de quem é dito a vocês: "Onde está o teu Deus?"1
E aproveitando essa citação, por esse ângulo é possível visualizar, até de forma condescendente, a razão da dureza e frieza do catecismo maior de Westminster ao proibir até mesmo a confecção de imagens mentais de qualquer das três Pessoas da Santíssima Trindade, como se segue: "Os pecados proibidos no segundo mandamento são: estabelecer, aconselhar, mandar, usar, e aprovar, de qualquer modo, qualquer culto religioso não instituído por Deus; tolerar uma falsa religião, fazer qualquer imagem de Deus, de todas ou de qualquer das três Pessoas, quer interiormente no espírito, quer exteriormente, em qualquer forma de imagem ou semelhança de alguma criatura"2.
Note que o catecismo maior está se referindo absolutamente ao culto de tais imagens, pois, por exemplo, não poderíamos considerar pecado a simples representação de Cristo gerada pela experiência dos apóstolos com o Cristo histórico. Contudo, é óbvio que mesmo no que diz respeito à "imagem mental", não devemos confundir uma imagem gerada pelo nosso espírito com o próprio Deus, estando Deus, e seu Ser, infinitamente acima do nosso espírito e das representações que, como diz Agostinho, devem ser "deixadas de lado", e isso para que a pretexto de piedade não adoremos o produto da nossa mente como se Deus fosse, adorando a nossa fantasia no lugar de Deus.
Assim, a metodologia espiritual que visa "se elevar acima da mente" é aquela que entrega todas as representações mentais ao fogo da glória divina, para que uma vez consumidas deixemos tudo o que é mera representação e passemos a visualizar unicamente aquilo que é pura realidade e atualidade.
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[1] AGOSTINHO. Tratados Sobre o Evangelho de João. Tratado XX.11,12.
[2] CATECISMO MAIOR DE WESTMINSTER. Pergunta 109.

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