sexta-feira, 8 de abril de 2022

Atanásio Contra os Panfletários: Ou: A Questão da Expiação Penal na Obra "A Encarnação do Verbo"


    Uma carteirada influente em relação a Atanásio é que o tipo de teologia da redenção oferecida pelo bispo alexandrino exclui absolutamente qualquer forma de substituição penal. Ou a substituição é "não penal", ou a pena que Cristo sofre é "não substitutiva". E no caso de Atanásio há ainda uma tese um tanto quanto improcedente de que o alexandrino defendia que a entrega de Cristo à cruz era um sacrifício prestado à morte (sem mais) - seja lá o que isso signifique de proveitoso para nós.

    A questão é que ainda que padecendo de certas lacunas, a reflexão de Atanásio une de forma importante certos atributos divinos que perfazem a equação da redenção, como a bondade divina e o princípio de veracidade, como ele chama. Pois se, como ele diz, era indigno de Deus deixar o homem perecer em sua própria corrupção, por outro lado Deus não poderia "deixar barato" a transgressão, já que no início da criação Ele já havia proferido a sentença de que se o homem transgredisse a lei, comendo o fruto proibido, ele morreria.

    Atanásio explica a questão da seguinte forma:

"Além disso, ciente de que o livre-arbítrio do homem inclina-se num ou noutro sentido, adiantou-se e consolidou pela lei e em determinado lugar a graça que já lhe havia outorgado. Introduziu-o no paraíso, efetivamente, no paraíso e impôs-lhe uma lei. Se os homens conservassem a graça, permanecendo na virtude, teriam no paraíso vida isenta de tristeza [...]. Se, ao invés, transgredissem a lei [...], deixariam de viver no paraíso. [...]

A Sagrada Escritura, o assinala previamente, referindo a palavra de Deus: 'Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas a árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás de morrer' (Gn 2.16,17). 'Terás de morrer' não significa apenas: Morrereis, mas permanecereis sujeitos à corrupção e à morte"1.

    Nesse ponto deve ficar claro algo: a sentença da corrupção é fundamental para a compreensão daquilo que Atanásio exporá como o "princípio de veracidade divina". E sabendo que o homem não permaneceu na justiça enquanto habitante do paraíso, logo a sentença deveria ser consumada contra o homem.

    Como veremos abaixo, tal princípio de veracidade, pelo qual Deus rigorosamente deseja a execução da sentença contra a transgressão, acaba criando um dilema divino em virtude de outro princípio divino, que é a sua bondade, que é algo constitutivo de sua natureza. Assim, se por um lado Deus não pode mentir e a sentença contra a corrupção deve ser mantida contra o homem, por outro Deus é bom e não deseja que o mesmo homem transgressor, criado à Sua imagem, pereça.

    Atanásio expõe o dilema nestes termos:

"Por conseguinte, não convinha deixar os homens serem arrebatados pela corrupção, por ser isso impróprio e indigno da bondade de Deus.

"Como, porém, devia ser assim [,ou seja: é digno da bondade de Deus salvar o homem e não deixa-lo perecer], era também oportuno, ao invés, manter o princípio de veracidade de Deus na legislação sobre a morte [, já que "quem comeu o fruto da ciência morrerá]. Seria impensável que, para utilidade a nossa conservação, Deus, Pai da verdade, se mostrasse mentiroso.

Que devia, pois acontecer? Que faria Deus? Exigir dos homens arrependimento da transgressão? Poder-se-ia afirmar ser isso digno de Deus. [...]

Mas, o arrependimento não salvaguardaria o que a Deus convinha; pois uma vez mais, ele não continuaria a ser verídico se os homens não ficassem sob o poder da morte. Além disso o arrependimento não põe termo às condições naturais, mas apenas põe termo aos pecados"2.

    Nessa parte Atanásio, expondo um duplo princípio, deixa evidente a dupla polaridade dos interesses divinos que deveriam ser mantidos em função da dignidade de Deus, e mesmo de sua natureza, ou seja: 1) Deus não pode mentir, 2) mas também Deus é bom? O que então fazer nessa situação paradoxal na qual Deus deve conservar a sua integridade, reconciliando dois princípios cujo tensionamento parece nos conduzir a uma espécie de aporia? A resposta a tudo isso está na encarnação de Cristo.

    Mas note antes de tudo que a necessidade da aplicação do princípio de veracidade é algo necessário, neste contexto, somente em razão de uma demanda hipotética, ou seja, Deus poderia não ter exigido necessariamente a morte do transgressor, contudo, já que assim fez, Deus necessita agir segundo o seu o princípio de veracidade e executar a sentença da morte. Compreender isso é fundamental para o que vem a seguir.

    Então Atanásio explica como Deus concilia o "princípio de veracidade" com sua bondade para a realização da expiação dos pecados:

"Assim, de algo que é nosso, tomou um corpo semelhante ao nosso, e como todos estamos sujeitos à corrupção da morte, ele o entregou à morte, em prol de todos, apresentando-o ao Pai. Agiu, desta maneira por filantropia. Desta maneira, uma vez que todos nele morrem, a sentença de corrupção proferida contra os homens será ab-rogada. [...]

Por conseguinte, qual sacrifício e vítima imaculada, oferece à morte o corpo que assumiu, e logo faz desaparecer a morte de todos os corpos idênticos ao seu, através da oferta de vítima correspondente.

É justo que o Verbo de Deus, superior a todos, ao oferecer seu corpo, templo e instrumento, qual resgate por todos, solva a nossa dívida por sua morte. Deste modo, unindo todos os homens pelo corpo semelhante ao deles, o Filho incorruptível de Deus pode justamente a todos os homens revestir da incorruptibilidade. [...]

Com efeito, pelo sacrifício do seu próprio corpo, ele pôs termo à lei que pesava sobre nós, renovou-nos o princípio da vida, deu-nos a esperança da ressurreição"3.

    Essa coletânea de quatro citações indicam muito do que é a teologia da redenção de Atanásio. Em primeiro lugar vale ressaltar que Atanásio se situa entre aqueles que adotam a "teoria física" da expiação, escola que tem em Irineu de Lyon o seu maior representante. Assim, para Atanásio a expiação é também uma questão de "devolução da imortalidade" mediante a habitação do verbo na carne humana, e isso é bem explícito no terceiro parágrafo citado na última coletânea onde ele diz: "Deste modo, unindo todos os homens pelo corpo semelhante ao deles, o Filho incorruptível de Deus pode justamente a todos os homens revestir da incorruptibilidade".

    Mas seria reducionismo da nossa parte resumir a complexidade da teologia de Atanásio a esse nicho específico da teologia da expiação, perdendo assim as nuances do seu pensamento. E ao contrário do que dizem os panfleteiros contra qualquer forma de expiação penal, por demanda lógica é impossível não concluir que o próprio aspecto penal está presente na teoria da expiação de atanasiano - de modo muito explícito.

    Em duas partes específicas nas citações acima Atanásio afirma que Jesus entregou o seu corpo à morte. Ora, tal entrega à morte não é uma entrega a uma certa entidade chamada "morte". A afirmação de Atanásio, antes, é uma fórmula resumida a que o bispo recorre para dizer que Jesus entregou seu corpo imaculado à sentença de Deus proferida contra o homem por ocasião da transgressão. E que fique claro: trata-se da entrega que Jesus faz de seu corpo à execução penal de uma sentença proferida por Deus contra o homem. O proveito disso para o homem é que, de agora em diante, o homem em Cristo não morre mais como um condenado4, já que assim sua dívida para com a sentença é quitada pela morte de Cristo.

    E para que não sobre dúvida que Atanásio tem em vista que a encarnação oferece uma dupla solução para o problema da perdição do homem, ou seja, a solução da "abolição da dívida", e a anulação da corrupção propriamente dita, ele escreve deste modo:

"Restava, contudo, ainda saldar a dívida de todos, pois todos, conforme mencionamos acima, deveriam morrer [em função do princípio de veracidade divina], e esta foi a causa principal de sua vinda à terra. Por isso, após ter revelado sua divindade pelas obras, restava ainda oferecer o sacrifício por todos, entregando por todos à morte o templo de seu corpo [...].

Assim, encontram-se no mesmo ser dois prodígios: a morte de todos se cumpria no corpo do Senhor, e de outro lado a morte e a corrupção eram destruídas pelo Verbo unido a este corpo. Necessário era a morte, forçoso advir para todos. a fim de que a dívida comum fosse saldada"5.

    Veja que termos penais e jurídicos rasgam de alto a baixo as reflexões de Atanásio, e que tal argumentação concorre juntamente com afirmações que se enquadram melhor na teoria física da expiação, pois os efeitos deletérios da corrupção são anulados por Cristo ter assumido a humanidade em si. Uma coisa não exclui a outra. Assim, a encarnação devolve ao corpo humano tanto a imortalidade (pelo princípio da bondade divina), como também, tomando que é nosso (o corpo), Jesus o entrega à morte para desfazer a sentença da corrupção proferida por Deus contra nós, solvendo a nossa dívida (pelo princípio da veracidade) em seu próprio corpo.

    Em Atanásio, por motivos distintos e complementares, tanto a encarnação quanto a morte de Cristo tem efeitos redentivos. E mesmo na parte em que Atanásio afirma que pelo só perdão Deus poderia por termo aos pecados, isso não pode nos levar à consideração de que o perdão puro pode isentar o homem da "sentença" - ora, se isso é impossível, vai a pique a tese do perdão absoluto. Se as palavras ainda possuem sentido a execução de uma sentença só tem razão de ser em função de uma culpa. Não à toa Atanásio chama a nossa corrupção de "dívida", e "dívida contraída em função de uma transgressão", o que nos sujeita à morte como sentença, coisa pela qual Cristo também morre em favor de nós, abolindo essa sentença.

    É bem possível que Atanásio só estivesse sendo contraditório, e suas palavras não possuem consistência lógica - o que não é raro nos pais da igreja -, e ele afirmasse a noção da "sentença" sem querer a sua conclusão, ou visse a redenção apenas pela via da encarnação. Fato é que não retirar de nós a sentença é ainda a não execução de uma absolvição absoluta, pois a absolvição absoluta que deixa correr livre uma sentença ainda não é absolvição. Também, se há perdão absoluto, não há necessidade de alguém morrer para "abolir a dívida" e "solver a sentença". Mas se quisermos ser mais consistentes e fazer justiça ao pensamento de Atanásio, o princípio de veracidade, ao ser mantido, deve requerer uma compensação, e essa é encontrada no corpo de Cristo, o qual é oferecido ao Pai em favor de nós.

    E para reforçarmos ainda mais essa compreensão, podemos recorrer à célebre carta de Atanásio a Marcelino onde o alexandrino escreve sobre a interpretação dos salmos. Essa carta é do nosso interesse porque Atanásio recorre ao termo "ira de Deus" para definir a razão pela qual Cristo padece na cruz. Atanásio é explícito em definir o sofrimento de Cristo como uma penalidade sofrida em favor de nós - e mais do que isso: Atanásio afirma que Jesus sofre a penalidade do pecado que deveria recais sobre nós. É como segue:

"Eles perfuraram minhas mãos e meus pés - o que mais isso pode significar, exceto a cruz? E os Salmos 88 e 69, novamente falando na própria pessoa do Senhor, dizem-nos ainda mais que Ele sofreu essas coisas, não por Seu próprio bem, mas por nós. Tu fizeste a tua ira repousar sobre mim, diz aquele; e o outro acrescenta, paguei por coisas que nunca peguei. Pois Ele não morreu como sendo Ele próprio passível de morte: Ele sofreu por nós e suportou em Si a ira que foi a penalidade de nossa transgressão, assim como Isaías diz: Ele mesmo suportou nossas fraquezas. [Mt 8:17] Assim, no Salmo 138 , dizemos: O Senhor fará um recital para mim ; e no 72 o Espírito diz: Ele salvará os filhos dos pobres e humilhará o caluniador, pois da mão do poderoso libertou o pobre, o carente a quem não havia ninguém para ajudar"6.

    Dado tudo o que expomos, só resta a conclusão: Ora, se Cristo sofre a morte como sentença proferida em função da transgressão, coisa demandada pelo "princípio de veracidade", sua morte é penal; e se, como o próprio Atanásio diz no terceiro paragrafo da última coletânea acima, ele faz a morte desaparecer de todos os corpos semelhantes aos seus pelo oferecimento da oferta de uma "vítima correspondente", sua morte é substitutiva.

    Antes de alguém imputar a mim coisas que eu não disse, não estou afirmando que Atanásio é um "calvinista" ou um "luterano". Essa questão nem em jogo está. Antes, o que desejo com o texto é expor que a noção de que Cristo sofreu uma pena que pesa sobre todos nós, e que a execução dessa pena (que era nossa) redunda em efeitos positivos e redentivos para nós não é uma invenção dos reformadores. Para Atanásio "todos morrem em Cristo", pois Cristo "morre a morte de todos", e que por isso "não morremos mais como condenados", já que com isso ele "saldou a nossa dívida".

    A confecção de uma quimera que visa por na pena e na cabeça do alexandrino a ideia de que para ele a morte de Cristo é penal, mas não substitutiva, e também é substitutiva, mas não penal, não passa de um festim tosquíssimo confeccionado para alimentar a fantasia de descoberta típica dos incautos. Enquanto esses acham que estão descobrindo a roda, outros já os atropelaram em desabalada corrida.

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[1] ATANÁSIO. A Encarnação do Verbo. I.3.4,5.

[2] Idem. I.7.1-3.

[3] Idem. II.8.4, 9.1,2 e 10.5.

[4] Ver em II.10.5b.

[5] Idem. IV.20.2 e 5

[6] ATANÁSIO. Carta a Marcelino. par. 7. Disponível em: UMA CARTA DE ATHANASIUS, SOBRE A INTERPRETAÇÃO DOS SALMOS | Teologia Reformada na Semper Reformanda

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