quarta-feira, 27 de abril de 2022

"SENHOR, Eis Aqui Duas Espadas": A Interpretação de Calvino de Lucas 22.36-38 a 22.51, e a posse das espadas.

    Lucas 22.35-38 é geralmente usado como uma licença de Cristo para que os discípulos pudessem levantar uma defesa armada contra a guarda do Sinédrio. Trata-se de uma passagem que tem sido usada de forma panfletária aqui no Brasil desde Olavo de Carvalho, que importou essa interpretação de grupos dos EUA. Eu não quero entrar nesses detalhes exteriores e políticos, mas como a questão diz respeito a uma interpretação bíblica, julgo poder avaliar essa passagem - e por que, como pastor, eu não poderia fazer isso?

    Para isso João Calvino pode vir em nosso socorro com sua interpretação a respeito dessa questão. E é surpreendente que ele, contado como aquele que forneceu as bases para a formação de uma liga internacional protestante responsável pela defesa do protestantismo na Europa, formulou uma interpretação que não saca de Lc 22.35-38 qualquer justificativa para matar segundo uma suposta orientação dada por Cristo a seus discípulos.

    Comentando o vs. 36, Calvino se vale de uma interpretação espiritualizante da passagem, dizendo que se antes eles foram beneficiados com tudo, mesmo sem levar alforje ou bolsa de viagem, agora, tendo com base e experiência da Providência divina em supri-los em tudo, eles deveriam renovar a sua confiança em Deus e não se importar com o alimento que perece, mas fortalecer nessa experiência seus corações, permutando essa mesma experiência do livramento pela esperança na sustentação em meio às dificuldades que viriam, e, por assim dizer, "comprando" espadas espirituais para vencer a tentação em uma batalha espiritual, e não em uma batalha física. É como segue:

"'Mas agora, quem tem bolsa, leve-a'. Em linguagem metafórica, ele assevera que eles logo encontrarão grandes problemas e ataques ferozes; como quando um general, pretendendo levar os soldados ao campo de batalha, chama-os às armas e ordena-lhes que deixem de lado todos os outros cuidados, e não pense em nada mais além da luta, nem mesmo na aquisição de alimentos. Pois ele mostra - como geralmente é feito em casos de extremo perigo - que que tudo deve ser vendido, até o alforje e a bolsa, para fornecer-lhes armas. E, no entanto, ele não os chama para um combate externo, mas apenas, sob a comparação da luta, os adverte das severas lutas de tentações que devem sofrer, e dos ataques ferozes que eles devem sustentar em disputas espirituais".1

    E assim Calvino segue:

"Para que eles possam mais voluntariamente se lançam na providência de Deus, ele primeiro os lembrou, como eu disse, que Deus teve o cuidado de supri-los com o que era necessário, mesmo quando carregavam consigo nenhum suprimento de comida e roupas. Tendo experimentado suprimentos tão grandes e sazonais de Deus, eles não devem, no futuro, alimentar qualquer dúvida de que ele proveria cada uma de suas necessidades"2.

    Sobre o versículo de nº 37 Calvino comenta a respeito da necessidade de ser "contado entre os transgressores", indicando que levando a culpa e a pena desses ele pudesse apresentar os seus remidos inocentes e inculpáveis perante o Senhor. A respeito da teoria da expiação de Calvino já sabemos bem. Mas nos importa seu comentário a respeito do vs. 38 que diz: "Então lhes disseram: Senhor, eis aqui duas espadas! Respondeu-lhes: Basta!". É impressionante a sensibilidade do reformador na interpretação dessa passagem, pois Calvino afirma os seus discípulos, por um estupidez não pequena, não haviam entendido nada da instrução de Jesus, pois tomaram o metafórico pelo literal. É como segue:

"Foi uma ignorância verdadeiramente vergonhosa e estúpida, que o discípulos, depois de terem sido tantas vezes informados sobre carregar a cruz, imaginam que eles deve lutar com espadas de ferro. Quando dizem que têm duas espadas, é incerto se eles querem dizer que estão bem preparados contra seus inimigos, ou se queixam de que estão mal providos de armas. É evidente, pelo menos, que eles eram tão estúpidos a ponto de não pensar em um inimigo espiritual."3

    Podemos dizer que nessa passagem Calvino tanto coloca em evidente oposição a cruz e a espada, quanto estabelece uma identidade entre ambas. Opondo a cruz à espada Calvino afirma que era evidente que do ensino de Cristo se segue a verdade de que não devemos matar pelo evangelho, e sim morrer por ele. Por outro lado, identificando a cruz à espada Calvino afirma que essa é, entre todas as armas, a única arma do Evangelho pela qual combatemos o nosso inimigo, que não é um inimigo externo, físico, mas sim espiritual. A cruz é a espada espiritual do cristão, a arma pela qual o cristão vence quando vulnerado, e não quando destrói a vida de alguém. Assim, o "Basta!" de Jesus não é anuência, é apenas uma forma de seguir com a estupidez dos seus discípulos, estupidez que será desfeita com a glória da ressurreição.

    Mas esse não é todo o conteúdo do vs. 38, pois Calvino ainda destrói toda ilusão que ainda poderia ser sustentada na ideia de que o Evangelho concede à igreja qualquer poder temporal. A teoria das "duas espadas", influente na Idade Média, onde se afirmava que Deus havia entregado para a Igreja duas espadas, a espiritual pela qual os sacerdotes da igreja ministravam o Evangelho, e a espada temporal que a Igreja concedia ao Estado para que esse fosse o braço armado de Deus, estando, por tanto, a serviço da Igreja, é abertamente contestada por Calvino. Assim ele comenta:

"Quanto à inferência que os Doutores em Direito Canônico tiram dessas palavras - que seus bispos mitrados têm uma dupla jurisdição - não é apenas uma ofensiva alegoria, mas uma zombaria detestável, pela qual eles ridicularizam a palavra de Deus. E era necessário que os escravos do Anticristo caíssem em tal loucura, de pisotear abertamente sob pés, por desprezo sacrílego, os sagrados oráculos de Deus"4.

    A interpretação espiritualizante de Calvino se justifica ao percebermos que no vs. 51 Jesus acode o soldado que teve a sua orelha decepada por Pedro. Jesus não poderia ter dado uma ordem contraditória a seus discípulos, incentivando-os a comprar espadas para depois negar o seu uso; nem mesmo é sensato julgar que Jesus queria que seus discípulos portassem espadas apenas para teatralizar a sua prisão. Fato é que quando Jesus disse que importava ele ser contado entre os transgressores, esse era um aviso para que os discípulos se preparassem para a tentação, como foi dito acima. Além do mais, nos versículos de Mateus 26.51-54 Jesus repreende severamente o ato da decepa da orelha do servo do Sumo Sacerdote, afirmando: "Guarda a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão". Contudo, esse é o comentário de Calvino sobre Lc 22.51:

"Por seu zelo tolo, Pedro trouxe grave reprovação sobre seu Mestre e sua doutrina; e não há dúvida de que este foi um artifício pelo qual Satanás tentou envolver o Evangelho em desgraça eterna, como se Cristo tivesse feito companhia a assassinos e pessoas sediciosas para propósitos revolucionários. Esta, eu acho, foi a razão pela qual Cristo curou a ferida que Pedro havia infligido"5.

    O ato de ferir o servo do Sumo Sacerdote era um fato destrutivo e que poderia trazer infâmia a Cristo, justificando sobre ele todas as acusações de sedição, tumulto etc., como já havia acontecido com outros tipos de candidatos a messias antes dele. Então operar um milagre sobre o servo do Sumo Sacerdote foi um meio de contornar a situação embaraçosa e potencialmente destrutiva causada pela tolice de Pedro, que em seu zelo sem entendimento buscou defender Jesus mediante a aplicação da violência.

    É incrível perceber o quanto Pedro se destrambelhava em sua forma de querer o bem o Senhor, ou na forma de entendê-lo, e esse é só mais um dos outros tantos casos. Contudo, Calvino infere que tal ato não foi suficiente - como não foi de fato - para aplacar seus adversários.

    Mas antes de mais nada, aqui vai explicado de antemão o que eu não disse: Eu não afirmei que qualquer forma de auto-defesa seja necessariamente pecado. Não é, caso contrário o uso da força pelas nações seria evidentemente uma transgressão, e poderíamos nisso colocar sob anátema todo Antigo Testamento.

    Sendo assim, aqui vai o que eu disse: Que é falso que Jesus ensinou ser possível matar, mesmo a pretexto de auto-defesa, segundo o Evangelho. Sendo assim, podemos fazer a devida distinção entre Lei e Evangelho, entre a aplicação da justiça e a aplicação da misericórdia, pois a mensagem do Evangelho é de como Deus manifesta a sua misericórdia salvadora, não de como vingamos o pecado. No evangelho abraçamos a nossa cruz para morrer com Cristo e não para matar em nome dele. É por isso que se diz que a justiça (justificadora) se manifesta no Evangelho independentemente da Lei (Rm 3.21,22), pois pela aplicação da Lei que vinga o pecado ninguém será justificado (Gl 2.16).
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[1] CALVINO, João. Commentary on Luke. 22.36

[2] Idem.

[3] Idem. On Luke 22.38

[4] Idem.

[5] Idem. On Luke 22.51a

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