terça-feira, 26 de julho de 2022

Heidegger, Kierkegaard, o Princípio Matemático da Filosofia e a Revelação

    No livro "Ser e Verdade" Heidegger discorre sobre questões relativas ao próprio da filosofia ocidental. Lá ele tem uma tese interessante, que é a de que o "matemático" é princípio ocidental da filosofia. Por "matemático" ele compreende não meramente uma disciplina relativa aos números, mas algo que funda e determina essa filosofia, e discorrendo sobre o sentido próprio do "matemático" Heidegger aponta para a raiz dessa palavra, a saber, "mathema", aquilo que é, segundo os gregos, o próprio do que é passível de ensino e passível de ser aprendido ("mathesis"). Entre as coisas que podem ser aprendidas, os "methemata" se distinguem de outros setores do conhecimento, na área especulativa da física (physis), e na área da produção (poiómena) etc. Diferentemente desses outros setores, os "methemata" não estão atrelados àquilo que é dado como fenômeno, mas se distinguem por serem objetos que, podemos dizer, o ser humano se dá a si mesmo como realidades captadas em sua pureza apenas pela razão, não por fenômenos ou pela experiência.

    Aqui podemos dizer que seria simples reducionismo entender o "matemático" como números, relações numéricas, pontos, sólidos, linhas etc. Como dirá Heidegger, esses elementos são "matemáticos" apenas em sentido derivado; são elementos constituídos pelos "mathemata" e não constitutivos deles. Não leva muito tempo para que com isso possamos reconhecer que essa disciplina, que engloba o "ensinar e aprender", nos conduz à premissa de um método que serviu como o ponto de partida da filosofia platônica, e que revela assim o sentido dos "mathemata" no pensamento grego, a saber, a "maiêutica", que era método do partejamento de ideias pelo qual Sócrates extraia o conhecimento latente na alma daqueles que ele aplicava esse método. Essa premissa platônica que funda o método maiêutico está em que o homem é fonte de conhecimento para si, mas não porque ele detém o conteúdo de todos os fenômenos, e sim porque ele carrega em sua razão o princípio fundamental desse mesmo conhecer.

    Aqui é interessante notar que voltamos à epígrafe sustentada na porta do templo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo". Esse é o próprio do pensamento grego, pois é nessa volta a si mesmo que o homem pode ter acesso àquele princípio "matemático" que o conduz à verdade, à verdade que não vem a nós pelo fenômeno ou por algo externo a nós, mas que é congênito a nós. O mesmo Spinoza, quando afirma que a exposição no seu "Ética" é feito more geometrico demonstrata, ou "segundo a modo de demonstração geométrica", não quis dizer que sua obra partia dos princípios da geometria analítica e da análise das formas espaciais, mas sim que seu procedimento era dedutivo, se seguindo de premissas, cuja conclusão era rigorosamente revestida e reforçada por uma armadura formal. Tal lógica se funda em um princípio racional que o homem se dá e pelo qual ele pode julgar e concluir. É um próprio humano.

    É impossível você chegar nesse ponto e não ver a semelhança com a postulação aparentemente simples de Kierkegaard, que distingue o "próprio do cristianismo" com o "próprio dos gregos" no "Migalhas Filosóficas". Explico: Toda essa descrição do "princípio matemático" que, segundo Heidegger, domina a filosofia ocidental é uma preparação para um confronto direto com Hegel, que segundo Heidegger é o clímax do desenvolvimento da "tendência ocidental" na filosofia, filosofia que é Théo-Lógica.

    No Migalhas Filosóficas Kierkegaard opõe dois métodos para a aquisição da verdade, preparando assim seu ataque à filosofia hegeliana. O primeiro método, que é o grego, parte da premissa de que o homem é mestre para si, tendo a maiêutica socrática como evidência máxima dessa compreensão. No cristianismo a premissa é totalmente outra, pois a verdade não é alcançada por um método pelo qual o homem se põe a caminho, nem é aquilo que o homem dá a si mesmo necessariamente, mas sim aquilo que nos chega, e não algo para onde vamos, é aquilo que é dado por outro, a saber, o Cristo e a sua revelação, e não algo que damos a nós mesmos e nem nos damos partindo dos fatos da natureza. Kierkegaard parte daquilo que Schelling chamará de "filosofia positiva", ou a "filosofia da revelação", algo que não pode ser uma verdade que alcanço necessariamente pela via da dedução, algo a que chego sem que coisa alguma fora de mim me seja dada. Kierkegaard conclui aqui o que os teólogos sempre souberam, a saber, que o posto pela revelação divina não é uma verdade simplesmente dedutível (pela via negativa, no sentido do idealismo alemão, i. e., pela via da razão pura), e nem dedutível a partir dos fatos naturais dados, mas é algo eminentemente positivo (para além do positivo simples da natureza), a saber, se trata do que Deus decidiu estabelecer segundo a sua vontade (potência ordenada), vontade que não tem razão de ser a não ser o desejo divino, muito embora os (melhores) teólogos também sempre tenham afirmado que a revelação não é contrária à razão, pois, como deduzir a ressurreição dos mortos da simples razão ou a partir dos fatos da natureza? E como considerar a ressurreição irracional pelo ângulo da potência absoluta de Deus?

    Embora Heidegger parta desse ponto de vista kierkegaardiano - levando em consideração que Kierkegaard foi, possivelmente, o mais violento inimigo de Hegel -, ele não permanece em todos os pontos de vista cristãos de Kierkegaard, e também rompe o equilíbrio estabelecido entre a filosofia e a revelação como foi estabelecido ao longo da história da Igreja. Sabemos que Heidegger foi um monstro, mas é interessante notar o seu itinerário argumentativo e o amplo domínio que possuía da história da filosofia, indicando certos pontos doentios dessa história (em Descartes) e as fragilidades de quem considera a realidade apenas do ponto de vista daquilo que o homem pode dar a si mesmo em sua razão, desconsiderando que nem tudo o que compõe a verdade (nem a verdade superior) pode ser dado ao homem pelo próprio homem.

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