terça-feira, 26 de julho de 2022

A Piedade e a Bondade

    O termo "piedade", que soa algo tão batido por estar relacionado, por vezes, à velharia carola ou à pieguice, remonta ao termo grego ευσεβεια (eusebéia), que até constitui nomes como "Eusébio". Sonoramente é algo estranho a nós também. Em nossa língua, piedade deriva diretamente do termo latino "pietatis", que é algo mais bonito e sonoro, se ligando à noção de "observância estrita", e, por tanto, ao sentido de dever - até de deveres contraídos que não escolhemos por nós. Assim, é dever de piedade amar a nação onde nascemos, honrar os pais que se tem, amar os irmãos que nos são dados e, enfim, ao Deus que nos trouxe à luz sem nossa consulta, o qual nos deu um corpo que não escolhemos e nos colocou obrigações que não contratamos, mas às quais somos ligados por uma condição atávica. O ímpio, dessa forma, age como Prometeu, o símbolo dos libertários, aqueles que, segundo o Salmo nº2, sob a incitação da fúria desejam "desfazer as suas amarras" (leia-se as amarras postas por Deus), ou seja, todas essas obrigações.

    O termo latino "pietatis" soa, por vezes, com certa secura ascética, refletindo uma obediência de tipo monacal ou mesmo militar, algo que mesmo que traga à nossa presença o senso de veneração, contudo, não parece evocar hoje, em um primeiro momento, aquela amabilidade na qual podemos descansar, embora o termo não exclua nada disso, antes signifique essas coisas de forma expressa. Nesse sentido o termo hebraico חֶסֶד (chesed) pode vir em nosso socorro, clareando a noção de "pietatis". Esse mesmo termo (chesed) nomeou movimento místico que brotou entre os judeus - do qual o próprio Martin Buber fez parte - chamado "hassidismo", ou "chassidismo".

    Mas o que importa aqui é que o termo "chesed" significa aquela liberdade em bondade, benignidade, compaixão, benevolência, graça e mesmo beleza (Is 40.6). Assim, para facilitar a compreensão, toda vez que a escritura evoca o termo "piedade" podemos trazer à mente primeiramente a luz que brota desse fundo semítico, clareando assim seu significado, e entender por isso aquela virtude onde o homem se encontra exclusivamente devotado àquele bem que o torna digno de afeto e amor. Se aquela observância ascética é algo que para a mente de hoje separa - embora essa observância separe não por motivos ruins, diga-se, pois o próprio "santificado" carrega essa noção de "separado" -, a piedade, assim como chesed (חֶסֶד), é algo que, em um primeiro plano, convida, agrega e nos eleva em amor em direção a Deus e àquele que, como nós, é imagem de Deus.

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