terça-feira, 26 de julho de 2022

Sola Scriptura e Equívocos

    Existe uma confusão muito grande que visa implodir a validade do princípio protestante Sola Scriptura. Nenhum teólogo protestante afirma que a Igreja inexistiu sem a Escritura, ou sem o conjunto dessas escrituras. Todas as igrejas onde haviam pessoas com fé e batizadas eram comunidades cristãs. Ninguém nega hoje que existam cristãos - na China, Coreia do Norte e em outros lugares - sem a Escritura ou apenas com parte dela. O que não existe é uma igreja sem a Palavra de Deus e sem a fé em Cristo (que é a Palavra de Deus).

    Outra questão é a seguinte: a positivação do conteúdo da pregação é uma tendência dos atos divinos que remonta ao Antigo Testamento, e certamente tudo visando o nosso bem. E o que sobra do AT para nós cristãos não são as "tradições orais" - que os fariseus alegavam também ter -, mas sim os oráculos positivados nos textos bíblicos. Não seguimos os ensinos de Platão que repugnava a positivação das "doutrina esotéricas" em escrito (e se Platão consignava suas doutrinas em cartas, mandava que os destinatários, uma vez lidas as correspondências, as queimassem). A razão disso é que a revelação é uma instituição pública, manifesta pelo interesse de todos os homens, sem ambiguidades, e sem se tratar de uma mensagem restrita a uma elite. É a comunicação divina, manifesta em escrito, à humanidade que ele criou.
    Pensem bem: a imensa maioria dos ensinos esotéricos (e temos acesso a parte deles em documentos que não foram queimados) dos gregos se perderam, e esses eram transmitidos via "tradição oral". Outros, se estão aí, nem sabemos se remontam aos mestres dos mistérios gregos. Mas uma coisa sabemos: o apelo à "tradição oral" é muito próprio de um discurso de uma "elite mística", depositária de mistérios. Foi assim que os gnósticos conseguiram arrastar parte da igreja, já que eles alegaram terem recebido esses ensinos diretamente dos apóstolos (algo impossível de provar e também de refutar). Sendo assim, aquilo em que os polemistas cristãos se fiavam era na revelação pública, revelação positivada nas Escrituras, e transmitida pelos apóstolos e evangelistas às igrejas - pois essas palavras eram palavras dos profetas e Apóstolos.
    E uma nota importante: mesmo Irineu de Lyon, bispo cristão do séc. II e III d.C., em sua polêmica contra a heresia gnóstica, apelava firmemente para o sentido dos textos sagrados para refutar os ensinos desviantes dos gnósticos E quando apelava para a paradosis (a tradição, ou aquilo que foi entregue) tinha em mente uma coisa: a reta interpretação das escrituras deixadas pelos apóstolos e profetas. Como prova disso o texto do mesmo Irineu entitulado "Demonstração da Pregação Apostólica" nada mais trata do que o conteúdo da Escritura e da reta forma de vê-la. Nada mais do que isso e nada menos, o que nos leva à conclusão de que a tradição é a própria Escritura e a sua reta interpretação, pois foi a Escritura e as Palavras ali consignadas que nos foram entregues (paradosis), por amor a nós, em condescendência pela nossa fraqueza, para a nossa salvação.
P.S.: O fato de Irineu de Lyon no "Contra as Heresias" ter acusado os heréticos gnósticos de terem com eles uma "estátua de Cristo" já deveria nos sinalizar qual era a sua interpretação da Escritura, e qual o seu entendimento a respeito do preceito de Deus para as igrejas.

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