terça-feira, 30 de agosto de 2022

Contra os Maldizentes

    O Leandro Bezerra, neste fim de semana, teve a iniciativa genial de corrigir uma tradução que apresentei de um trecho da obra De Fide et Symbolo (IV. 9.), de Agostinho, fazendo a severa acusação de que o texto que apresentei estava errado. Outros, mais empolgados e festivos disseram que eu estava fraudando o texto. Em primeiro lugar, para esclarecer as dúvidas desses que são como que integrantes do segundo coro da hierarquia celeste, a tradução não era minha, mas sim do Fabrício Girardi (ver aqui1); em segundo lugar, a tradução das demais citações - retiradas dos Tratados sobre o Evangelho de João - são do padre José Augusto Rodrigues Amado (como você pode ver aqui2). Vou colocar adiante a citação no original do texto da controvérsia e uma tradução no português e em outras línguas, e explicar algo para aplacar a fúria querubínica dessa gente zelosa que, semelhante a rainha de copas, prefere manter a difamação à suspenção do juízo diante de uma suspeita de erro.

    O texto no original latino é este: "Sed admonet potius ut intellegamus secundum Deum non eum habuisse matrem"3. Em inglês temos esta tradução: "But He rather admonishesus to understand that, in respect of His being God, there was no mother for Him"4. Em espanhol, temos esta outra: "Más bien este texto nos llama la atención para que comprendamos que Jesús, en cuanto Dios, no tiene madre"5. E em francês temos: "Nous y voyons plutôt une preuve que le Christ n'a point eu de mère en qualité de Dieu"6.

    Notem que as correspondências formais ou equivalências dinâmicas se intercalam nessas traduções - que são os dois princípios de tradução comumente utilizado pelas escolas (para ver sobre esses princípios, basta ler este texto7). Mas em resumo o princípio de correspondência formal busca verter da forma literal as palavras do texto original, não se importando com a harmonia sonora ou estética do texto (o que torna esse princípio pouco utilizado na hora da tradução de poesias, por exemplo). Já o princípio de equivalência dinâmica busca verter o texto não procurando a correspondência formal entre as palavras do original e do idioma para o qual são vertidas as palavras, mas sim a melhor expressão do sentido, focando a comunicação. Por assim dizer, ambos os princípios de tradução visam, mesmo que por vias diversas, a melhor forma de expressar o sentido original do texto, mas um foca na preservação da forma das palavras e o outro a comunicabilidade delas.
    Entendido isso eu posso colocar aqui o texto da Paulus - traduzido pelo Fabrício Gerardi - em confronto com o texto original. No texto de Gerardi temos a seguinte tradução: "Queria mostrar, acima de tudo, que Deus, que não tem mãe, [etc.]". Já no texto original temos o seguinte: "Sed admonet potius ut intellegamus secundum Deum non eum habuisse matrem". É possível ver que Girard opta por um texto em que prevalece aqui o princípio de equivalência dinâmica, mas que não chega a desvirtuar o sentido do texto. O texto em latim começa com uma adversativa, ou seja, com o "Sed" que é correspondente ao "Mas" - como se diz dos "Sed contra" [Mas em (sentido) contrário]. "Admonet" é algo como "aviso", donde o termo "admoestação", e o "potius" é "antes" (como: "antes" é melhor... etc.), e "ut intellegamus" podemos verter como "para [que] entendamos". Já "secundum Deum", é mesmo "segundo Deus", o que no francês é traduzido como "na qualidade de Deus", que em Inglês está como "em relação ao seu Ser [como] Deus". Já o "non eum habuisse matrem" é mais literalmente traduzido como "ele [que] não tinha mãe". Podemos traduzir da forma mais literal possível para o português da seguinte maneira: "Mas admoesta, ao invés, a compreendermos que ele, [que] enquanto Deus não tinha mãe, etc.". O "que" entre colchetes "[]", nesta última frase, eu coloco em razão do restante da frase que não precisa ser traduzido aqui.
    A razão pela qual optei por esse texto é que nesse terreno sensível eu posso me escudar em alguém que teve a competência de traduzir o trabalho inteiro do qual esse trecho foi tirado. Não se trata de uma tradução minha, e nem foi um trabalho de "fraudar um texto" da minha parte - coisa da qual estou sendo acusado, tendo isso um apoio do fato de o Leandro Bezerra ter dito, numa fala inconsequente, que se trata de um "erro de tradução". Mesmo ele reconheceu que se tratava de uma "tradução dinâmica" - fazendo clara referência ao princípio de equivalência dinâmica (que julgo, ao menos, que ele conheça, por ter estudado exegese bíblica) -, mas que isso "comportava riscos", ao mesmo tempo insinuando um "primarismo acadêmico" da minha parte etc.. E assim: o que o Leandro pensa ou deixa de pensar de mim é algo para o qual estou me lixando. O que me deixa inquieto é a miríade dos zelosos que gravitam em torno dele, que tem ódio ao protestantismo, e que entraram em uma toada difamatória, dizendo que eu "fraudei o texto", - mesmo que o Leandro soubesse (na pior das hipóteses), embora não tivesse se manifestado a respeito, de que não se tratava de uma fraude.
    Agora pergunto o seguinte: Qual a distinção absoluta entre "Queria mostrar, acima de tudo, que Deus, que não tem mãe, [etc.]", para: "Mas admoesta, ao invés, a compreendermos que ele, [que] enquanto Deus não tinha mãe, etc."? Eu respondo: a disposição caritativa, ou difamatória ou orgulhosa de quem os lê. Alguém querer sacar qualquer "heresia" dessas traduções é coisa simplesmente grotesca, mas se quiser sacar obviamente que assim o fará. O problema maior foi que o que eu escrevi acabou sendo colocado em meio a um controvérsia, já que o Leandro estava tentando responder ao Pedro França Gaião (que sim, tem às vezes um péssimo gosto por controvérsias), que jogou meu texto no meio das hienas, enquanto eles discutiam a respeito de Nestório.
   Mas algumas notas a respeito do meu texto, que é este8: 1) Eu não afirmo que Agostinho é nestoriano; 2) Afirmo que Agostinho cria na unidade substancial entre a natureza humana e divina na hipóstase una do Filho de Deus; 3) Eu concedo validade ao termo Teótokos (Mãe de Deus) por causa da sua referência cristológica; 4) Quanto ao que eu disse que "em sua literalidade" certas afirmações não seriam "efesianas" eu me reservei ao sentido de que olhando o todo da sua obra, e se atento a isso, Agostinho não teria alcançado Éfeso - o que não implica que em sua teologia ele seja um antagonista de Éfeso (há um abismo de diferença entre uma coisa e outra; 5) A minha tese é que a teologia de Agostinho assim é porque ele não chegou ao nível de diferenciação da discussão tal como foi travada em Éfeso; 6) Sei que Éfeso guarda a linguagem diferenciadora quando a consideração daquilo que compete a Cristo no concreto (em vista da encarnação) e no abstrato (considerando as naturezas humanas e divinas em suas especificidades próprias), pois o Concílio não nega que no abstrato Deus não tem mãe (Agostinho), e que no concreto Deus tem mãe (em razão da união, pois é próprio da humanidade o ter mãe). 7) A questão é que Agostinho não toca na consideração a respeito da linguagem que convém ao concreto (neste tema específico, ou seja, ele não chega a utilizar o termo "Mater Dei") em toda obra sua que pode ser verdadeiramente creditada a ele de forma direta9, muito embora outras afirmações dão conta de que Agostinho não é contra Éfeso.
    E aqui fica a razão pela qual eu escrevi esse texto: a razão foi conceder de forma generosa de pronto que os mais evangelicais não podem ser considerados nestorianos porque tem reservas quanto ao termo "Mãe de Deus". Eles muito bem podem considerar - como o fazem no mais das vezes - a questão analítica e abstratamente (considerando a natureza de Deus em si mesma), mas não no concreto. Mas é óbvio que em uma consideração mais global, levando em conta o concreto da encarnação e sua consequência em sentido amplo, não se pode negar que Maria é mãe de Deus, assim como não se pode negar que "Deus tem sangue", como afirma a Escritura Sagrada (At 20.28).
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[1] AGOSTINHO. A Fé e o Símbolo. IV.9. Coleção Patrística, Vol 34. Ed. Paulus, São Paulo-SP, 2018, 2ª reimp. p. 41.
[2] Idem. Comentário ao Evangelho de João e Apocalipse, Tomo I. Ed. Cultor de Livros, São Paulo-SP, 2017. p. 165-167.
[7] WEGNER. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia. Ed. SINODAL/EST. São Leopoldo-RS. 8ª Edição, 2016. p. 47-52.
[9] Os textos em que mais há uma proximidade disso que já li são dois: 1) O "Virgindade Consagrada" (Coleção Patrística, Vol. 16. Paulus, São Paulo-SP, 1ª ed. 2000. V.6. e VI.6. p. 105, 106.), onde Agostinho afirmar que Maria é mãe da Igreja, segundo o espírito, porque gerou os "membros do corpo de Cristo" do qual fazemos parte, mas sendo "mãe da divina cabeça segundo a carne"; 2) No tratado VIII.9 do Evangelho de João (conf. a nota 2. p. 166), Agostinho diz que "Antes que Deus criasse aquela de quem ele havia de nascer enquanto homem, já a conheceu como mãe", e isso em virtude da encarnação como um futurível certo segundo a ciência de visão - visualizando a encarnação que Deus considerou evento certo, antes da criação de todas as coisas.

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