sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Em Defesa da Substituição Penal; Ou: Do Pecado Original à Expiação na Cruz

    As ideias exóticas do rev. Gyordano geralmente me chegam por terceiros. E sim, eu comento algumas posições dele em grupos que administro. Mas essa última merece uma resposta pública e direta.

    Na última intervenção luminosa da sua parte ele afirmou o reducionismo no qual sempre fincou o seu pé, ou seja, de que "punir um inocente é injusto". Quem não concorda com isso? Mas a questão é mais profunda e complexa do que essa banalização metódica dele que busca tirar TODAS AS VEZES a inteligência do argumento da teologia da substituição penal, teologia que é mais profunda do que ele quer dar a entender com sua cruzada panfletária. Entendam: o Gyordano não quer refutar um argumento - caso contrário ele trataria de todos os pontos fundamentais dessa doutrina -, ele quer destruir uma posição.

    Mas comecemos pelo começo: A ideia de "imputação" não é meramente um abstratismo absurdo, como o reducionismo do Gyordano quer dar a entender, implicando que na teologia da expiação dos reformadores é afirmado que Deus quer meramente matar um inocente aleatório para se satisfazer. E isso é importante porque ele nega qualquer forma de imputação (atribuição extrínseca), seja da justiça de Cristo ao seu corpo - a Igreja -, no que diz respeito à justificação, seja a imputação da culpa - quer quando nos referimos ao pecado original, quer quando nos referimos à imputação da culpa do pecado a Cristo.

    É bem verdade que ele concebe como injusta a noção de imputação do pecado de Adão à raça toda. Ele, que ironicamente se apresenta como agostiniano, diz que não a culpa, mas sim a condenação de Adão que é atribuída à raça - como se fosse lógica e evidente a afirmação de que Deus aplica uma sentença condenatória a quem não possui culpa alguma. Condenar alguém sem culpa, isso sim é injustiça.

    Mas voltemos aos argumentos postulados pelos reformadores sobre a imputação da culpa. Primeiramente é necessário compreender se qualquer forma de imputação é negada, seja na Escritura, seja pela igreja. A resposta é não. Agostinho costumava se referir à expressão Paulina de que "pelo pecado de um só" a condenação veio sobre todos, inclusive daqueles que não pecaram como Adão, prefigurando aquele que haveria de vir (Rm 5.12). Mas por que que a imputação ocorre? É simples: porque há uma ligação fundamental entre Adão e a raça, da mesma forma que há uma ligação fundamental entre Cristo e o seu corpo como o segundo Adão.    

    Note que o argumento paulino é de que a morte (salário do pecado), que é a figura sensível da condenação nesse contexto, é passada à raça, não simplesmente por imitação, ou seja, todos contraímos a pena, até mesmo aqueles que não pecaram à semelhança de Adão, imitando sua transgressão fundamental. Diz Paulo que o julgamento (κρίµαkríma) derivou "de uma só ofensa para a condenação" (ἐξ ἑνὸς εἰς κατάκριµαex enos eis katakrima). Excluídos estão os pecados atuais se o juízo vem de uma só ofensa e não de muitas (ponlōn). E isso é importante por causa dos neonatos (bebês), pois estes não são capazes de pecados atuais (que unem a vontade e a consciência no ato pecaminoso), não obstante a isso, todos eles nascem sob o sinal do juízo condenatório que vem "de uma só ofensa".

    Estabelecido isso, é fácil entender a razão pela qual o juízo de que a imputação flui da Escritura não é um exotismo dos reformadores. Antes é uma exigência da Escritura reconhecida também pela igreja ao longo dos séculos (Agostinho, e mesmo Trento parte de uma noção de imputação da culpa em relação ao pecado original à raça). Mas a beleza da teologia da expiação paulina e reformadora é que a obra de Cristo é visualizada a partir de um contra-golpe em relação ao pecado original. A culpa ser atribuída a Cristo - como já afirmava Crisóstomo também - se relaciona de forma fundamental com o primeiro pecado. Não por acaso Cristo é chamado de "Novo Adão", pois ele é o cabeça da nova criação (a Igreja), assim como Adão é o cabeça da antiga Criação.

    Estabelecido esse entendimento é fácil compreender a razão pela qual a Cruz de Cristo se relaciona ao pecado fundamental que arruinou o gênero humano, pois Cristo inverte a obra de Adão, pois se o pecado de Adão é imputado sobre todos (na velha criação), Cristo absorve justamente essa condenação em seu corpo (pois ele é aquele que recebe a condenação sem o pecado Rm 5.14), e atribui - imputa - sua justiça a todo o seu corpo (a Nova Criação). Se o pecado original é atribuído à raça por termos uma ligação de origem com o primeiro homem (Adão significa "humanidade"), na nossa ligação com Cristo (pela fé e pelo batismo) isso é revertido, e é sua justiça que nos é imputada, não o pecado que Cristo não tem, e que não tendo pecado que é seu, em si ele destrói o pecado que é nosso.

    Cristo é inocente, mas em nosso favor recebe a nossa culpa e a nossa pena para reverter a marcha destrutiva provocada pelo pecado original.

    A resposta bíblica, paulina e reformadora é aquela que faz mais justiça ao tema do pecado original e dos pecados atuais, e isso de forma mais ampla e abrangente do que qualquer outra tagarelice teológica concorrente.

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