quinta-feira, 24 de abril de 2014

A Cultura Como Atualização e Destruição das Potências

   Não raro a palavra "potencialidade" chega aos nossos ouvidos. Frente a ela não podemos ter distanciados de nós a compreensão humanista que ela trás com a sua carga de significação, justamente porque com isso é impossível uma compreensão fatalista do ser humano, assim como se torna impossível o afogamento de quem quer que seja no mar das contingencialidades: a potencialidade é uma característica da própria humanidade.

    A sociedade moderna pode até mesmo afirmar isso ou aquilo sobre os potenciais humanos, no entanto, pelo fato de ela ter expulsado a metafísica de seu círculo de pensamento, jamais ela pode ter por justificada, com base nas suas categorias, o significado real de potencialidade tal como ela se encontrava patente na compreensão que guiou a maior parte da sociedade até o início do século XVIII, quando as ciências modernas foram, ao poucos, assumindo irresistivelmente o posto de grande intérprete da realidade, até a sua aceitação majoritária por parte da mentalidade política, científica e filosófica no século XX.

   É certo que ideias como a "unidade da humanidade" e "educação", não podem, jamais, serem justificadas diante da expulsão da metafísica como uma legítima categoria do pensamento humano (nunca, na verdade, se deu uma "expulsão" total dela). Mesmo a ideia de "sentido" não faz nenhuma sentido diante disso, pois carece de bases para a sua validação e fundamentação. Também compreensões com respeito a ideias de justiça, do belo, do bem ou do mau, e até mesmo a objetividade são destruídos com esta expulsão, o que cria ideias como "construção social do pensamento", que, se forem analisadas com mais atenção, carecem de substância para a sua sobrevivência no meio cultural - também vale ressaltar que com isso não se nega a "regionalidade" da cultura e mesmo a multiplicidade de manifestações culturais, pois a multiplicidade é um dado do qual não se pode escapar, mas o mesmo ocorre com a compreensão de que seres humanos são integrantes da própria existência humana (um dado universal), assim como a necessidade de algo que anteceda a experiência (como a mente), cujas leis possíveis nesse algo são necessárias para a compreensão das formas reais do mundo (como os dados matemáticos no espírito humano e na própria realidade), assim como a nossa orientação nele.

   Bem, o que se afirma aqui, no entanto, é que a humanidade possui uma "potência" inalienável no seu ser, e que a mesma é o fundamento de toda espécie de realização humana no âmbito da história. E tal como a potência é, a mesma se atualiza como ato, pois qualquer ato humano transita, antes de sua percepção como fenômeno no campo histórico, no campo do possível, e este está para além de ser vislumbrado historicamente, a não ser que seja antecipado por meio de uma abstração ou prolepse (uma "queda antecipada") na consciência pessoal. 

  Podemos exemplificar isso comparando a potência como uma teoria ou um plano quando são formulados. Antes de sua execução, tal teoria ou plano se encontram em estado de potência, mas quando eles são executados passarão a ser atualizados na história como ato puro. 

  Para compreender melhor a afirmação que aqui se faz, podemos dizer que a humanidade possui um "plano" no seu interior e que o mesmo não pode ser anulado, e que isso mesmo é uma das características essenciais da própria humanidade - como já mostrado na necessidade das formas no espírito para a compreensão, por exemplo, dos dados matemáticos.

  Tal como isso é, todas as culturas devem, por assim dizer, resultar justamente de algo interior no ser humano; ou seja: uma estrutura - como afirmou o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. A cultura é, por isso, o resultado das atuações individuais ou coletivas ao longo do tempo, e todas as realizações que passam por este processo maravilhoso da passagem do "ideal" para o "existencial", da mente para a história. Ainda que não se considere neste texto os vários pontos da discussão que surgem desta "passagem" do campo das ideias para o campo propriamente dito da história - o que é alvo de investigação filosófica há milênios, como em Platão, Aristóteles, Agostinho, Anselmo, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, Melanchton, Lebniz, Kant, Hegel, Schelling, Nietszche, Husserl, Lavelle, Barth, Tillich etc. -, não se pode deixar de refletir sobre este campo inesgotável de investigações. Mas por hora, basta compreender que a cultura é o resultado, também, das atualizações das potências humanas na história. 

   Se os olhos humanos e o seu espírito fossem agudos o suficiente para perceber isso, certamente que uma análise mais completa da própria vida e cultura não seria algo como um mistério esotérico, mas seria algo patente no próprio modo de ser das coisas - isento de ideologia e capaz de enxergar sem entorpecimento a própria história como tal. 

    ***

   Podemos prosseguir com a pergunta: é possível compreender a história como o campo da efetivação plena das potências? Não é possível isso quando se trata das configurações da existência humana. No entanto, é possível enxergar as coisas, também, à luz da corrupção da atualização da potência humana, como, de fato, se tem visto em na expressão "inteligência a serviço do mal" ou mesmo na noção de pecado. 

   Aqui sigo as pisadas da teologia cristã, assim como em Agostinho, quando no livro "O Livre Arbítrio" ele disserta sobre a ideia do mal e da corrupção histórica como resultado da inefetividade do livre arbítrio, o qual existe apenas em estado de potência, mas que não pode ser atualizada de maneira completa e total. 

   Com isso falamos da existência da própria corrupção, atuante como um processo não lógico (no sentido da não contradição), mas como uma lógica do poder pelo próprio poder, afim de afirmar a si mesma de maneira irresistível, impondo a sua própria condição no âmbito da realidade não somente histórica, mas também na realidade total como uma substituta do logos.

   Esse é um fato sinistro que tende ir em direção à um mal absoluto, à uma treva eterna que poderíamos chamar de "corrupção total" ou mesmo de "condenação", de onde o caminho de afastamento total das configurações do real é algo irreversível. 

   No âmbito das possibilidades totais, a possibilidade da irreversibilidade do caminho de afastamento da configuração do real (do qual os estados clínicos de loucura e paranoia são analogias) sempre foi algo patente na consciência humana como uma ameaça de segregação da mesma, de maneira que isso justificou noções como o bem e o mal, assim como, por outro lado, fundamentou a própria noção de ética pessoal e coletiva, assim como a noção de responsabilidade para com o outro. Nos ensinos cristãos sobre a condenação, o mal absoluto é fortemente enfatizado, o que acabou por fornecer energias suficientes para que fosse possível a compreensão antecipada dos resultados do rompimento absoluto da unidade do real, da busca pela verdade ou do o amor e Deus.

   A corrupção da potência é, por sua vez, a corrupção da cultura humana tanto pessoal como coletiva. Pode-se também averiguar que o grau de realização humana sempre está relacionado com um poder de exteriorização máxima dos potenciais espirituais e racionais atualizados no mundo concreto.

   No entanto, quando dizemos algo sobre a corrupção humana, falamos efetivamente das enormes deficiências que há nas possibilidades da atualização das potências. Esse distanciamento da possibilidade de efetuação da potência em ato é a causa das angústias, dos desencontros, assim como é a causa primeira das revoltas, das catástrofes, dos desentendimentos, das intrigas assim como da morte.

   Aqui, frente a esta tese, podemos fazer algumas ponderações que diferenciam o mal efetivo da deficiência da atualização das potências, o que não da margem, em definitivo, à ideia de que as limitações e a atuação má de fato se encontram em um mesmo patamar. Por questões éticas é necessário traçar uma distinção entre uma coisa e outra. 

   1º) A questão relacionada à deficiência de atualização das potências é, necessariamente, a ideia de que o ser humano não pode gozar plenamente da perfeição para a qual se acha orientado ainda nesta vida. A tendência humana no campo da história para as coisas que são eternas traça a situação histórica na qual o homem se encontra. A ideia cristã de pecado é exata quando ela procura definir a situação humana na história, também. Os insigths fornecidos por isso são verdadeiros e justos. A frustração, uma tendência às vezes irresistível para o erro, assim como inescapabilidade do vacilo frente à situações históricas que pedem firmeza de espírito, assim como a ausência de forças para prosseguir demarcam a situação existencial do ser humano. Contra isso não se pode lutar, pois é semelhante à uma força que impera irresistivelmente sobre nós e sobre a qual não podemos nos ver livres sem uma ex-soteria (uma salvação que vem do lado de fora), um auxílio e uma ajuda. 

   Com isso podemos ver as várias dificuldades, assim como elementos irreconciliáveis na cultura que, por sua vez, buscam impor-se por meio de sua própria força. Por isso é que, também, podemos ver uma determinada pulsão erótica querendo se instalar irresistivelmente no campo da própria realidade. Também é por isso que vemos a ira e o ódio se assenhorando dos nossos pensamentos, fazendo uma pressão brutal sobre nós. Aqui o problema maior não é tanto o sofrer tais assédios, assim como, em certo grau, aceitar suas sugestões, mas sim a tendência de institucionaliza-los como forças legítimas no campo da cultura; e é sobre isso que passamos a falar agora. 

   2º) A questão sobre a institucionalização das forças da destruição como instituições legítimas no campo da cultura é um campo profundamente rico e que serve como uma das fontes mais fecundas de reflexão da atualidade. Reflexões filosóficas atuais, como as feitas por Olavo de Carvalho, assim como foi feito por Erich Voegelin são sintomas disso. Na verdade, esse traço é um dos temas que nunca sairá de cena, a não ser após o juízo final, por assim dizer.

   Podemos dizer que essa institucionalização destas forças da destruição é resultante da desistência humana de resistir a estas forças, o que resulta em uma aliança consciente ou não com elas e, com isso, na transformação das mesmas e forças, por meio de uma adequação das mesmas no campo das ações pessoais e coletivas, em forças de sentido, instituições, assim como na acomodação dos significados resultantes dos sentidos erigidos por estas forças em símbolos culturais, que uma vez chancelados por grupos ou indivíduos, colocam em marcha poderes de destruição para o meio cultural humano, sendo até mesmo patenteados por esses, como é o caso do Nacional Socialismo alemão ou o Comunismo Soviético.

   Não é possível, neste sentido, entender pecados isolados como a cólera, a lascívia, a glutonaria, a cobiça etc como causadores, por si, de instituições monstruosas como estas a cima; no entanto o chancelamento e a institucionalização dos mesmos, e a transformação delas em forças políticas é aquilo que podemos chamar de pecado contra o Espírito, ou seja: o pecado contra a estrutura do real, pois tais empreendimentos não apenas são resultantes do sofrimento pessoal por essas forças, mas sim a busca da legitimação das mesmas como forças históricas e até mesmo eternas. Não há um erro mais imperdoável do que a resistência sistemática para com a verdade. E justamente foi esse erro que estava ameaçando com a condenação os fariseus, como disse o Senhor Jesus Cristo. No caso, não vemos apenas a deficiência da atualização das potências, mas a busca pela legitimação da mesma deficiência como a estrutura própria realidade, o que, por si, é uma distorção e um falseamento da própria realidade e um atentado contra o Espírito.

    A imposição de um novo logos é uma das maiores ameaças que se pode sofrer quando, na verdade, sempre pertenceremos a apenas um logos. Quando uma interpretação da realidade busca se estabelecer como ela própria, em todas as suas estruturas e limitações e em detrimento da noção de infinito em sua dignidade real, ela busca substituir qualquer outra interpretação possível da realidade por uma visão temporal e terrestrializada, sacrificando tudo aquilo que existe em favor da sua legitimação. Os limites, em favor mesmo da realidade, devem ser respeitados afim de que a realidade, por si mesma, possa se mostrar ao mundo e ao homem tal como ela é, e mesmo um discurso sobre a realidade deve, por obrigação, dar todas as margens para isso. As vezes, não há maior desserviço para com a verdade do que buscar explicá-la; e não há maior crime do que buscar inventá-la e não obedecê-la tal como ela se mostra no espírito humano. No entanto, peca também aquele que não busca compreende-la bem.

***

   As contradições culturais são resultantes do ato humano no âmbito da realidade que externa aquilo que se encontra no seu interior. Isso pode se dar tanto de maneira pessoal assim como coletiva. Também, as relações entre potência e ato são decisivos para compreender a realidade, sendo considerada aqui tanto as realizações assim como as limitações que são passíveis de compreensão justamente porque há uma unidade do real presente no espirito humano e que justifica tal compreensão.

  É necessário, no entanto, uma investigação mais profunda para compreender mais precisamente que a cultura humana não existe apenas como atualização das potências humanas, mas como também, consciente ou inconscientemente, na tentativa de destruição das potências latentes no ser humano que é também ator nesta empreita. A destruição ativa, assim como a auto-destruição é um processo complexo que surge no intento de estabelecer uma realidade paralela à aquela que definitivamente se encontra já inscrita na alma e na realidade e que define o ser humano e o seu caminho como tal. Todas as tentativas de invenção da realidade, que não acordada com a estrutura da mesma surge apenas com uma inocente mas perigosa intenção de se por acima daquilo que podemos chamar de Ordem - o qual é intuído nas várias tentativas religiosas de inúmeros povos de se manter reconciliado com poderes que estão à cima de sua capacidade de manipulação e que, por sua vez, podem atuar mantendo a vida ou destruindo-a.

   Neste sentido, é certa e mais do que legítima as marcas da tradição religiosa, ou de qualquer outro ensino que busque sempre relembrar o ser humano da existência do incondicionado, do a-temporal, assim como dos caminhos superiores à ordem visível das coisas que, em tudo, buscam sustentar e fornecer energias possíveis para o embasamento da realidade, da cultura e da alma humana por meio de um determinado logos, ou uma ratio que, uma vez conhecida, é ela própria o poder de significação e sustentação de tudo aquilo que se vê, se vive e daquilo que esperançosamente se espera. Com isso podemos falar, no meio cultural, do maior segredo do cristianismo: a atualização das potências divinas no ser humano e na história através do logos Jesus Cristo, contra a destruição do homem por meio dos poderes demoníacos do caos. Esse sim é um verdadeiro símbolo cultural. 

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