sábado, 19 de abril de 2014

Ascese

   Na compreensão clássica a ascese significa uma disciplina pessoal, que leva um indivíduo à um apartamento da vida ordinária, afim de que esse possa concretizar uma consagração da vida física e espiritual à uma esfera superior da realidade conhecida, culminando assim na supressão das paixões caóticas da alma que confundem o verdadeiro contemplar de ordem transcendente que, em si, contém a significação plena e completa de todas as coisas, assim como a resposta para a situação histórica na qual nos encontramos.

     A rigorosa aplicação dessa ascese foi sentida na vida cristã desde os seus primórdios, dando origem à mística que, em todas as vertentes do cristianismo, se faz presente de maneira indelével na fundamentação moral, nas sínteses teológicas, na visão de mundo, na visão de civilização e na visão a realidade pessoal frente à existência absoluta de Deus.

   O rigor ascético é o princípio primeiro de toda e qualquer espécie de tarefa de compreensão de mundo, pois frente ao mundo estamos todos nós com a tarefa que nos é imposta de nos orientar no interior desta realidade. Isso não se faz de qualquer maneira, visto que da compreensão adequada do mundo depende a nossa vida e a vida daqueles que amamos e daqueles com os quais convivemos. A consciência de dever absoluto de responder às necessidades da vida, só é possível para aqueles que nutrem uma reverência profunda para com a vida, assim como para aqueles que são despertos para a contemplação de um dever que se encontra presente em si mesmo, e isso sem nenhuma justificativa possível, a não ser o próprio fato de que ele se encontra aí. É um dado do qual não se pode fugir, e isso seria semelhante à uma tarefa impossível, como fugir da própria sombra.

   O tribunal superior da consciência é aquele que, nos levando a reverenciar a vida, nos leva, também, ao abandono de tudo aquilo que não cumpra com o rigor imposto, incondicionalmente, pelo dever que nos toca e que, em consequência disso, busca trazer à luz uma resposta à altura contra tudo aquilo que ameaça a vida, seja a compreensão fútil da existência, o desejo de poder pelo poder etc. Tal intuição da realidade é o fundamento das mais variadas religiões do mundo, assim como é ela mesma o fundamento de toda e qualquer espécie de cultura, assim como de qualquer civilização humana, suas leis, constituições, doutrinas jurídicas, escolas etc. Toda e qualquer espécie de instituição humana legítima é fundamentada na questão da necessidade de manutenção, assim como da preservação da vida, e qualquer temor reverencial à vida leva o ser humano que para essa verdade é conquistado a abandonar todo devaneio passageiro no qual não se pode apoiar a vida, e isso afim de que ele próprio não seja vitimado pelo poder assombroso do caos.

   Aquele que assim se propõe, docilmente, reverentemente, humildemente a compreender as questões relativas aos problemas que atingem o seu mundo, sofrendo a dor do apartamento, da solidão e da abstração (afastamento) do mundo ordinário (ou seja: comum), para que, contemplando-o, enxergue em meio ao caos a Luz que a tudo significa, não está somente se entregando à produção de uma verborragia frívola e procurando com isso os foco alheio para si mesmo, mas, em busca de elevar um pouco as condições humanas por meio do partejar de uma pequeníssima fagulha de luz que traga um pouco de claridade para o outro, ele se encontra, com este movimento de ascese, também elevando-se a si mesmo.

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