sábado, 15 de novembro de 2014

A Divisa do Mundo

   


   A ação humana é algo que não prescinde - lógico - do ser humano. Sendo assim, é impossível que tal ação não seja, de alto a baixo, algo integral, envolvendo a totalidade do indivíduo. As ações diferenciam-se em qualidade, intensidade, localidade e autoria, mas, acima de tudo, trata-se de uma ação humana no mundo. 

   Começo o texto com esta breve explicação para seguir discorrendo sobre um assunto um tanto cinzento, informe, mas que é de fundamental importância - principalmente nos dias de hoje. Esse assunto é a relação entre religião e política. 

***

  A religião - e isto comprova a história - foi, e ainda é, a principal matriz civilizacional. Isso ocorre porque uma sociedade, por princípio, tem a necessidade de ordem e  valores. Ela, por tanto, demanda metafísica: princípios estruturais universais e permanentes que asseguram uma razão e sentido para todas as coisas. Tais princípios devem fundamentar o sentido da existência e as relações sociais; a vida individual e coletiva. A metafísica, por tanto, retira o homem do estado de animalidade; é a possibilidade do triunfo da razão e do sentido sobre o caos; nos retira da agonizante ideia da vitória do bem sobre o mal; faz a vida andar. 

   A religião existe por causa do mundo metafísico - o mundo do espírito -, pois crê ela que é no mundo do espírito que se encontra a verdade. O primeiro grande mandamento ensinado por Jesus Cristo exige um amor total por Deus - aquele que, segundo ele, é espírito (Jo 4:24). Se lermos na bíblia algo sobre a razão do triunfo humano, ela, totalmente, estará ligada a Deus. Ele, vemos, é o grande vitorioso sobre o Caos, sobre a Morte e sobre os demônios. Ele constitui o sentido da superação; a razão da vida e da continuidade dela; ele é o grande sentido que permite o homem não definhar em meio à hostilidade do mundo. Mas, também, Deus é aquele que pode ser a razão da hostilidade do mundo. Ali, no contexto da hostilidade, Deus ainda ordena marchar e viver. Que diga Jó.  

   A busca pela compreensão das coisas - essa infatigável "pulsão" que condena o homem a tentar compreender tudo -, só pode ter sentido se de fato há sentido - se há espírito. Nisso se sobressaem as religiões justamente porque, por exemplo, não há uma matriz para a construção de sentidos no mundo e de moral mais potente. O mito fundador do cristianismo (que, sob hipótese alguma, pode ser compreendido como mentira) - a bíblia -, traz em si elementos tão potentes para a construção do caráter do indivíduo, orientando-o para a vida, que a veracidade de sua "metafísica" é evidente quando olhamos, no mundo ocidental, por exemplo, a instituição do casamento monogâmico, sem contar o nome de cidades e, como observou Nietzsche no seu livro "Além do Bem e do Mal", o rigor científico e filosófico que, em seus primórdios, era uma demanda fundamentada na veracidade de Deus (no caso da filosofia), e, por causa desta veracidade, por ele ser o Criador do Mundo (não poderia, por isso, criar uma mentira, nem algo inteligível ou ilógico): a "maldição" da teologia está inalienavelmente fixa em nosso tecido cultural.

***

     Com base nisso, podemos continuar compreendendo a unidade da ação humana no mundo - por tanto, quando existe e age, o homem somente pode fazer estas coisas como um todo, e não em parte. 

   A criação da divisão entre o Estado e a Igreja foi algo defendido ferozmente por Lutero, que se sentia escandalizado com o fato de que o Papa gozasse de tanto poder temporal, se servindo de exércitos, ordenando campanhas militares, ao invés de atuar no campo apenas espiritual (cultural, como compreendo). 

   No entanto, esta interpenetração entre política e religião nunca deixou de existir com o próprio Lutero, pois o seu poder de ação se estendia diretamente aos negócios do Eleitor Frederico III. Tanto era assim, que se lermos nos prefácio dos seus escritos, veremos que geralmente eles são dedicados ao príncipe. Também a sua influência foi determinante na batalha contra a revolta dos camponeses quiliastas, o que nos leva a compreender que esta cisão absoluta, não fora ideia de Lutero. O que Lutero desejava, no entanto, é que os sacerdotes, incluindo o Papa, se desse mais ao pastoreio das almas, do que o envolvimento direto com as guerras como generais e capitães, por exemplo, ou como monarcas (no caso do Papa) - mas vemos que no caso da guerra, isso foi algo impossível com o próprio Lutero. 

   Seguindo no contexto da Reforma, um dos movimentos oriundos daí que por motivos de existência mais lutou contra a ingerência do estado na vida individual, e que tanto aclamou a separação entre Igreja e Estado por causa daquilo que entendemos por "liberdade de consciência", foi o movimento conhecido como anabatista. 

   A razão - novamente teológica, vejam! - de existência deste movimento estava ancorada na tentativa de formar uma Igreja realmente composta por indivíduos convertidos e cientes de sua fé em Jesus Cristo. Na Inglaterra, que viu os primeiros frutos mais abundantes deste movimento, mesclado a princípios calvinistas, eles seriam conhecidos como os "Puritanos". A ideia dos puritanos estava embasada em um repúdio à qualquer Igreja estatal. Segundo eles, a Igreja não deveria ser obrigada a conviver com indivíduos não convertidos que estariam ligados a ela somente por motivos de nascimento ou nacionalidade. É daí que surge, também, um dos motivos para a rejeição integral do batismo infantil: um recém nascido não poderia fazer uma profissão de fé fundada na consciência pessoal. Vemos nesta teologia, também, a razão da rejeição radical ao catolicismo, ao presbiterianismo e ao luteranismo. 

   Se seria possível esta Igreja "pura", aí é que o meu ceticismo pesa. Mas filosofias a parte, no momento é importante compreender - justamente por que o grosso do movimento evangélico no Brasil tem uma profunda raiz neste movimento puritano -, que o motivo fundamental para a existência desta ideia de separação entre Igreja e Estado está, aqui, ancorada no desejo de desligamento da igreja estatal da Inglaterra: a Igreja Episcopal Anglicana. Também por isso, esta evidenciado o desejo de liberdade de consciência com o intuito de tornar mais claro o engajamento na fé. No entanto, como podemos perceber, tal movimento que desejava despolitizar a Igreja, foi um movimento político que repercutiu poderosamente na cultura, colocando a liberdade individual acima de muita coisa - mas não vamos tratar disso agora. 

***

   Contudo - voltando para a filosofia -, seria possível compreender esta "despolitização" como algo apolítico? Materialmente este negócio é impossível, pois a política é tudo aquilo que é relacionado à pólis (cidade), segundo Aristóteles, e, por tanto, para as relações humanas; e, nesse sentido, se uma ação humana é por princípio uma ação histórica que se relaciona ao homem, a fé individual, assim como qualquer outra coisa neste mundo, não pode ser tão isolada e apolítica assim. Mesmo a privacidade é um assunto público, se, de fato, devemos respeitá-la. Nada há que não seja absolutamente apolítico - mas é sério quando tudo vira política, no sentido de começar por ela e não pelas pessoas. Compreendamos, por tanto, que a política é um produto final, e que se inicia no plano do espírito humano.  

   Com isso, nos encontramos com o ser humano histórico, com a sua consciência individual e seu universo de valores a orientá-lo no mundo. Nos encontramos com o indivíduo cristão que, com toda a sua desmundanização, ainda continua a ser histórico, ainda que viva a sua vida ascética no deserto ou em um mosteiro. Temos também os ascéticos intra-mundanos (como dizia Max Weber com respeito aos protestantes), com toda a sua ideia de desvinculação entre Igreja e Estado. Tudo bem! Mas convenhamos: culturalmente, tal pensamento aistoricista (um neologismo) é simplesmente um sonho. Por mais irrelevante que seja, o indivíduo religioso é um germe no universo, traz em sua consciência uma visão de mundo e passa a outros. Se orienta por essa visão - assim se espera, pelo menos. E sabemos que qualquer visão de mundo deseja, a princípio, ser universal. Deseja reproduzir, convencer, transformar. Pois bem, temos diante dos cristãos o texto bíblico, aquele que afirmamos mais acima que é o portador de um potente mito fundador. Ele - e isso é evidente -, traz um germe civilizacional ímpar, grave, pesado mesmo. Como seria o mundo e nós mesmos indiferentes a isso?

   Por tanto, podemos concluir que o religioso e o religioso cristão com sua existência são coisas determinantemente políticas, e assim seria mesmo se eles não quisessem. Isso - é óbvio! -, para o cristão, traz à luz a sua responsabilidade no mundo, pois seu compromisso com Deus, por Cristo, assim é um compromisso encarnado, histórico, impassível à indiferença. Tal vez, no lado cristão, esse desejo de separação entre a vida religiosa e a vida pública tenha o cheiro do docetismo, da negação da encarnação, da negação das responsabilidades históricas. Claro, não iremos transfigurar o mundo, não impediremos ninguém do usufruto de sua liberdade - por mais que as decisões com base nesta liberdade sejam desastrosas, para nós -, mas não precisamos, também, desse cúmulo de humildade. A nossa consciência - ou alma - é a divisa do mundo, é ali que nossa vida acontece. É ali que, para nós, tudo começa. É ali que opera, primeiro, a nossa fé; e como sabemos, a fé abala radicalmente o mundo.      

Nenhum comentário:

Postar um comentário