domingo, 9 de novembro de 2014

Idealização do Homem: O Projeto da Morte

   

   Perguntar sobre o que seria, de fato, o homem, é se lançar, ao mesmo tempo, diante de uma resposta extremamente aberta: não existem dados empíricos para descrever quem seria o homem e o que seria, de fato, o ideal "homem" em toda a sua dimensão e profundidade. 

   Já a subjetividade, a liberdade, a criatividade, o poder de decisão, e a participação no universo moral, dão ao homem uma dimensão abissal, que, em última instância, só pode ser percebida por meio da participação pessoal, sendo que jamais pode esta dimensão eterna ser domada por um processo legal e educacional. Nem mesmo a caracterização do homem na bíblia como "imagem e semelhança de Deus" (Gn 1:27) pode responder a dúvida de quem seria o homem, mas, pelo contrário, amplia-a infinitamente. 



   Com isso, podemos considerar algo interessante: não há messianismos humanos com poder de levar cada indivíduo à um destino perfeito por via da força da lei, da ciência, da religião ou da conscientização: isso, em si, seria uma brutalidade imensurável, assim como um otimismo megalomânico para com a capacidade humana de planejar e colocar em marcha tal "plano messiânico". É necessário compreender que sempre haverá uma margem de absurdo incontrolável que, por causa da sensatez, devemos suportar. 



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   Estas questões acima podem suscitar algumas questões em nossas mentes como a da legitimidade das leis, dos códigos sociais, das religiões ou da visão de mundo que alguma pessoa emprega como meio de compreender a realidade e orientar suas decisões em meio a elas. Poderíamos, com isso, legitimar uma determinada ideia relativista, dando consistência para a compreensão de um Mundo anômico, mas não é o caso. 



   A questão da cultura é infinitamente mais ampla e complexa do que imaginamos. O psicanalisa Carl Gustav Jung, em seu livor "O Homem e Seus Símbolos", deu uma explicação à existência dos símbolos que também se aplica à cultura. Para ele, os símbolos não nascem pela simples vontade dos homens (ou por imposição de narrativas, como explicariam os franceses), mas tem haver com uma relação entre o homem e a natureza, entre a dimensão psíquica e a realidade. Neste sentido, voltando para a cultura, a estrutura da própria realidade e eventos históricos experienciados por homens, geraram leis e instituições afim de que por meio delas a sobrevivência fosse algo possível. A criação de tabus sexuais, por exemplo, como explica o sociólogo Claude Lévi-Strauss, foram essenciais para o estabelecimento da ordem social, e, por isso, para a sobrevivência da minoria das minorias: o indivíduo humano. 



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   Todo isso descrito acima, já afasta escandalosamente o processo de formação de uma determinada cultura da ideia da capacidade de idealização do ser humano. Essa idealização do humano tem as suas raízes já no renascentismo, que foi um movimento responsável pela criação de um determinado otimismo na capacidade da razão humana. Vale lembrar que este movimento desembocou no Iluminismo francês, que, como sabemos, foi no fim das contas um dos mais violentos movimentos históricos, e tudo impulsionado por um "bem" que se chamava razão.



      Nascia, ao lado de tudo isso, a ciência moderna e o otimismo na mesma ciência trouxe uma cultura que estava fundada na crença da capacidade de descrição e explicação da realidade por meio do método científico, trazendo a mesma realidade à luz da razão cuja capacidade foi sendo concebida como infinita. Concebida, também, ao lado de tudo isso, foi a esperança em um mundo tecnocrático, e com isso, a esperança na capacidade da resolução completa dos problemas da humanidade. Tal concepção fora tão poderosa que um importante filósofo do século XIX chamado August Conte, idealizou uma religião plenamente racional, dando a entender o seu otimismo nesta mesma razão.        


   A fé na ciência - que foi dada como uma manifestação da neurose segundo Freud -, foi evidentemente forte no século XIX. Basta lembrar Hegel e a sua máxima: "tudo o que é real é racional, e tudo o que é racional é real". No entanto, basta lembrar a profecia de Adoux Huxley, que no seu livro "Admirável Mundo Novo" alerta sobre o perigo da tecnocracia e do cerceamento da liberdade que resultaria da fé na ciência, o que, aos poucos, com base na idealização do homem por parte da ciência, acabaria por eliminar o ser humano real para dar lugar ao ser humano ideal através de um projeto cada vez maior de engenharia social ou biológica, o que se deu de maneira cabal nos projetos socialistas do século XX. 

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   Com certeza, nada pode nos esclarecer de maneira mais formidável esta fé na ciência - que trouxe com sigo a idealização do homem - do que os dois maiores projetos de engenharia social do século XX: o Nazismo e o Comunismo. 

   Ambos, ao seu modo, foram projetos fundados em uma pretensa cientificidade: o Nazismo nas ciências biológicas, e o Comunismo em uma visão científica da História e das relações humanas. Para o Nazismo, a genética trouxe à luz a questão da superioridade da raça ariana. Já para o Comunismo Marxista, o materialismo-histórico-dialético "evidenciou" de maneira mais crua o processo histórico, eliminando qualquer viés metafísico, já que o marxismo estaria focado na única realidade concebível: a matéria: o elemento por excelência da ciência. Há, não por acaso, um livro de Lênin que explicaria a própria dinâmica biológica com base no materialismo-histórico-dialético. Por isso, o que bastaria seria uma aplicação desta filosofia para que fossem eliminadas todas as ilusões, mentiras (a religião, segundo o marxismo) e, com isso, viabilizando a implantação da justiça de maneira plena. 

   Não por acaso, toda a realidade foi elevada ao nível destas teorias nestes dois regimes, e tudo aquilo que era considerado mal, injusto e ameaçador para estas ideologias, foram sendo tratadas como elementos inimigos a serem eliminados de uma vez por todas. Temos aqui, por tanto, a reedição da estrutura iluminista e a eliminação de tudo aquilo que não era considerado "racional", "verídico", ou do "bem". 

   O que resultou de toda essa fé na ciência, ou na cientificidade de uma teoria que, no fundo, mais fora uma idealização do ser humano, do que a descrição da própria realidade? Sabemos disso: a efetivação de genocídios e a concretização dos dois regimes mais violentos que se tem conhecimento na história da humanidade. 

   Para compreendermos isso, basta, por exemplo, ver como seria aplicada uma sentença de Marx, que é essa: "De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade." Ora, como compreender, com as diferenças gritantes que há entre um ser humano e outro, o que seria, cientificamente, a capacidade e a necessidade do ser humano? Por outro lado, não estaríamos amputando o ser humano de sua liberdade, assim como de sua humanidade, na supressão deste desejo invencível que ele tem de se dar ao supérfluo e ao lúdico? Qual a razão da felicidade? Para que serve ela? Não cairíamos em um abismo de dúvidas caso queiramos descrever o supérfluo e a sua importância na vida do ser humano? E a individualidade? Há! ... "Para o diabo com a individualidade" ... diria um coletivista. Dá para compreender, por aqui, qual o tamanho da arrogância e do autoritarismo daqueles que, em nome do "bem" e da "justiça", procuram, de cima para baixo, impor uma visão de mundo que, no fundo, nada mais faria do que eliminar o ser humano existente - com todas as suas ambiguidades -, para dar lugar ao "homem novo", ao "ser humano ideal" etc. 

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   Esbarramos, por tanto, em alguns fatos fundamentais que hoje parecem muito perto de nós: vivemos em um período de fé na "educação redentora", na "política redentora", no "partido redentor", no "estado redentor" e na "concepção de mundo redentora", na "razão redentora" e na "ciência redentora". Nem mesmo o cristianismo pretende ser um projeto de redenção para o mundo, mas para fora dele (Jo 18:36); e quanto mais a concepção da graça redentora - característica no mundo medieval e no protestantismo - foi sendo transferida para a política ou para a ciência, e quanto mais teorias coletivistas foram sendo impostas em detrimento da individualidade e da consciência individual, mais fanatismo e alienação foram sendo criados, a ponto de se colocar tanta fé em uma concepção de "mundo melhor", que o mundo existente com as suas ambiguidades foi sendo satanizado, destruído, manietado e assim o ser humano - sempre aquém dos ideais - existente nele. 

   Com isso, podemos compreender que não há uma filosofia histórica mais realista do que aquela que imperou no mundo medieval, onde o mundo e o ser humano não eram compreendidos sob a ótica daquilo que deveriam, em perfeição, ser: eram compreendidos como um absurdo, uma transitoriedade, e que deles nada mais poderíamos esperar do que a imperfeição e a bondade ao lado da corrupção, sendo que o ponto de cura possível só poderia ser achado na graça de Deus: o Ser mais Inatingível, "Outro" (Kierkegaard) e idealizável da história da filosofia.

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