terça-feira, 6 de outubro de 2020

Pierre Hadot e a Filosofia Antiga como Disciplina Espiritual


    
Esse livro é realmente maravilhoso, e a razão disso é que ele explica que muito mais do que a atividade diletante a que muitos profissionais em filosofia transformam a filosofia, em sua origem a atividade filosófica era compreendida como uma atividade de conversão, de cuidado de si, de meditação, ou seja, como um exercício espiritual, e o diálogo do filósofo era compreendido como uma psicagogia, ou seja, a condução das almas em direção ao conhecimento de si, assim como à formação de um hábito no qual seria possível fugir das paixões e ilusões que destroem a vida, atingindo assim o bem da alma, a sua reta ordem e, como consequência, a verdade do mundo.

    Pierre Hadot nessa obra clássica esclareceu, para mim pelo menos, a razão pela qual muitos ascetas antigos, embora não sendo produtores de grandes obras filosóficas, eram mesmo assim chamados de filósofos. No livro "História Eclesiástica" de Eusébio de Cesaréia é relatado um grupo de monges que foram descritos como pessoas que levavam uma "vida filosófica" mediante jejuns, orações, disciplina etc. Lança luz sobre essa questão o fato de Orígenes de Alexandria (séc. II e III d.C.) desenvolver um ideal de vida que inspirou o monasticismo cristão. Levando uma vida de rigoroso estudo, orações e jejuns, Orígenes fundiu o ideal da vida cristã com a "vida filosófica", sendo o estudo para ele um dos exercícios espirituais pelos quais era possível uma elevação da mente a Deus.
    Salta aos olhos para quem conhece a literatura cristão antiga o grande tema da "purificação da mente e da contemplação de Deus", ou da "realidade inteligível eterna" mediante a superação de uma vida "enterrada nas paixões" por ter como finalidade última o meramente sensível. Em Justino de Roma, Atenágoras de Atenas, com Orígenes, Novaciano, Atanásio, Agostinho etc. o tema da mente que se torna apta à contemplação de Deus mediante a purificação e elevação do sensível ao inteligível é algo recorrente. Aqui é evidente o fato de que a unidade entre teoria (em seu sentido original de "contemplação") não está desvinculada da prática espiritual, mas é constitutiva e a meta mesma da disciplina, da pureza e da prática evangélica como um todo, assim como a condição mesmo dessa prática. Aqui a prática filosófica de vida ordenada e vencedora das paixões e unida à fé é uma verdadeira conversão que traça o itinerário do espírito e da mente em direção a Deus.

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