sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Parágrafos Contra a Idolatria: Citações do livro "Contra Celso" de Orígenes (185-254 d.C.)

    Neste pequeno artigo de citações eu irei proceder da seguinte maneira: Em primeiro lugar destacarei a citação de Orígenes e logo após irei, na medida das minhas forças, comentar a passagem citada. E para esclarecer, como está no título, todas as citações deste texto são tiradas da obra Contra Celso, que tem tradução pela editora Paulus e que é possível encontrar na internet. Também a forma da citação nas notas não indicará as páginas da edição da Paulus, mas sim a estrutura da divisão que podemos achar em edições internacionais, inserida também na própria edição da Paulus.

    Estas são as citações seguidas dos comentários:

    Citação:

    Se ele [Celso] julga certo que eles jamais tiveram valor por sua categoria ou número, pois não se encontra qualquer alusão à história dos judeus entre os gregos, eu responderei: se atentarmos para o seu regime inicial e as disposições de suas leis, veremos que foram homens que apresentavam na terra uma sobra da vida celeste. Entre eles, não havia nenhum outro deus a não ser o Deus supremo; nenhum artífice de imagem que tivesse direito de cidadania. Nenhum pintor, nenhum escultor tinha espaço em seu Estado, pois a lei bania todos os artífices desse gênero para eliminar qualquer ideia de fazer estátuas, prática que atrai os simples e desvia os olhos da alma para longe de Deus na direção da terra. Havia, pois, entre eles esta lei: "Não vos pervertais, fazendo para vós uma imagem esculpida em forma de um ídolo: uma figura de homem ou de mulher, figura de algum animal terrestre, de algum pássaro que voa no céu, de algum réptil que rasteja sobre o solo, ou figura de algum peixe que há nas águas que estão sob a terra" (Dt 4:16-18). A intenção da lei era encarar a realidade de cada ser, impedindo que fossem modeladas fora da verdade imagem que mentiam a respeito da verdade do homem e da realidade da mulher, da natureza, dos pássaros, dos animais, do gênero dos pássaros, dos répteis, dos peixes. E o motivo era venerável e sublime: "Levantando os olhos o céu e vendo o sol, a lua, as estrelas e todo o exército do céu, não te deixes seduzi-los para adorá-los ou servi-los!" (Dt 4:19)1. [...]

    Comentário: Orígenes segue aqui a tendência da escola de Alexandria, cujo representante mais notável é Clemente de Alexandria. A ideia aqui é que sendo Deus invisível, uma imagem seria corruptora do orgão espiritual pelo qual se vê a Deus. Não aleatoriamente ele diz que a intenção da lei de proibição da confecção de imagens era "encarar a realidade de cada ser". Nem é preciso dizer da influência platônica, não só de Orígenes, mas de vários pais ante-nicenos. Contudo,à primeira vista, a retrição de imagens parece seguir de Platão para o cristianismo; mas isso é errado, já que apologistas como Clemente, Justino e mesmo Orígenes seguiam a ideia de que Platão era um plagiário de Moisés - ideia comum nos apologistas. Mas para não ficar apenas nas minhas palavras, vou citar um trexo da República, uma das, senão a obra mais espiritualmente potente de Platão, onde ele explica arazão do banimento dos atesão e escultores da República: "Então concerne esse tipo de imitação [dos escultores e pintores] a algo que é o terceiro a partir da verdade, ou não é?" (602c), ou: "Isso, então, era sobre o que eu queria encontrar um consenso quando afirmei que a pintura e a imitação como um todo produzem obras que estão distantes da verdade [por ser o terceiro em relação à verdade], ou seja, que a imitação realmente se associa a um elemento [inferior] da nossa alma que se distancia da razão [parte superior da alma], e que o resultado desse relacionamento e amizade não é nem saudável, nem verdadeiro" (603a,b)2.

    Citação:

   Cada pessoa pode mostrar como aqueles que seguem tais guias caminham num caminho melhor e têm mais socorro nas dificuldades da vida do que os que, graças ao ensinamento de Jesus Cristo, disseram adeus a todas as imagens e estátuas, e mesmo a toda a superstição judaica, e que pelo Logos de Deus erguem seu olhar para o Deus único Pai do Logos3. [...]

    Comentário: Comentários assim são reiterados no Contra Celso de Orígenes. Alguns poderiam objetar que se trata de uma fala referente apenas ao paganismo, ou de uma condenação as imagens de deuses pagãos. O problema desse tipo de firmação é que Orígenes não oferece em nenhum momento em sua obra um receituário para o uso coreto de imagens físicas para a devoção. Toda a referência ao uso de imagens em sua obra tem um tom depreciativo, como ainda veremos mais abaixo.

    Citação:

Que homem sensato não riria daquele que, depois de tantas especulações filosóficas sublimes sobre Deus ou os deuses, volta seus olhos para as estátuas e lhes dirige sua prece ou, através destas imagens que ele vê, a oferece na realidade ao ser objeto de seu pensamento para o qual ele imagina que deve subir a partir das coisas visíveis e do símbolo? Mas o cristão mais simples sabe que qualquer lugar do mundo é parte do todo e que o mundo inteiro é o templo de Deus. Orando “em todo lugar”, depois de ter fechado a entrada dos sentidos e aberto os olhos da alma, eleva-se acima de todo o mundo; nem mesmo se detém na abóbada do céu, mas atingindo pelo pensamento o lugar supraceleste, guiado pelo Espírito divino e, por assim dizer, fora do mundo, faz subir até Deus sua oração que não tem como objeto as coisas passageiras. Pois ele aprendeu de Jesus a não procurar nada de pequeno, quer dizer sensível, mas somente as coisas grandes e verdadeiramente divinas que sobrevêm como dons de Deus para guiar à bem-aventurança junto dele, por seu Filho, o Logos que é Deus4. [...]

    Comentário: Essa passagem é de fundamental importância. Orígenes satiriza os filósofos que depois de especulações deve voltar, junto com o populacho, orações às estátuas. É interessante que ele afirma que o filósofo "dirige sua prece ou, através destas imagens que ele vê", pois sabia da argumentação pagã que as estátuas, ou símbolos, não são literalmente os deuses, mas que através das estátuas eles ofereciam preces para os deuses. Orígenes conhece então dois níveis de pensamento em relação ao uso religioso de imagens: 1) Um tipo mais grosseiro, típico da ralé religiosa que confundia Deus ou os deuses com o símbolo, achando que o símbolo era literalmente Deus ou os deuses; 2) O uso mais refinado que entendia ser imagens apenas representações de Deus ou dos deuses, e não a realidade deles.

   Citação:

     Assim como descobrimos nesta atitude a asbtenção do adultério, embora pareça a mesma, uma diversidade proveniente de outras doutrinas e das intenções diversas, o mesmo ocorre com a recusa de honrar a divindade nos altares, nos templos e nas estátuas. Os citas, os nômades da Líbia, os seres, povo sem deus, e os persas fundamentam sua atitude em outras doutrinas diferentes daquelas pelas quais os cristãos e os judeus não toleram este culto que se pretende oferecido à divindadePois nenhum desses povos pode tolerar os altares e as estátuas porque se recusaria a exautorar e aviltar a adoração devida à divindade, dirigindo-a a matéria assim modelada. [...] Por causa deles, não só se afastam dos templos, dos altares, das estátuas, mas também correm para a morte quando necessário, para evitar emporcalhar a noção do Deus do universo com uma infração deste gênero à sua lei5[...]

    Comentário: Celso anteriormente é citado por Orígenes comparando os cristãos aos "nômades da Líbia, citas e os seres, que são os povos sem Deus. Orígenes afirma que a razão pela qual eles não toleram templos, altares e estátuas não é a mesma razão pela qual os cristãos também não os toleram. Nas palavras de Orígenes: "De fato é preciso examinar as doutrinas que levam à intolerância os que não podem tolerar templos e as estátuas, a fim de poder louvar esta intolerância de ela é motivada por sãs doutrinas, e censurá-las se os motivos são errôneos"6. E a razão dele afirmar isso está explicada logo adiante, onde ele elenca várias escolas que levantam razões distintas para a abstenção do adultério - e então entramos no parágrafo citado acima, que é alvo do comentário aqui. Mas o importante é que Orígenes cita com louvor a intolerância dos cristãos em relação às estátuas - e não afirma ser tolerável outro tipo de estátua ou imagem física no lugar das estátuas dos ídolos; isso nos leva ao juízo de que Orígenes possui uma sentença formal contra imagens representativas do ser divino, e isso ficará claro nos comentários a seguir, assim como ficará claro que o costume cristão da época de Orígenes era a abstenção de todo e qualquer tipo de estátuas ou imagens.

    Citação:

    Celso também citou o texto de Heráclito insinuando, em sua interpretação, que é tolice orar para as estátuas quando não se conhece a verdadeira natureza dos deuses e heróis. Devemos responder: é possível conhecer a Deus e seu Filho único, como os seres que são honrados por Deus com o título de deus [anjos - helohim do hebraico, que pode significar tanto anjo como Deus] e participam de sua divindade, e que são diferentes de todos os deuses das nações que por sua verdadeira natureza são demônios; mas na verdade não é possível conhecer a Deus e orar para as estátuas.

    É tolice não só orar para as estátuas, mas também se acomodar às massas e fingir orar para as estátuas, como os filósofos peripatéticos, os sequazes de Epicuro e Demócrito. Não, nada de bastardo deve subsistir na alma do homem verdadeiramente piedoso diante da divindade. Recusamos por este modo honrar as estátuas para evitar, enquanto depender de nós, adotar a opinião de que as estátuas seriam outros deuses7. [...]

    Comentário: No primeiro parágrafo Orígenes fala que não é possível conhecer a Deus e orar para estátuas. Obviamente que ele está acenando para a literalidade da oração à estátua, não a ela como representação de algo. Orígenes opõe aqui o tipo do conhecimento dos filósofos, que sabem que ao orar à estátua não é orar aos deuses, ao conhecimento do populacho, que confundem o símbolo com aquilo que é simbolizado. Lembremos da primeira citação em que Orígenes afirma que Moisés proibiu a confecção de imagens porque estas atraem o olhar dos simples para a terra. Obviamente que se trata de um cuidado pastoral, afim de que "nada de bastardo subsista na alma do homem verdadeiramente piedoso diante da divindade". E lembremos que esse é um cuidado pastoral ausente da teologia católico romana. Mas seria forçado dizer que existe uma licença possível nos escritos de Orígenes para a confecção das imagens de Deus, mesmo a título de uso simbólico. Nada há na obra origenista que indique algo dessa espécie, já que, evidentemente, a confecção de imagens é um risco real para a espiritualidade, já que leva àquilo que chamo de "contração do ser" - não do ser em si, mas sim da nossa mente em relação ao Ser de Deus. Trata-se de um obstáculo à espiritualidade. Lembrem-se também que a razão pela qual iconodulas ou alguns iconistas em geral defendem o uso de imagens é que elas seriam uma bíblia para os ignorantes enquanto que Orígenes considera que as estátuas e imagens são justamente um risco para os ignorantes.

    Citação:

    Celso diz com justeza que não as considera [as estátuas] como deuses, mas apenas como oferendas consagradas e oferecidas aos deuses, mas não esclarece como estas oferendas são consagradas não aos homens, mas, como ele observa, aos próprios deuses. Pois é claro que são oferendas de pessoas que têm ideias falsas sobre a divindade. Também não pensamos que as estátuas sejam imagens divinas, pois não representamos a imagem de Deus invisível e incorpóreo. Mas quando Celso supõe uma contradição entre nossa afirmação segundo à qual a divindade não tem forma humana, e nossa crença de que Deus fez o homem à sua imagem e a fez à imagem de Deus, devemos responder como ficou dito acima: declaramos que o que é à imagem de Deus é conservado na alma racional que é tal pela virtude. Aqui, porém, Celso, que não vê a diferença entre Imagem de Deus [estátuas] e o que é à imagem de Deus [os homens], nos faz dizer: Deus fez o homem à sua imagem e de forma semelhante à sua8[...]

    Comentário: Orígenes é extremamente explícito aqui, afirmando não meramente uma opinião pessoal, mas dizendo na 1ª pessoa do plural, como que falando em nome de outras pessoas também que "não pensamos que as estátuas sejam imagens divinas, pois não representamos a imagem de Deus invisível e incorpóreo". Ele afirma que "não pensamos", no sentido que de os cristãos entendem que Deus transcende infinitamente a mera representação sensível, e que "não representamos", no sentido de que não havia o costume de confecção de imagens ou estátuas para Deus.

    E um segundo ponto a se destacar é que Orígenes sabia que Celso não afirmava serem imagens ou estátuas literalmente deuses ou a divindade, mas sim representações delas.

    Citação:

    Em seguida ele [Celso o filósofo] declara que evitamos construir altares, estátuas e templos; pois ele acredita que é palavra de ordem combinada de nossa associação secreta e misteriosa. É ignorar que para nós o coração de cada justo forma o altar de onde sobem na verdade e em espírito, incenso agradável odor, as preces de uma consciência pura. Por isso diz João no Apocalipse: "O incenso que são as orações dos santos" (Ap 5,8), e no Salmista: "Suba minha prece como um incenso em tua presença" (Sl 140,2).

    As estátuas, as oferendas agradáveis a Deus não são obras de artesãos vulgares, mas do Logos de Deus que as delineia e forma em nós. São as virtudes, imitações do "Primogênito de Toda Criatura", no qual estão os modelos da justiça, da temperança, da força, da sabedoria, da piedade e das demais virtudes. Por tanto, todos os que, segundo o Divino Logos, edificaram em si mesmos a temperança, a justiça, a força, a sabedoria, a piedade, e as obras-primas das demais virtudes, trazem em si mesmos estátuas. É por meio delas, como sabemos, que convém honrar o protótipo de todas as estátuas, a "Imagem do Deus invisível" (Cl 1,15), o Deus Filho Único. Além disso, os que se despojaram do "homem velho com as suas práticas e se revestiram do novo, que se renova para o conhecimento segundo a imagem do seu Criador" (Cl 3.9,10) recuperando continuamente a imagem do criador, edificam em si mesmos estátuas dele, assim como o Deus supremo deseja9[...]

    Comentário: Orígenes cita diretamente Celso, dizendo que os cristãos "evitam construir templos, altares e estátuas". A explicação para isso é tipicamente uma explicação espiritualizante e alegorizante. Para muitos pais da Igreja, segundo o sentido da Escritura, todos os ritos do Antigo Testamento eram apenas uma prefiguração da realidade espiritual que se concretiza em Cristo e em cada cristão. O templo de Jerusalém é a figura do corpo, assim como o altar; da mesma forma o incenso é a figura da oração, e assim por diante. O cristianismo pode ser visto como a antropologização teológica máxima na teologia dos primeiros pais. Podemos dizer que "o homem é a religião". Os cristãos são o templo, as virtudes são as imagens, o altar é o corpo e o artífice é o Logos que delineia na alma as virtudes pelas quais servimos e sacrificamos a Deus. O ritualismo religioso tomou as proporções do homem; decair para a confecção de estátuas, altares e templos é cair no ser, ou voltar a um estado primitivo tosco já superado; é decair do espírito para a letra. Orígenes reflete o teor entusiasmado de uma fé nova, viva e não envelhecida com entulhos ritualísticos e paramentais, mas plenificada de significado vivificador. Trata-se de uma expressão religiosa exteriormente pobre, segundo Celso - que até lhe parece ateísta -, mas interiormente vulcânica e sublime. É assim que entendemos um típico teólogo norte-africano (origenista?) como Santo Agostinho, quando discorre sobre o retorno interno, ou a volta para o interior, como podemos ver no De Vera Religione. Dessa forma, a pobreza externa da religião cristã é caracterizada por Celso como um culto sem templos, sem estátuas, sem altares.

    Citação:

    Portanto, não é para observar uma palavra de ordem convencionada da nossa associação secreta e misteriosa que evitamos edificar altares, estátuas e templos; mas porque encontramos, graças ao ensinamento de Jesus, a forma da piedade para com a divindade, evitamos atitudes que sob a aparência da piedade tornam ímpios os que se afastam da piedade que tem por mediador Jesus  Cristo: só ele é o caminho da piedade, porque ele diz com toda verdade: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jo 14.6)10.

    Comentário: Aqui vemos a confirmação de Orígenes das palavras de Celso sobre a austeridade primitiva do culto cristão. Se na citação anterior ele alegoriza e espiritualiza os templos, altares, estátuas e incensos, aqui ele fala claramente sobre a realidade austera do culto. Se antes poderia haver dúvidas, agora já não pode haver mais. 
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1] ORÍGENES - Conta Celso. IV.31
2] PLATÃO - A República. Edipro. Lib.X p. 407, 409.
3] ORÍGENES - Contra Celso. VII.42
4] Ibid. VII.44
5] Ibid. VII.64
6] Ibid. VII.63
7] Ibid. VII.65,66
8] Ibid. VII.66
9] Ibid. VIII.17
10] Ibid. VIII.18

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