domingo, 25 de julho de 2021

Os Prolegômenos Teológicos Na Tradição Reformada (por Joel Pereira)*

    Dado que a reforma protestante foi vista pelos próprios reformadores não como um ataque a todo corpo de doutrina anterior, mas como uma melhor compreensão a respeito de certos pontos da teologia já estabelecida (especialmente o tópico sobre a justificação), há uma certa conexão entre o desenvolvimento dos prolegômenos teológicos e o background medieval anterior, aduzido, especialmente de Pedro Lombardo e seu ‘Sententiarum’, de Tomás de Aquino e de sua Suma, e especialmente de Henri de Gante no seu ‘Summae quaestionum ordinariarum theologi’.

    Philip Melanchthon foi responsável por dar o pontapé inicial no desenvolvimento dos prolegômenos teológicos na vertente protestante, no seu ‘Loci Communes’ e também no seu ‘Brevis discendae theologiae ratio’. Para ele, a teologia começa considerando Deus e a criação, depois a queda, e então a redenção. Calvino, conforme foi publicando novas edições das suas Institutas, transformou-a de um manual catequético para um sumário básico da doutrina cristã, além de adicionar o tema de um conhecimento duplo sobre Deus (‘duplex cognitio Dei’), que serve como uma estrutura que estabelece as Escrituras como a base de todo o conhecimento verdadeiro sobre Deus. Seguindo na esteira da tradição, os ‘Loci Communes’ de Vermigli e de Musculus vão muito mais a fundo que Calvino na discussão dos prolegômenos teológicos. Em Vermigli, os capítulos introdutórios discutem as várias formas de revelação (I.ii) e do conhecimento natural de Deus (I.iii-v) antes de tratar sobre as Sagradas Escrituras e sua interpretação (I.vi). Ademais, Vermigli trata sobre a relação da teologia com a filosofia (II.iii) de uma forma muito mais positiva do que a vista em Calvino. Musculus discorre sobre os atributos divinos e sobre o nosso conhecimento a respeito de Deus por várias seções do seu ‘Loci’ (cap. 47-60) se alinhando ao mesmo Vermigli quanto à possibilidade de um conhecimento natural de Deus pelas criaturas.
    Mais importante que os já citados quanto aos prolegômenos teológicos é a obra de Andreas Hyperius, ‘Methodi Theologiae’. Ele é o único membro de sua geração de teólogos reformados a declarar claramente uma justificativa para a organização sistemática da doutrina e a começar a escrever com a ideia de um sistema completo totalmente em vista, seguindo de perto a linha de 3 obras clássicas: O ‘Enchiridion’ de Agostinho, o ‘Sobre a Fé Ortodoxa’ de João Damasceno e as Sentenças de Pedro Lombardo.
Avançando no tempo, chega-se a Zanchi e seu ‘Praefatiuncula in locos communos’. Para Zanchi, a Escritura é o “fundamentum totius Theologiae”, e portanto deve ser o primeiro ‘loci’ da teologia. A teologia começa analiticamente com o texto das Escrituras, apresentando primeiro o escopo do argumento de um autor sagrado em um lugar particular, em seguida, apresentando questões decorrentes da passagem e, finalmente, formulando questões ou proposições que surjam da discussão do assunto.
    Duas obras de considerável importância para o desenvolvimento da ortodoxia reformada são o ‘Christianae Isagoges’ e o ‘Compendium sacrae theologiae’, ambos de Lambert Daneau, teólogo genebrino. Apesar de não discutir em si a questão da definição da teologia, Daneau gasta um bom tempo discutindo um método adequado para discussões teológicas, o que serviria de apoio para as dogmáticas posteriores. Porém, a obra que traz de fato o método escolástico para as discussões dogmáticas dentro da teologia reformada é a ‘De Verbo Dei scripto’, de Antônio Chandieu. Chandieu, apesar de afirmar que muitos escolásticos se perderam em querelas inúteis que não trazem nada prático para a vida cristã, reconhece que os teólogos reformados devem estar no campo da escolástica para que possam argumentar contra seus adversários. Então, Chandieu propõe explicitamente um programa de escolasticismo protestante que poderia ser adotado nas universidades e instituições de ensino da época.
    Atingindo o ápice da discussão sobre os prolegômenos teológicos, chega-se à obra de Amandus Polanus, ‘Syntagma Theologiae Christianae’. A obra de Polanus é, sem dúvidas, a mais elaborada dogmática feita por qualquer reformado até a sua época. Repleta de referências à patrística e a teólogos medievais, a obra é dividida em dez livros, começando pelos prolegômenos teológicos e pela discussão do método, objeto e fim da teologia, avançando para a discussão sobre Deus e seus atributos e por todos os tópicos básicos da teologia cristã, se estendendo também a temas práticos como o reto governo da igreja, e a uma extensa discussão sobre as diversas virtudes que os cristãos deveriam cultivar em sua vida. Polanus conseguiu, em sua obra, sintetizar de uma forma sadia os principais tópicos que ligavam os teólogos reformados aos seus antecessores, sejam medievais, sejam patrísticos, e também os tópicos nos quais havia querelas não só entre os protestantes e outras vertentes cristãs, mas também dentro da própria tradição reformada. Semelhante evento ocorreu no Luteranismo: um ano após a publicação dos ‘Syntagma’ por Polanus, Johann Gerhard publicou seu ‘Loci Theologici’, obra de peso para a ortodoxia luterana.
    Merece menção especial também a obra de Johann Heinrich Alsted, ‘Methodus sacrosanctae theologiae’, uma das mais importantes nos anos posteriores a Polanus. Alsted começa com os dois livros de ‘Praecognita’ - um sendo um prolegômeno formal sobre a natureza da teologia, o outro uma instrução sobre o estudo da teologia - e então prossegue para separar os estudos de teologia natural, teologia catequética e escolástica, casuística ética, pregação e teologia arcana ou mística.
    Após esses anos de alta ortodoxia reformada, as dogmáticas foram pouco a pouco mudando sua forma de serem escritas e a própria forma de discussão dos tópicos teológicos foi sendo mudada, dados os eventos históricos e teológicos que ocorriam à época. Contudo, ainda se pode notar traços daquele sistema ortodoxo mais antigo em alguns autores, como em Turretin (‘Institutio theologiae elenctica’), Heidegger (‘Corpus Theologiae christianae’) e Mastricht (‘Theoretico-practica theologia’).
    Na foto: Amandus Polanus, um dos maiores teólogos reformados de todos os tempos.
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[*] Joel Pereira é advogado e estudante da tradição reformada de corte escolástico. Sua página no Facebook: Joel Pereira | Facebook

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