sexta-feira, 10 de junho de 2016

William Godwin: Hipocrisia, Utopia e as Ilusões de um Gnóstico

    O Britânico William Godwin figura entre os ícones do iluminismo britânico. No entanto não seria injusto também colocá-lo como um ícone marcante do hagiógrafo gnóstico-político dos tempos modernos. Seguidor de outro adepto do gnosticismo, Benjamin Franklin, Godwin levou os ensinos do seu "mestre" às últimas consequências; e embora Franklin não tivesse desejado tais consequências, tão pouco poderia ter evitado algumas delas através do seu próprio pensamento.

Mas o que é gnosticismo? O gnosticismo trata-se de uma heresia que remonta aos princípios do cristianismo. Alguns afirmam a sua origem já na época de Paulo, tendo a Epístola aos Colossenses uma certa polêmica contra alguns cristãos que endossaram pensamentos proto-gnósticos dentro da comunidade de Colosso. Mas a matéria substancial desta heresia estava em alguns princípios que poderiam ser derivados de filosofias de natureza neo-platônicas, cujo conteúdo centra-se basicamente na compreensão de que a realidade material é essencialmente má, sendo o universo do espírito essencialmente bom - o que, diziam eles, acabava por configurar a realidade corpórea como uma prisão da qual o espírito teria a necessidade de se libertar.

O grande representante do gnosticismo foi Marcião, o mesmo que afirmava que o Deus Criador do Mundo e da realidade material era um ser maluco o - o mesmo que era responsável por guerras, por derramamento de sangue, pelas privações e sofrimentos físicos -, sendo este o Deus do Antigo Testamento. Já o Deus do Novo Testamento era aquele ser bondoso que enviou o seu Logos (Jesus Cristo) e que ensinou um caminho a um grupo seleto - não os apóstolos, que eram insuficientemente sábios para apreender o seu "verdadeiro discurso" -, cuja finalidade era a libertação desta vida para uma realidade superior. Com isso Marcião não reconhecia a continuidade espiritual do Antigo e do Novo Testamento e nem mesmo concebia como possível que o Deus Pai de Jesus Cristo teria criado o mundo e a realidade material - sendo esta má em si mesma -, mas sim o espírito, de onde a salvação se alcançaria através de uma determinada gnose (que em grego significa ciência ou conhecimento) ou doutrina secreta transmitida por gurus iluminados.

De longe o gnosticismo foi a maior ameaça à Igreja Cristã. Maior do que os arianismo, adocionismo nestorianismo, patripassionismo, pneumatoquismo, modalismo, monofisismo, monotelismo etc. E não estranhamente, ele é a própria plataforma cognitiva e afetiva de vários movimentos políticos seculares, notavelmente aqueles movimentos messiânicos que procuram instaurar os céus na terra. Por mais incrível que possa parecer, Erich Voegelin trata deste assunto de forma incrível no livro "A Nova Ciência Política", onde demonstra traços do gnosticismo inerente em várias correntes de pensamento, notavelmente no movimento Nazista, Comunista e nos milenaristas modernos - que transferem a esperança das religiões tradicionais a ser consumada na eternidade para o terreno da imanência, sendo a política o instrumento de transfiguração do mundo em um paraíso por excelência.

Mas quais os traços da doutrina gnóstica de William Godwin? Godwin, que era ateu, nutria uma esperança profunda na razão humana. Mas não qualquer esperança, pois acreditava que através do aperfeiçoamento infinito da razão o homem poderia alcançar a perfeição de espírito, o que transmutaria a realidade corpórea (sendo tragada pela realidade do espírito) e faria desaparecer o desejo sexual, os apetites, o sono, a fome, tornando o homem aperfeiçoado imune a doenças, ao cansaço e outras paixões humanas (lembre-se de doutrinas que afirmam que a vontade pode transmutar a ordem da realidade e anulá-la, e a consideração da realidade material como má e inútil). Também levou a doutrina da perfeição humana consequentemente para o terreno da política, pois segundo ele, na medida em que a humanidade fosse aperfeiçoada ela não haveria a necessidade de governo, pois não haveria mais desníveis e os homens sábios. Todas as classes seriam abolidas e a propriedade privada seria extinta. Da mesma forma os contratos não seriam necessários e a instituição do casamento ("a instituição odiosa", segundo Godwin) haveria de cessar, pois ela não caberia na mente de homens verdadeiramente livres. Desta liberdade total seguiria o verdadeiro paraíso humano neste mundo agora transfigurado pelos plenos poderes da razão.

Mas a "má matéria" sempre nos pregam peças, e, como dizia o filósofo Horácio, quando lançamos a natureza para fora da casa pela porta ela volta com o dobro da força pelas janelas. Aos 40 anos de idade - como relata Gertrude Himmelfarb no seu livro "Caminhos Para a Modernidade" lançado em 2011 no Brasil pela editora É -, Godwin conheceu uma mulher de baixa reputação chamada Mary Wollstonecraft (considerada até uma matriarca do movimento feminista pelo teor de suas ideias sobre a mulher desfeminizada e racionalizada - que mais parece o homem fálico de Lacan), por quem se apaixonou e, um ano após conhece-la, casou-se. Wollstonecraft morreu pouco depois em trabalho de parto. Contudo nem por isso ele se viu livre depois que foi picado pela odiosa aranha da concupiscência: casou-se com outra mulher pouco tempo depois, e com as obrigações estabelecidas foi "obrigado" a surfar na ignomínia do livre-mercado para honrar seus compromissos, mas sem êxito. Daí em diante a vida de Godwin tornou-se uma verdadeira sátira: adorava Mary, sua filha, e desesperou-se quando ela fugiu, ao dezesseis, com um homem casado que professava segui-lo - e cujo desleixo com seu casamento não pode ser considerado como algo inconsequente com as ideias de Goldwin. Depois que a mulher deste homem morreu Godwin, traspassado por um patriarcalismo arraigado, instou para que este se casasse com sua filha. Ficou feliz com o casamento realizado, e, em suas palavras, "eu não me importo com a riqueza quanto pelo destino de minha filha", pois o homem era um barão rico, a quem, por ironia do destino, Godwin não se furtava, mesmo antes do casamento de Mary, a pedir dinheiro, tendo êxito considerável nesta empreita - e cá entre nós: nenhum racionalista gnóstico é de ferro, não é mesmo? Contudo, no fim da vida, Godwin, segundo Himmelfarb, fez de maneira relutante algumas concessões à ideia sobre a impossibilidade de materialização do seu pensamento, pois seria difícil imaginar tal futuro concretizado levando em consideração a constituição não puramente racional, mas passional, do homem.

E isso nos leva a considerar um traço característico dos radicais de hoje que insistem em expulsar a natureza pelas portas, pois muito do movimento que eram pela classe operária, em nome de uma libertação absoluta, acabou gerando uma opressão indescritível e escravização dos mesmos trabalhadores (a natureza volta dobrada pelas janelas); aqueles que consideravam uma determinada raça uma ameaça para humanidade tocaram fogo no mundo, colocando a vida de milhares em risco pelo ideal de pureza. Pessoas que lutavam pela "ética na política", gritando de maneira histérica contra os poderosos e contra a presença de ladrões do legislativo conseguiram corromper as instituições de maneira nunca antes vista, criando uma cleptocracia nunca antes existente e empreendendo roubos nunca antes pensados. Mas esta parece ser o fim de toda utopia e de todos aqueles que prometem um mundo de perfectibilidade.

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