sábado, 11 de junho de 2016

A Livre Interpretação das Escrituras e o Nazismo: Nem Tudo São Trevas


O fato da liberdade vista por si mesma é algo que não pode ser considerada nem boa e nem má. O questão se desenha no horizonte na da própria liberdade, e dos atos livres que tomamos com base em nossa responsabilidade pessoal. Tais atos sim podem ser considerados bons ou maus, mas não a própria liberdade. Como disse o filósofo luterano Friederich Schelling, a liberdade é aquilo que ocasionou a queda do homem, mas é apenas por meio da própria liberdade que podemos restaurar a unidade original que desfrutávamos juntamente com o Absoluto (ou Deus), ou seja, se por um lado é por meio da liberdade que se erra, por outro é unicamente através dela que se acerta.
Tenho por tempos criticado a maligna história da interpretação bíblica calcada unicamente na liberdade. De fato, não conheço nenhum intérprete bíblico sério de peso que tenha deixado de lado a tradição de interpretação no interior do cristianismo como critério de interpretação e de fonte de pensamento teológico fundamental - o que também fizeram teólogos luteranos, condenando o liberticídio possível gerado no interior da teologia protestante da livre interpretação. Contudo, a liberdade no protestantismo não é de todo má - mesmo para Schelling que não obstante reconheceu a potência filosófica e literária oriunda da doutrina católica -, possibilitando na história a irrupção de pontos iluminadores de liberdade individual que permitem a resistência contra a tirania do pensamento único.
A história da Alemanha no período nazista é algo que comprova esta afirmação minha, sendo possível considerar o poder de resistência baseado na liberdade individual um fator - neste período - superior até mesmo à hierarquia disciplinar do colegiados de bispos católicos no mesmo período, ainda que a ideologia do Nacional Socialismo tenha devastado tanto igrejas evangélicas quando a Igreja Católica. É assim que o filósofo germano-americano Erich Voegelin relata como ocorreram as coisas no período, tal como segue: "Nada pode ser explicado como o lugar-comum do nacional-socialismo. É um caso de fenômeno pneumopatológico de corrupção social. Deve-se estar consciente disso acima de tudo no caso das Igrejas." (VOEGELING. Hitler e os Alemães. p. 207)
Mas comecemos com a corrupção da teologia evangélica no contexto do Nacional Socialismo. Tal corrupção esteve de mãos dadas com a absorção do Zeitgeist (espírito da época) por parte das Igrejas concomitante à perda do Elã espiritual e consequentemente à perda da realidade. Como Voegeling enfatiza, a consciência humana no âmbito da vida ou das construções intelectuais só são saudáveis juntamente com a consciência da presença divina - querendo ele enfatizar a ideia de que todas as ações e pensamentos humanos devem ser iluminados por um juízo superior sobre o certo e o errado. E quando a presença divina é substituída como elemento de juízo para a consciência humana por uma ideologia política daí o homem se encontra sujeito a toda sorte de corrupções, já que eleva um movimento político à altura de Deus.
Um exemplo claro disso foi a horrorosa Confessio do professor de filosofia da Universidade de Leipzing Ernst Bermann, onde recolhemos esta pérola: "Creio no Deus da Religião alemã, o qual se manifesta na natureza, no alto espírito do homem e no poder de meu povo. E no salvador Kristo [com um 'K' para parecer mais alemão], que luta pela nobreza da alma humana. E na Alemanha, a terra onde uma nova humanidade esta sendo forjada" (BERGMANN, Ernst. apud VOEGELIN. Hitler e os Alemães. p. 217)
Outro exemplo está na frase abaixo daquele que viria a ser o Bispo de Brandeburgo, o pastor Joachim Hossefelder que representava à época o movimento dos "Cristãos Alemães". As palavras nojentas são estas:"Estamos no terreno da cristandade positiva. [Isso está no programa do partido] Confessamos uma crença afirmativa em Cristo, conforme à raça [...], de acordo com o espírito alemão de Lutero [o que longe está de Lutero] e da piedade heróica (sic) [...] Vemos na raça, Volkstum, e na nação o que Deus depositou em nós e as regras de vida confinadas a nós, para cuja preservação existe para nós a lei de Deus. Por tanto, a mistura de raças deve ser combatida [...]
[...] Rejeitamos a missão judia na Alemanha enquanto os judeus possuírem o direito de cidadania e, então, o perigo do ocultamento da raça e do abastardamento continuarem. (GOLDSCHMIDT & KRAUS, apud VOEGELING. Hitler e os Alemães. p. 17)
E por último, temos da ala mais radical à esquerda à ala mais moderada temos uma declaração teológica de Friedrich Gebhardt, como segue:" A crença em Cristo é conforme a raça na forma, conforme com Cristo no conteúdo.
[...] O Novo Testamento em si é Evangelho, [e prestem atenção às confusão teológica com cheiro forte de gnosticismo] o Velho Testamento não se torna Evangelho nem mesmo através do Novo Testamento. [Portanto, fora com o Velho Testamento]
Israel foi o povo escolhido (Volk), mas Deus o rejeitou, e deu o Evangelho a um "povo" ("Volk") que daria seu fruto. [Ou seja, os alemães] Nenhuma nação pode vindicar o Evangelho apenas para si, mas Deus, mesmo hoje, ainda pode rejeitar povos, assim como fez uma vez. [dando a entender a eleição do povo alemão para os novos tempos]
Tal decadência esteve, como disse no início, arraigada na elevação das crenças da época ao nível da revelação divina, ou seja: a fé em Deus estava conformada ao espírito da cultura da época. Não há outro nome para isso que não idolatria - e severa, violenta e odiosa idolatria, que nada mais se constituí do que colocar os ideais, a cultura da época e a visão de um povo em substituição à vontade divina.
Contudo a corrupção no interior da Igreja Evangélica teve a sua contra-parte garantida por causa da liberdade de interpretação das escrituras. Se por um lado a ideia de uma interpretação oficial e definitiva não era algo inaceitável para a tradição evangélica, por outro foi ela mesma que tanto abriu as portas para a nazificação da teologia como permitiu que outros se opusessem à mesma nazificação. Nesse contexto podemos destacar personagem como teólogos de alto calibre como Rudolf Bultmann, Dietrich Bonhoeffer (sendo este martirizado por causa de sua oposição intransigente ao Nazismo), Joachim Jeremias e Karl Barth (todos ligados à Igreja Confessante), assim como a oposição até à morte de pastores como Paul Schneider.
De Rudolf Bultmann, em reação às declarações escandalosas da faculdade Erglangen, defendeu a universalidade do evangelho em contraposição à ideologia de separação de raças no contexto do Nacional-Socialismo: "A opinião de Erlangen não diz que todos os cristão tem uma adoção comum como filhos de Deus, o que não põe termo às diferenças sociais e biológicas? Ao contrário, não esta todo cristão ligado à posição em que é chamado? Sim, com justificação completa. [Agora vem esta passagem, I Co 7:20.] Estou surpreso com a temeridade do apelo a I Cor. 7:20. Pois não há nada para se ler aqui dizendo que essas diferenças também valem para o espaço da Igreja e têm significado. [...] Ao contrário! Paulo diz que as distinções que não tem sentido para a Igreja mantém a validade no mundo. Ele opõe I Cor. 7:17-24 contra esses tolos, que querem transformar os princípios da comunidade eclesiásticas em leis do mundo, contra o desejo de emancipação dos escravos e das mulheres [Por tanto, políticas igualitárias, já que todos os homens são iguais como filhos de Deus. A referência de Bultmann é correta.] E devemos agora perpetrar a tolice oposta de transformar as leis do mundo em leis da Igreja?" (GOLDSCHMIDT & KRAUS. apoud Voegelin. Hitler e os Alemães. p. 225)
Por outro lado temos a oposição tenaz de Karl Bart, aquele teólogo que ofereceu o espírito da constituição da Igreja Confessante - que surgiu como uma reação à nazificação da Igreja Protestante (o que refuta a tese de certa ala católica radical de que a Igreja Protestante se presta à deificação incondicional do Estado) -, a Declaração Teológica de Barmen. Eis algumas passagens da declaração teológica: "Rejeitamos a falsa doutrina de que a Igreja teria o dever de reconhecer - além e aparte da Palavra de Deus - ainda outros acontecimentos e poderes, personagens e verdades como fontes da sua pregação e como revelação divina. [...]
A Igreja Cristã é a comunidade dos irmãos, na qual Jesus Cristo age atualmente como o Senhor na Palavra e nos Sacramentos através do Espírito Santo. Como Igreja formada por pecadores justificados, ela deve, num mundo pecador, testemunhar com sua fé, sua obediência, sua mensagem e sua organização que só dele ela é propriedade, que ela vive e deseja viver tão somente da sua consolação e das suas instruções na expectativa da sua vinda.
Rejeitamos a falsa doutrina de que à Igreja seria permitido substituir a forma da sua mensagem e organização, a seu bel prazer ou de acordo com as respectivas convicções ideológicas e políticas reinantes." (Declaração Teológica de Barmen, parte I e II)
É nesse espírito que uma ala importante das Igrejas Evangélicas do período Nazista conseguiram se safar da conformação acachapante a que foi submetida toda e qualquer instituição cultural alemã no período. Isso foi possível pela ausência de uma doutrina que submeta as doutrinas teológicas a uma rígida hierarquia autorizada para interpretar o Evangelho. A tragédia das igrejas católicas na época, que no período devido à busca da unidade episcopal decidiu, na Alemanha, se submeter às leis do país afim de não parecerem "subversivos", foi justamente colocar a unidade acima de uma confrontação direta com o regime, ainda que bispos aqui e ali se pronunciassem de maneira profunda contra a barbárie Nacional Socialista, e mesmo que a oposição à ideologia socialista tenha sido feita por meio de documentos muito antes da ascensão de Hitler ao poder, o que não houve pelo lado protestante - muitas vezes possível por conta do considerável background filosófico católico, superior ao backgrund filosófico protestante, ainda que esse último tenha a vantagem de possuir uma tradição de verificação científica das escrituras muito superior ao mesmo domínio científico católico.
Por fim, a questão da liberdade de interpretação, tal como desejei apresentar aqui, é algo ambíguo, tal como o é a liberdade: é algo que deve ser julgado na prática, pois se a liberdade de interpretação for tomada como um bem em si mesmo, devemos ter em mente que é unicamente por meio da liberdade de interpretação que opiniões teológicas degeneradas formam tendências destrutivas para a Igreja. Mas isso não é um mal em si, pois sem a liberdade não teríamos chance de colher interpretações saudáveis, espirituosas e profundamente significativas para a vida espiritual que enchem de vida as comunidades eclesiásticas evangélicas.

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