sexta-feira, 28 de junho de 2019

A Singularidade da Invocação de Deus como 'Abba*


   O judaísmo antigo dispunha de uma grande riqueza de modos de se dirigir a Deus. A "oração" ('teffilah', mais tarde chamada de oração das dezoito [preces]), que já na época do Novo Testamento se rezava três vezes ao dia, por exemplo, termina cada benção com uma nova interpelação de Deus. A primeira benção reza em sua forma supostamente mais antiga:

"Louvado sejas, Javé,
Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó (cf. Mc 12.26 par.), Deus altíssimo, 
Senhor do céu e da terra (cf. Mt 11.25 par.), nosso escudo e escudo de nossos pais. 
Louvado sejas, Javé, escodo de Abraão".
   Vê-se: a uma forma de invocar a Deus segue outra. Se quiséssemos catalogar todas as interpretações que ocorrem na antiga literatura devocional judaica, a lista seria enorme. 
   Quanto à interpelação de Deus como 'Pai', não a encontraremos em nenhuma passagem do Antigo Testamento, Com certeza lhe estão muito próximos o apelo a Deus chamando-o de 'abinu 'attah (tu és nosso pai - hebr) numa situação desesperadora, ou 'abi 'attah' (tu és meu pai - hebr), mas trata-se aí de sentenças afirmativas, e não da invocação de Deus usando do nome de Pai para ele. Na literatura pós-canônica do judaísmo, há testemunhos isolados no judaísmo da diáspora de invocação de Deus como páter [pai - greg] [Eclo 23.1,4], em que se segue simplesmente a influência do mundo grego. No meio palestinense, só nos tempos do começo do cristianismo é que encontramos duas orações que usam interpelação de Deus como pai, ambas no forma 'abinu malkenu [nosso pai, nosso rei - hebr]. Todavia é preciso observar que se trata do orações litúrgicas, nas quais Deus é invocado como pai da comunidade, e que aí se usa linguagem hebraica e que, além disso, se usa 'abinu ligado com malkenu: o pai, que a comunidade invoca, é o rei celestial do povo de Deus. Toda via, em vão procuraríamos aí a invocação pessoal individual de Deus como "meu Pai". Esta aparece (visto que o texto original de Sir. 23.1,4, que se deduz de uma paráfrase hebraica, rezava 'el 'abi, e, por isso, não se deve traduzir por "Deus, meu Pai", mas por "Deus de meu Pai") pela primeira e uma única vez no escrito surgido cerca de 974 d.C. no sul da Itália, chamado 'Seder Eliyyahu Rabba', na formulação 'abi shebashamayim' (meu pai que está nos céus - hebr); por tanto em hebraico e com complemento. Isso significa que, na literatura do judaísmo palestinense antigo, até agora ainda não se comprovou a existência de uma invocação individual de Deus por "meu Pai". Ela só iria surgir na Idade Média no sul da Itália.
   Se já era algo totalmente incomum o fato de Jesus se dirigir a Deus chamando-o de "meu Pai", isso vale tanto mais para o emprego da forma aramaica 'Abba. Ela foi transmitida expressamente apenas em Mc 14.36, mas duas outras observações falam em favor de que Jesus usava esse modo de se dirigir a Deus como 'Abba também no restante de suas orações. EM primeiro lugar, a tradição da interpelação de Deus como Pai representa uma estranha oscilação em suas formas. Encontramos, de um lado, a forma grega correta do vocativo 'páter', acompanhado do prenome pessoal em Mateus (páter mou), e, do outro lado, o nomitativo com artigo (ho patér) como vocativo. Chama especialmente a atenção que numa só e mesma oração encontramos lado a lado páter e ho patér vocativo, a saber em Mt 11.25s. par. Lc 10.21. Essa estranha oscilação aponta para um 'Abba subjacente, que no tempo de Jesus era usado tanto como interpelação omo para o 'Estado determinado ou enfático' ("o pai"), como também para a forma com o sufixo em primeira pessoa ("meu Pai, nosso Pai"). Em segundo lugar: através de Rm 8.15 e Gl 4.6 ficamos sabendo que na igreja primitiva estava espalhada a invocação operada pelo Espírito 'Abba ho patér [Abba pai], e de tal modo que Paulo não pressupõe apenas para suas próprias comunidades (Gl 4.6), mas conta também com o fato de que esse 'Abba soava também como invocação na oração de uma comunidade não fundada por ele (Rm 8.15). O caráter incomum dessa invocação de Deus comprova que ela é um eco da oração de Jesus. Temos, pois, todos os motivos para contar com o fato de que páter (mou) [meu pai] ou ho patér das orações de jesus subjaz em todo lugar um 'Abba.
   Embora haja testemunhos esporádicos da invocação de Deus como páter - se bem que sob influência grega - no campo do judaísmo helenístico, pode-se dizer com segurança que em toda vasta literatura do judaísmo antigo não se encontra em parte alguma um testemunho para a invocação de Deus com 'Abba, nem em orações litúrgicas nem em orações privadas.
   Mesmo à parte das orações, o judaísmo evita conscientemente aplicar a palavra 'Abba a Deus, como se pode estudar no Targum. Das três passagens do Antigo Testamento em que Deus é chamado de 'abi, o Targum reproduz duas com ribboni [meu Senhor] (Targ Jr 3.4,19); somente no Targ do Sl 89.27 é que o tradutor se viu obrigado pelo sentido a colocar 'Abba. No restante do Targum, aplica-se 'Abba (hebr. 'ab - pai) a Deus só mais no Targ de Ml 2.10; também aí o tradutor, por causa do conteúdo, não viu outra possibilidade de tradução. Fora do Targum, só há um lugar na literatura rabínica em que se usa 'Abba com referência a Deus. Trata-se de um ahistória a respeito de Hanin ha-Nehba, que viveu por volta do fim do século I a.C. e era tido como homem que orava eficazmente por chuva:
"Hanin ha-Nehba era filho da filha de Honi, o traçador de círculos. Quando o mundo precisava de chuva, os nossos mestres costumavam mandar a ele as crianças da escola, que agarravam a orla do seu manto e lhe diziam: /'abba, 'abba, hab lan mitra/ [Paizinho, paizinho, dá-nos chuva!] . E ele falava diante dele (Deus): 'Senhor do universo, faze-o por causa destes que ainda não sabem distinguir entre um 'Abba que pode dar chuva e um 'abba, que não pode dar chuva alguma.
   Hanin aplea à misericórdia de Deus, retomando com humor o confiante " 'abba, 'abba" que as crianças da escolha lhe gritam e designando a Deus - em contraposição a si mesmo como o " 'Abba que pode dar chuva". Pode-se considerar essa história como prelúdio a Mt 5.45, onde Deus é nomeado como o Pai celeste que dá o dom da chuva para justos e injustos sem distinção - mas elas não oferece o testemunho judaico que falta para a invocação de Deu como 'Abba. Pois, note-se bem, Hanin não se dirige a Deus com a invocação 'Abba; sua interpelação é antes "Senhor do universo".
   Com tudo isso estamos diante de um dado de fundamental importância: ao passo que não temos nenhum testemunho de que no judaísmo Deus tenha sido invocado com 'Abba, Jesus sempre o invocou assim em suas orações, sendo a única excessão o grito na cruz em Mt 15.34 par. Mat 27.46, o que se justifica pelo caráter de citação dessa passagem.
   O notável silêncio da literatura devocional judaica se explica a partir do dado linguístico: 'abba é, poe sua origem, uma forma de balbucio, motivo pelo qual não se flexiona e nem recebe nenhum sufixo [pois no hebraico os artigos que antecedem os substantivos aparecem como sufixos nos próprios substantivos]. "Somente quando uma criança experimenta o gosto do trigo (isto é, quando ela é desmamada), é que ela diz 'abba, 'imma [mãe] (ou seja, estes são os primeiros balbucios). Originalmente um balbucio, 'abba tinha ganho, já antes do Novo Testamento, ampla base no aramaico palestinense. Tinha abafado em toda linha o 'abi, aramaico puro e hebraico-bíblico, tanto como forma de interpelação como de asserção, tinha-se colocado no lugar do 'estado determinado ou enfático' 'abba e se tinha afirmado largamente como expressão para "seu pai" e "nosso pai". Nos dias de Jesus, já há muito tempo que 'Abba não mais se restringia à linguagem das criancinhas. Também os filhos adulto se dirigiam então a seu pai, chamando-o de 'Abba. Além do pai, também se interpelava pessoas adultas de respeito com a expressão 'Abba, o que é mostrado, p. ex., pela história (que se passa em período pré-cristão) de Hanin ha-Nehba. Uma fonte judaico-cristã recentemente descoberta diz que é uma propriedade da língua hebraica que "filho" pode designar um escravo fiel e probo e "pai", o senhor e dono. O Midrash confirma isso: "Assim como os alunos são chamados de filhos, assim ta,bém o mestre é chamado de pai" [Sifre Dt 34 sobre 6.7]. Na casa do rabino Gamaliel II (cerca do ano 90), até mesmo o escravo Tobi era chamado de " 'abba Tabi" [Tp. Nidda 49b 42s. Bar.].
   Tendo em vista esse Sitz in Leben [lugar vivencial, ou lugar vital] de 'abba, compreende-se porque o judaísmo palestinense não usava 'abba como interpelação de Deus: 'abba era linguagem de crianças, falar do dia-a-dia, expressão de cortesia. Para a sensibilidade dos contemporâneos de Jesus, teria parecido irreverente, até mesmo inimaginável, invocar a Deus usando essa palavra familiar.
   Jesus ousou empregar 'Abba como invocação de Deus. Esse 'Abba é ipsissima vox de Jesus.

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* Joachim Jeremias - Teologia do Novo Testamento. ed. Hagnos. p. 114-120

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