sexta-feira, 28 de junho de 2019

O Poder do Maligno e a Vitória sobre Satã

[...] Portanto, Jesus não considerava o mundo do mal como algo atomizado, mas como uma unidade. Assim, o mal perde o caráter de algo de isolado e fortuito; ele é radicalizado. Por detrás de suas várias formas fenomênicas está o extrós [inimigo - grego] por excelência, o destruidor da criação. Os seres humanos estão indefesos à mercê do seu exército de maus espíritos (Lc 10.19). Este conhecimento da realidade do mal culmina na ceteza de que o poder do mal ainda não atingiu seu ápice: Satã haverá de se levantar como Deus e exigir adoração (Mc 13.14). Só então, no fim dos dias, é que será posto abaixo o pseudodeus: tunc Zabulus finem habebit [então Zabulos terá um fim - latim] (AssMois 10.1).
   Neste mundo escravizado por Satã, Jesus entra com autoridade de Deus, não só para exercer a misericórdia, mas obretudo para assumir a luta contra o mal. O. Bauernfeind demonstrou que o Evangelho de Marcos descreve as expulsões de demônios por Jesus como lutas, como é o caso p. ex. em Mc 1.23-28. Temos aí o seguinte esquema: o possesso se aproxima com uma palavra de rejeição contra Jesus (v. 24 que deve ser lido como duas perguntas); a rejeição cresce a ponto de tornar-se um ataque e depois segue uma esconjuração feita pelo demônio contra Jesus (oidá se tís éi, ho agios tou Teou [sei quem és: o santo de Deus - grego), v. 24b). À ordem de Jesus para que se cale e se retire (v. 25) o demônio opõe uma última resistência antes de obedecer (v. 26). O mesmo esquema retorna em Mc 5.6-10. Também Jesus partilha da ideia de que as expulsões de demônios são lutas contra poderes maus, como o evidencia a paráboa do duela em Mc 3.27 pr. Lc 11.21. Emprega-se aí a figura da luta escatológica, que os textos essênios (principalmente 1QM) evidenciam como ideia corrente. Com essa parábola, Jesus interpreta suas expulsões de demônios como lutas, e, mais exatamente, como tomada dos espólios após a vitória sobre o homem forte, em que tal vez tenha servido de pano de fundo Is 53.12 ("e fará dos poderosos os seus despojos"). Em Lc 13.16 emprega a figura do romper as cadeias das vítimas de Satã, a fim de descrever a cura.
   Essas vitórias sobre o poder do mal não são apenas irrupções isoladas no reino de Satã. Significam mais. São manifestações da aurora do tempo salvífico e do começo da aniquilação de Satã (cf. Mc 1.24: apolesai [destruir - grego]). É o que afirma Lc 11.20: eidé en daktülô (Mt 12.28: pneumati) Téou ekbanlô tá daimonia, ara ephtasen eph hümas he basiléia tou Teou [se com o dedo (Mt 12.28: espírito) de Deus expulso demônios, então veio sobre vós o reinado de Deus]. Cada expulsão de um espírito mau operada por Jesus significa uma antecipação da hora em que Satã será visivelmente dominado. As vitórias sobre os seus instrumentos são prolepses [antecipações] do éschaton.
   Jesus afirma o mesmo das expulsões de demônios que os discípulos realizam por sua ordem. Ele os envia para anunciar o reino e lhe [sic] dá poder sobre as potestades do mal (Mc 3.14s.). A plenipotência sobre os espíritos retona sempre nos ditos de envio e até mesmo é característica deles (Mc 6.7 par.; Mt 10.8; Lc 10.19s, cf. Mc 6.13 par.; Mt 7.22; Lc 10.17). Trata-se de tradição antiga, pois a incumbência do envio dos missionários das origens cristãs soava diferente: tinha um teor cristológico,. A razão pela qual Jesus atribui tanta importância às expulsões de demônios pelos seus enviados evidencia-se no grito de júbilo com que ele responde à notícia dos discípulos que retornam e contam que à sua palavra os espíritos bateram em retirada: 'Eteoroun ton satanan os astrapen ek tou ouranou pesonta (Lc 10.18). Visto que nesta passagem 'piptein', como um quase-passivo semítico, deve ser traduzido como "ser expulso", então o dito significa: "Vi Satanás ser expulso do céu e cair commo um raio sobre a terra". A expulsão de Satanás do mundo celeste pressupõe uma luta prévia no céu, como a descrita em Ap 12.7-9. O grito visionário de júbilo de Jesus ultrapassa o intervalo de tempo antes da reviravolta final e vê nas expulsões de demônios pelos discípulos o início da aniquilação de Satã. Isso já está acontecendo: os espíritos maus estão impotentes, Satã está sendo aniquilado (Lc 10.18), abre-se o paraíso (v.19). os nomes dos eleitos constam no livro da vida (v. 20).
   Não se acha afirmação análoga ao judaísmo daquele tempo. Nem a sinagoga nem Qumran conhecem uma vitória sobre Satã que já esteja acontecendo no presente; Com certeza, tudo isso é dito de modo paradoxal e só é visível àquele que crê. Satã ainda exerce o seu poder. Por isso as erga [obras - grego] não oferecem nenhuma legitimação; podem até mesmo ser entendidas como obras de Satã (Mc 3.22). Mas onde os homens acreditam em Jesus, soa o grito de júbilo que perpassa todo o Novo Testamento: o poder de Satã foi quebrado! "Satana maior Cristus" [Cristo é maior do que Satanás - latim] (Lutero).

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Joachim Jeremias - Teologia do Novo Testamento. ed. Hagnos. p. 157-159.

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