sexta-feira, 28 de junho de 2019

Calvino, Agostinho e a Iluminação Temporária, Ou a Fé Evanescente


   Há tempos atrás, na controvérsia entre o Yago Martins e o Olavo de Carvalho - controvérsia na qual o Bernardo Küster tomou parte, como aquele homem número zero que estava representando a onipotência do Olavo de Carvalho contra o Yago, aquele homem que era, podemos dizer, o mesmo que mil teólogos -, B. Küster colocou em pauta aquilo que declarou ser um absurdo teológico de Calvino, ou seja, a estranha ideia da iluminação temporária, ou fé evanescente.

   Contudo, estranhamente a ideia não é nova no cristianismo, tendo lastro na tradição e, mais especificamente, em Santo Agostinho. Pego aqui como exemplo a interpretação alegórica que Agostinho faz do Salmo 3, quando compara Absalão, de quem o rei Davi fugia quando escreveu o Salmo, a Judas Iscariotes, aquele que traiu o Senhor.
   Essas são as palavras de Agostinho:
   "'Salmo de Davi, quando fugia de seu filho Absalão'. A loução: 'Adormeci, caí em sono profundo. Despertei porque o Senhor me me acolherá' persuade-nos a aplicar este salmo à pessoa de Cristo. De modo mais adequado se refere à paixão e ressurreição do Senhor do que à história de Davi a fugir do filho, em guerra contra ele (2Sm 15,17). Estando escrito a respeito dos discípulos de Cristo 'os amigos do esposo não jejuam enquanto o esposo está com eles' (Mt 9.15), não é de admirar que esse filho desnaturado [Absalão] represente o discípulo impiedoso que o traiu. Embora seja possível o sentido histórico relativo à fuga de Cristo da presença do traidor, quando havendo Judas saído ele [Cristo] se apartou com os demais para o monte, no entanto, espiritualmente o Filho de Deus, isto é, a virtude e a sabedoria de Deus, abandonou o espírito de Judas e o diabo o invadiu totalmente, conforme está escrito: 'O diabo entrou em seu coração' (Jo 13.2). Com razão entende-se Cristo ter fugido dele. Não quer dizer que Cristo cedeu ao diabo, mas quando Cristo se afastou, o diabo se apossou de Judas. Penso que neste salmo deu afastamento se denomina fuga por causa da pressa com que se realizou. A palavra aparece na declaração do Senhor: "Fazei depressa o que tens de fazer" (Jo 13.27). Nós também costumamos dizer: Fugiu-me [sic], quando não nos lembramos de alguma coisa; e de um homem muito douto afirmamos: Nada lhe escapa. A verdade, por tanto, fugiu da mente de Judas, ao deixar de iluminá-lo." 1
   Esse trecho afirma muito mais do que se pode captar à primeira vista. Ao dizer, por exemplo, que a fuga não se trata de um fugir por parte de Cristo da face do diabo, mas um deliberado "retirar-se" do espírito do Judas, Agostinho ressalta, nesse contexto, a soberania de Deus. No fim do texto se afirma que: "A verdade, por tanto, fugiu da mente de Judas, ao deixar de iluminá-lo". Agostinho tem a complicada tarefa de conciliar a iluminação com a soberania de Deus ou a teologia da predestinação, e, ao que parece, ele ressalta que deliberadamente Cristo retirou-se do espírito de Judas, como nos afirma este trecho: "espiritualmente o Filho de Deus, isto é, a virtude e a sabedoria de Deus, abandonou o espírito de Judas", e como resultado dessa deliberação "o diabo o invadiu totalmente". E não é nenhum ilogismo concluir que, se Cristo se retirou de Judas, é óbvio que Cristo já esteve em Judas.
   Por tanto, ainda que não se faça aqui um juízo teológico de tal asserção, fica posto que a ideia da iluminação temporária, ou da fé evanescente, não é uma estranheza original ditada pela pena de Calvino, como nos faz acreditar B. Küster - e isso sem falar da interpretação de Calvino da parábola do semeador, onde no solo espinhoso a semente plantada parece que vigará, mas é afogada pelo espinheiro, tal como a fé temporária é apagada pelos cuidados da vida. Antes essa ideia pode até mesmo ser encontrada entre as especulações teológicas de um grande pai da Igreja como Agostinho de Hipona, .

1 AGOSTINHO DE HIPONA - Comentário aos Salmos - 1-50, vol. 1; ed. Paulus. p. 30.

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