quinta-feira, 27 de maio de 2021

Turretini e a Questão do Repúdio ao Culto às Imagens na História da Igreja

    XIV. Quarto, o culto às imagens era desconhecido na igreja cristã durante os primeiros quatro séculos. Isto transparece dos vários testemunhos dos pais que o impugnaram: Orígenes, Contra Celsum n3.40 e 7.70 (trad. H. Chadwick, 1965), pp. 155,156 e 384,385; Tertuliano, Apology 12 (FC 10:41-42) e De Idolatria (org. J. H. Waszink e J. C. M. van Winden, 1987); Clemente de Alexandria, Exhortation to the Heathen (ANF 2:171-206); Lactâncio, Divine Institutes 2.1 (FC 49:94­ 97); Epifânio (cf. Jerônimo, Letter 51, "Epiphanius to John of Jerusalem” [NPNF2, 6:89]); Jerônimo, Letter 57, “To Pammachius” (NPNF2, 6:112-119); Agostinho, Ennaratio in Psalnnim CXIII (PL 37.1483). (2) Do Concílio Elibertine (Concílio de Elvira), onde temos este decreto expresso: “Não devem existir quadros nas igrejas, nem qualquer objeto de culto ou adoração pintado nas paredes” (Cânone 36, cf. Mansi, 2:11). (3) Os pais constantemente acusam em termos fortes os pagãos do culto às imagens, e os gentios (respondendo à acusação cristã de que isso é uma desgraça) nunca apresentam o culto às imagens como praticado pelos cristãos, com o intuito de remover ou pelo menos mitigar o ódio à sua superstição em referência aos ídolos (o que indubitavelmente não teriam omitido, se algum costume desse gênero existisse então entre os cristãos). Eles não somente nunca fazem tal réplica, mas também os censura pela falta de altar e de imagens como a maior das impiedades. Para livrar-se de tal acusação, tão longe estão os cristãos de referir-se, no mais leve grau, a qualquer uso ou adoração de imagens entre eles, que, antes, empregavam várias razões para provar que é impossível ou ilícito e inútil fazer imagens da deidade. Os judeus, em suas disputas com os cristãos, nunca os acusaram de realizar culto às imagens (pelo qual eles tinham a maior ojeriza). Diferentes pais condenaram a arte pictórica, ou como absolutamente ilícita, ou vã e inútil. Destas e de razões semelhantes, deduz-se indisputavelmente que na igreja primitiva o culto às imagens não havia ainda prevalecido (o que o célebre Daille prova em sua maneira usualmente sólida em De Imaginibus 1,2 [ 1642], pp. 1 - 244). (4) Não poucos dentre os papistas confessam isto. Cassander: “E indubitável que no início do evangelho proclamado, durante um tempo considerável, entre os cristãos, especialmente nas igrejas, não havia nenhum uso de imagens” (“De Articularis Religionis ... consultatio”, Art. 21 [“De Imaginibus”] em Opera [1616], p. 974). E mais adiante: “Ora. quão fortemente opostos a toda veneração de imagens eram os antigos no início da igreja, só Orígenes declara” (ibid., p. 975). “Por fim”, diz ele, “admitiram-se quadros nas igrejas como que expressando a história de eventos ou retratando homens santos” (ibid., p. 974). Erasmo afirma: “Mesmo na época de Jerônimo havia homens de aprovada piedade que não introduziram imagens nos templos, nem pintadas, nem esculpidas, nem urdidas, nem mesmo de Cristo” (“Symbolum sive Catechismus”, em Opera [1704/1962], 5:1187). No mesmo lugar: “Pois nenhuma constituição, mesmo humana, ordenou que imagens figurassem nos templos; e, assim como é mais fácil, assim também é mais seguro remover todas as imagens dos templos” (ibid., p. 1188). Lilius Gyraldus: “Isso certamente não tolerarei, nós, digo, os cristãos, como outrora os romanos, vivíamos sem imagens na chamada igreja primitiva” (“Historiae deorum gentilium syntagma”,1 em Opera [1696], p. 15). Polydore Virgil testifica “que quase todos os pais antigos condenavam o culto às imagens em virtude de seu medo da idolatria, pois criam que nenhum crime poderia ser mais execrável” (De rerum inventoribus 6.12 [1671], pp. 417,418). Acrescenta a essas palavras o seguinte: "ele ensina que Moisés nada inculcava com mais veemência do que o povo não venerasse nada feito por mãos"; e que o profeta disse: “Que seja confundido quem adora imagens de escultura” (ibid., p. 418). O Index Expurgatorius (com a sanção do Concílio de Trento) ordenou que esta frase fosse apagada.

    XV. Não obstante, passados quatro séculos, quase no início do século 5º, Paulinus, bispo de Nola, c Severus (Sulpicius), bispo de Bituricensis, introduziram certos quadros históricos nas basílicas que erigiram. Isso não foi feito para que fossem imagens daquilo que é cultuado religiosamente, nem para que os próprios quadros fossem cultuados religiosamente; mas apenas para que fossem símbolos históricos e comemorativos, bem como ornamentos das basílicas, como é evidente à luz da Carta 13 de Paulinus a Severus (ACW 36:134-159). No entanto, visto que, gradativamente, mediante o uso de imagens, alguns introduziram o culto prestado a elas, sucedeu que no início do século 69 Serenus, bispo de Marselha, e Gregório 1, o Romano, decidiram combater essa superstição, ainda que de diferentes formas. O primeiro, removendo-as inteiramente; o segundo, contudo, retendo-as de fato, porém instruindo diligentemente o povo no sentido de que só eram úteis como lembranças e não para que de forma alguma fossem adoradas. Daí, escrevendo a Serenus, afirma: “Louvamos seu zelo cuidando que nenhum objeto manufaturado seja adorado, porém julgamos que você não deveria ter quebrado as próprias” (Gregório, o Grande, Letter 13, “To Serenus” [NPNF2, 13:53; PL 77.1128]). No entanto, visto que pela retenção das imagens seu culto voltou gradualmente, e a superstição se introduziu sorrateira e paulatinamente, isso prevaleceu tanto no oriente quanto no ocidente. Os imperadores elaboraram vários decretos concernentes à remoção das imagens: por Leão III, o Isauro, no ano 726; por Constantino VI Caballinus, chamado Copronymus; seu filho que (reunindo-se em Constantinopla 338 bispos do oriente, no Sétimo Concílio Ecumênico) tinha passado um decreto contra o culto às imagens no ano 754; por Christophorus e Nicephorus, imperadores, no ano 775; por Leão IV, no ano 780. Não obstante, embora Irene, esposa de Leão IV, governando sobre o oriente, diligenciou em restaurar, por meio de seu jovem filho, as imagens nas quais ela grandemente se aprazia, no Concílio geral de Nicéia, o qual sancionou seu culto em 787 contrariando o de Constantinopla, contudo houve muitos imperadores no oriente que não cessaram de se opor a ele - Nicephonis I e Stauratius em 810; Leão V, o Armênio, em 814; Miguel II, Balbus e Theophilus em 824,829,830,832; Miguel III, Porphyrogenitus, em 866. Ver Decreta Imperialia concernente ao culto às imagens.

    XVI. Mais especialmente no ocidente, porém, Carlos, o Grande, ficou tão indignado com o decreto do Segundo Concílio Niceno, que não só num tratado especial (bem recentemente reproduzido) intitulado Capitulare de Imaginibus (PL 98.989-1248) (que este é o verdadeiro e genuíno produto do autor, não importa o que Baronius e Belarmino aleguem em contrário, até o testemunho único de Hincmar, arcebispo de Rheims [cf. “Opuscula ct Hpistolae ... ad causam Hincmarii Laudunensis” PL 126.360; cf. PL 98.997,998], e a prolixa carta do papa Adriano [Epistola Adriani Papae ad beatum Carolum Regem De Imaginibus, PL 98.1247-1292] a Carlos, em resposta, sobejamente o demonstram), impugnou com muita erudição o culto às imagens contra o falso Sínodo de Nicéia, mas também reuniu um concílio em Frankfurt no ano 794 o qual condenou o Niceno e promulgou um decreto severo contra o culto às imagens. Que desde esse tempo os presidentes da igreja ocidental repudiaram constante e inteiramente toda veneração das imagens é tão evidente que Baronius e os editores da Biblioteca dos Pais (Patrum Bibliothecam) confessam (embora a contragosto) que os escritores mais eminentes daquela época sustentavam esta opinião, entre os quais estão Agobard, bispo de Lyons; Claudius de Turin; Jonas de Aurélia (Orleans) que de fato repreende Claudius por seu zelo imoderado em remover as imagens, porém concorda com ele em que de forma alguma deviam ser adoradas (De Cultu Imagimtm 1 [PL 106.305-342]; cf. Walafridus Strabo, De Ecclesiasticarum rerum exordiis et incrementis (PL 114.919-966). Isto foi mais fortemente confirmado no Sínodo de Paris por Luiz I (o Pio), filho de Carlos, reunido no ano 825, no qual o culto às imagens foi novamente condenado. Daí Pithou: “De fato, se desejarmos seriamente a verdade, nossos homens” [refere-se aos franceses] “muito recentemente começaram a afeiçoar-se às imagens” (“Praefatio”, Historia Miscellae a Paulo Aquilegiensi Diácono [1569], p. [16]). Não obstante, quantas e quão grandes comoções foram incitadas desde o século 8º acerca da produção e do culto às imagens entre os destruidores de imagens e os adoradores de imagens, tanto no oriente quanto no ocidente, e foram narradas pelos ilustres Plessaeus, em Mysterium iniquitatis seu historia papatus (1611), e Forbes, em Instructiones Historico-theologicae 7.12 (1645), pp. 563 [363]-356 [368]. O segundo, numa narração histórica concernente às imagens, mostra a constância dos franceses e dos alemães, mesmo naquela época, em rejeitar as imagens (cf. também Daille, De hnaginibus [ 1642].

    XVII. Antes do Concílio de Trento, muitos dentre os papistas censuraram a veneração das imagens e os notórios abusos oriundos de seu uso, como William Durand, bispo de Mimatum, John Billet (um teólogo parasiense), Gerson, Biel entre outros. Sim, enquanto o Concílio era estabelecido, Sebastian, eleitor de Mainz, reuniu um concílio provincial no qual foi decretado que as imagens deveriam ser postas nos templos, não para adoração ou para que lhes fosse prestado culto, mas somente para evocarem e fazerem lembrar aquelas coisas que devem ser adoradas (cf. Sarpi, Historie ofthe Council of Trent 3 [ 1620], p.296). Igualmente Catarina de Médici, rainha da França, no ano 1561 enviou uma carta a Pio IV, na qual entre outras coisas busca “que o uso de imagens proibido por Deus e condenado pelo santificado Gregório fosse removido imediatamente do lugar de adoração” (cf. Thuanus, Historiarum sui temporis 28 [1625], p. 563). No ano 1562, por seu mandado, Valcntinus e Sagiensis (bispos), Butillerius, Espensaeus e Picherellus foram escolhidos para se consultarem sobre o plano de travar união com os protestantes. Entre outras coisas, isto foi proposto: “que as representações da Santíssima Trindade fossem removidas dos templos, que as coroas e vestes não fossem postas nas imagens, votos e oferendas não lhes fossem feitos, e que não fossem levadas ao redor com súplicas; que o sinal da cruz não seja mais adorado”. Não obstante, desde aquele tempo (após a sanção do Concílio) o culto às imagens prevalece em toda parte na igreja romana. Contudo, sempre houve alguns (e ainda são muito á entre eles) que se envergonhavam de idolatria tão grosseira. Daí tantas distinções, pretextos e dissimulações são engendrados com o fim de disfarçar essa superstição e remover a ofensa de tão grande crime (argumentos com os quais nem eles mesmos conseguem satisfazer-se). Sim, Belarmino admite: “Se tratarmos da coisa em si, [admite-se] que as imagens podem ser adoradas impropriamente e por acidente com o mesmo tipo de culto com que o modelo é cultuado; mas, quanto à maneira de falar ao povo, não se deve dizer que alguma imagem deve ser adorada com latria” (“De Reliquiis et Imaginibus Sanctorum”, 22,23 em Opera [1857], 2. p. 500,501). Como se fosse errôneo dizer o que, não obstante, é correto fazer.

    XVIII. Quinto, as divergências dos papistas, e suas opiniões diversas e incertas (sim, inextricáveis) concernentes à adoração das imagens provam suficientemente a falsidade da doutrina. Enquanto alguns afirmam que as imagens devem receber o mesmo culto que o modelo (ou seja, as imagens de Deus, de Cristo e da cruz, o culto de latria; as imagens da bendita virgem, o de hiperdulia; e as dos santos, o de dulia - como Tomás de Aquino, com seus seguidores e muitos dos escolásticos), outros, contudo, designam um culto inferior ao do modelo (como Belarmino e outros); alguns opinam que devem ser adoradas propriamente e por si mesmas; outros, apenas por acidente, analógica e relativamente ao modelo. Portanto, visto que não há concordância nem mesmo entre os adoradores de imagens (quanto a se devem real e propriamente ser adoradas e com que tipo de culto), tal culto é falsamente prescrito ao povo, tendendo a introduzi-lo no mais iminente e constante perigo de idolatria. Pois quem há entre o povo (sim, mesmo entre as pessoas cultas) que entenda tais distinções ou possa corretamente aplicá-las quando entendidas, de modo que, por uma abstração mental, enquanto se curva diante da imagem, não lhe rende culto próprio, mas apenas um culto relativo e analógico, ou um culto apenas inferior ao seu protótipo? Quem, em contrapartida, não percebe que na prática as distinções teóricas engendradas pelos teólogos com o fim de escapar a tão terrível idolomania são confusas? De fato Belarmino não pôde ocultar isto e, falando da distinção entre “latria relativa e absoluta”, diz: “Aqueles que afirmam que as imagens devem ser adoradas com latria se vêem compelidos a usar as mais sutis distinções, as quais dificilmente eles mesmos entendem, muito menos o povo inculto” (ibid., 22, p. 500).1 ________________________________ [1] TURRETINI, Francis. Compêndio de Teologia Apologética. Ed. Cultura Cristã. São Paulo. 2011. p. 83-87.

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