quinta-feira, 20 de maio de 2021

Para Além da Questão Sexual; Ou: A Suécia e a "Igreja Trans"

    O recente caso da Igreja da Suécia levantou uma questão que deve ser ponderada para que seja possível uma resposta cristã à altura do desafio suscitado após a Igreja da Suécia abertamente ter se declarado uma "igreja trans". Muita gente aponta para alvos errados nessa questão que, no fundo, está muito para além do simples moralismo ou da questão da sexualidade, pois sempre que questões assim são levantadas há certa consideração a respeito da salvação, e como a igreja poderia incluir mais tipos de pessoas, ou mesmo que Deus é amor e que a igreja não pode condenar nenhum forma de amor etc. Todas essas questões implicam em julgamentos fundados mais em critérios que partem de juízos profundamente subjetivos etc. e em certa tendência que tende ver a igreja por um viés que tende a politizar todos os aspectos da vida, confundindo a questão da igreja com questões relacionadas a governos de tipo democrático etc., relação de clientela etc.

Em primeiro lugar é necessário indicar os limites da Igreja. A Igreja não é Deus e como tal não pode criar possibilidades de salvação a ninguém. Quem salva, ou melhor, quem causa a salvação é Deus, não a Igreja, sendo esta uma causa instrumental da salvação, tal como um pincel é causa instrumental de uma pintura em tela, não a causa eficiente desta pintura. Sendo assim não está na sua alçada criar possibilidades de salvação. A visão contrária a isso tem muito mais a ver com uma relação perturbada que volta e meia se desenvolve na igreja quando cristãos, ou não, veem a sua relação com a igreja como um cliente vê a sua relação com uma prestadora de serviços que está ali para oferecer produtos segundo as demandas subjetivas da clientela. O problema principal dessa visão perturbada está em que há uma nítida subversão que existe na entre o crente em Deus que está estruturada segundo as relação entre servo e Senhor. A Igreja é o lócus dessa relação entre Deus e o homem, e a Igreja só pode, nesse sentido, servir ao homem enquanto serve a Deus e à sua Palavra, não enquanto serve as disposições pessoas das pessoas, pois, entre outras coisas, são as disposições pessoais dos homens a causa dos problemas dos homem e não a solução.

Por outra, a questão da Igreja da Suécia não tem a ver simplesmente com sexualidade ou coisa do tipo, ainda que tangencie essa questão - e é oportuno lembrar que nem todo ato sexual heterossexual é aprovado pela igreja (nem mesmo entre casados). Também não tem a ver simplesmente com a questão de inclusão, levando em consideração também que toda inclusão implica em uma exclusão: a moral da igreja (radicada na Escritura) sempre defendeu um certo tipo de norma de conduta quanto à sexualidade, e a Escritura sempre prescreveu uma certa norma, o que significa dizer que incluir essa nova visão das coisas na igreja significa excluir toda uma outra forma de pensar da igreja e, por consequência, excluir todos aqueles que seguem o pensamento clássico da igreja quanto a essa questão. Avançar assim nessa matéria, ou subverter a teologia a norma da Palavra tal como registrada na Escritura Sagrada, é remontar Deus à nossa imagem e semelhança. No fundo, trata-se de feitiçaria, não de fé, já que é essencial a essa a disposição obediente diante das prescrições da Escritura, e violando a norma da Escritura a Igreja jamais poderá servir alguém.

Mas em tempo: isso não significa que os LGBTQ+ não devem ter acesso absoluto à vida da igreja, à assistência da Igreja ou ao amor da Igreja. O que se defende aqui é que tal relação deve ser mantida no mais absoluta e honesta ordem, onde não haja mútua traição e defraudação nessas relações, ou seja: onde a igreja a pretexto de serviço negue ser aquilo que é, e que gays ou LGBTQ+ também neguem ser o que não são. A Igreja, por isso, só poderá exercer o seu serviço enquanto for igreja, e quanto mais igreja for, mas serviço prestará. O que isso significa é que nesta relação não há qualquer transformação dialética por parte da igreja, pois a igreja não pode sair desta relação diferente do que ela é, ou seja, não pode deixar de ser igreja, pois não pode ser desmontada para que ela seja o que não é, sendo moldada segundo o gosto ou a questão suscitada no momento. A Igreja não possui nada que a determine de forma absoluta desde fora, e não está nem mesmo a mercê do desejo de quem a frequenta -, a Igreja serve à Palavra de Deus e a constituição desta é irreformável, pois é o princípio e a causa final de toda reforma possível. A Palavra (ou Logos divino) não é, em absoluto, determinada pela vontade ou pela necessidade nem mesmo dos que se declaram cristãos; Deus está acima da nossa vontade e é só por isso, por essa imutabilidade e invariação constitutivas da Palavra, é que somos salvos, pois esta salvação é estabelecida estritamente pela vontade de Deus e não contra esta vontade.

Mas isso não significa ausência de empatia ou mesmo simpatia, Todos nós temos, como qualquer trans, gay etc., nossos pathos pessoal, ou seja: necessidades, temores e ansiedades quanto às questões do presente ou quanto às questões do porvir. A nossa humanidade é, enquanto tal, o nosso fundamento comum, o nosso universal. Mas a questão de fundo ainda permanece: os temores, angústias e sofrimentos enquanto questões humanas não são fundamentos objetivos da fé, ainda que a fé a tudo isso responda. Isso é aqui pois do contrário a Igreja careceria de fundamentos objetivos e firmes, já que cada um de nós tem medos, anseios e carências distintas, e por vezes conflitantes entre si. A fé, ao contrário, só poderá fornecer uma resposta segura, se seguira ela for - e a segurança só pode ter a eternidade por fundamento. Fazer o contrário disso é cair em um subjetivismo enlouquecedor, fazendo de Deus, no fundo, os nossos anseios pessoais, os quais são contraditórios e conflitantes entre si. Nesse sentido a fé não poderia ser um ponto de chegada, ou seria um mal ponto de chegada já sua configuração seria a colisão de interesses e, no fim, o niilismo seria o Reino de Deus, abrindo caminho para a consideração de que a prescrição de conduta está no domínio do quem grita mais alto, ou de quem é brutalmente o mais forte entre nós. Muitos não percebem que ao defender coisas assim o único lugar para onde podemos está apontar é para o reino da tirania, assim como da arbitrariedade. A Palavra, ao contrário, estabelece um império de leis a que não está sujeita ao nosso arbítrio, estabelecendo regras claras, seja para o mais fraco, seja para o mais forte.

Ao abdicar da autoridade da Palavra a Igreja da Suécia só pode desembocar na arbitrariedade, na ausência clara de critérios de conduta, abrindo ao mundo não o Reino de Deus, mas sim pavimentando o caminho para a mais absoluta tirania, lá onde se cai não nas mãos de Deus, onde há infinitas misericórdias, mas nas mãos dos homens, os quais não estão capacitados conceder a misericórdia adequada e suficiente aos próprios homens.

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