sábado, 15 de maio de 2021

O Timeu de Platão, o "Mapas do Significado" de Jordan B. Peterson, e o Desespero do Finito e do Infinito em Kierkegaard

    Ao ler a obra "Mapas do Significado"1 do Jordan B. Peterson é impossível não fazer a associação entre a dinâmica psíquica proposta por ele com a cosmologia platônica proposta no Timeu1, e uma das razões é esta: Platão faz uma distinção3 entre a forma (eidos), a hylē (matéria) e a fusão dos dois que causa a realidade concreta das coisas. Platão associa o princípio formal como o primeiro princípio do ser das coisas, sendo a matéria o princípio da concreção que recebe a forma mediante a causação do primeiro princípio nesta ordem, originando assim os objetos que vemos no mundo, assim como o próprio mundo, que é a imagem (eikōna)4 de Deus e o Filho de Deus. Também é necessário levar em consideração que a estrutura do cosmos (kosmon), para Platão é um análogo da estrutura da alma, e assim o deus5 (dēmiurgos) estruturou todo o universo visível para que a partir da observação das revoluções invariáveis dos astros (ou as revoluções da inteligência celeste) pudéssemos observar as revoluções variáveis da nossa alma (ou revoluções da inteligência em nossa alma)6.

    No livro "Mapas do Significado" Peterson, recorrendo à estrutura dos mitos que, para ele, são categorias transcendentais pelas quais acessamos a verdadeira estrutura psíquica do homem (ele pertence à escola de Jung), assinala que existem três elementos psíquicos básicos associados à ordem, o caos e aquilo que transita do ser para o dever ser. A ordem é o Pai7, o caos é a Mãe8, e o Filho divino9 é aquele que une as duas realidades explorando e atualizando no mundo o reino das possibilidades. Mas mesmo para Peterson - e isso para alertar os sensíveis - tais nomes são apenas designativos de realidades associadas ao mundo dos valores fixos (dever-ser = Pai), da realidade fática grávida de todas as possibilidades, ainda que não articuladas (o ser = Mãe) e o processo de avanço e progresso daquilo que é real para o mundo do que é o melhor possível (vir-a-ser = filho).
    Todos esses elementos surgem da escola alemã que ao longo de 100 anos fez uma curiosa fusão de elementos platônicos e mitológicos (mesmo levado em consideração que a filosofia do mito já é razoavelmente desenvolvida Platão) - e para a surpresa de alguns, mesmo Kant, o filósofo dos valores fixos, é devedor de Platão, sendo, mesmo involuntariamente, o arquiteto da filosofia do mito (Schelling e Wagner) que forneceu a estrutura da psicologia jungiana da qual Peterson é caudatário.
    Sendo assim, podemos fazer a devida associação entre Peterson e Platão no seguinte sentido: para Platão a Forma mediante a persuasão imprime a sua realidade na matéria informe, criando uma realidade. Assim, nem é a forma fixa que por si só realiza a vida e nem mesmo a possibilidade informe (a potência aqui é associada à matéria) sem qualquer finalidade é quem pode fazê-la, pois o vir-a-ser depende da mútua e equilibrada interpenetração dessas realidades (potência e forma)10. Assim, o equilíbrio psíquico não é possível só no rigor da forma fixa (associada à tirania quando é unilateralizada), e nem mesmo é possível quando se perde nas possibilidades, criando uma instabilidade caótica sem finalidade alguma (associada à anarquia destituída de ordenação).
    É interessante que Kierkegaard no livro "O Desespero Humano" afirmou que o eu era uma síntese entre o finito e o infinito11, e podemos associar o finito à forma (bem no sentido da ideia de limite, não apenas no sentido de alguma coisa que nasce e se dissolve, o que corresponderia ao vir-a-ser e deixar-de-ser) e o infinito à possibilidade, sendo que a fratura dessa síntese criava certos desequilíbrios12, como o desesperos do finito, quando esse predomina em detrimento do aspecto do infinito, e o desespero do infinito, quanto este predomina em detrimento do aspecto do finito. O desespero do finito é a unilateralização psíquica em direção à forma fixa (necessidade)13, o que o antropólogo britânico Ernest Becker associou à depressão14; enquanto que o desespero do infinito era a unilateralização psíquica em direção obsessiva ao mundo das possibilidades (liberdade sem forma)15, afundando a mente no caos absoluto, o que Ernest Becker associou à esquizofrenia16. Assim a saúde está no mútuo equilíbrio entre necessidade e liberdade, e na justa operação entre potência e forma, ambas que na operação de uma justa unidade, segundo Peterson, gera "o Salvador" do homem e a sua saúde (salus) perfeita17. ___________________________________________ 1] PETERSON, Jordan B. Mapas do Significado: A Arquitetura da Crença. Ed. É Realizações 2018. 2] PLATÃO. Diálogos V. Timeu. Ed. Edipro 2010. p. 161-264.

3] Ibidem, 177, 178, 189ss, 200

4] Ibidem, 178, 179, 187, 188.

5] demiurgo.

6] Ibidem, 201.

7] PETERSON, Jordan B. Mapas do Significado: A Arquitetura da Crença. Ed. É Realizações 2018. p. 271ss.

8] Ibidem, p. 222ss.

9] Ibidem, p. 258ss.

10] PLATÃO. Diálogos V. Timeu. Ed. Edipro 2010. p. 205 11] KIEKEGAARD, Søren Aabye. O Desespero Humano. Ed. Unesp 2010. p. 25, 45 - Kierkegaard associa os termos finito e infinito aos termos απειρον e περαζ. Para ver mais sobre os reflexões pré-socráticas a respeito do apeiron (απειρον), ou o ilimitado, ou infinito, ver os fragmentos de Anaximandro e Anaxágoras (Pré-Socráticos. ed. Abril 2000).

12] Ibidem, 27

13] Ibidem, 49-52; 55-60

14] BECKER, Ernest. A Negação da Morte: Uma Abordagem Psicológica da Finitude Humana. E. Record 2015. p. 105-108.
15] KIEKEGAARD, Søren Aabye. O Desespero Humano. Ed. Unesp 2010. p. 46-49; 52-55

16] BECKER, Ernest. A Negação da Morte: Uma Abordagem Psicológica da Finitude Humana. E. Record 2015. p. 103, 105.

17] PETERSON, Jordan B. Mapas do Significado: A Arquitetura da Crença. Ed. É Realizações 2018. p. 261.

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