terça-feira, 17 de novembro de 2015

Estado Laico


         Existem alguns pensamentos que só são possíveis na abstração, mas que jamais podem ser concretos no mundo real. Uma destas ideias esta na compreensão equivocada de Estado Laico. Em sua origem a ideia de laicidade só quer dizer uma coisa: Estado Não-Confessional, jamais a-religioso. No entanto a própria ideia de Estado Não-Confessional também é pura abstração, já que a sociedade ou suas tradições e moral, por terem também fundamentos na religião, formam um depósito que acaba por permear todas as Leis de Estado. Um exemplo claro disso é a ideia de casamento monogâmico, que só é o que é por causa do depósito moral e espiritual de nossa civilização cristã.

   A moral – ou os costumes -, que possui o seu fundamento preferencial na religião, é FUNDAMENTAL para a construção, por exemplo, da doutrina jurídica, já que esta não é totalmente criada à luz de uma racionalidade pura, mas sim por causa dos costumes, mesclados com uma justificação pautada na razão. Um exemplo disso é a ideia de maioridade. Ter dezoito anos não significa ter responsabilidade (e podemos concordar que uma lei que exige algo que pessoas não possuem, ou a lei determinar até que ponto alguma pessoa é imputável ou não, é algo não tão razoável), mas este limite precisa ser posto como um referencial através da autoridade em nome de uma ordem, o que torna a lei sensata e legítima à luz dos fatos e à luz da razão sadia.

   Aqui temos uma prática de concepção de leis que tanto pode ter a sua origem nos costumes assim como pode gera-los. Por tanto fazer com que a lei reivindique para si a pura racionalidade é loucura, já que ela funciona também quando fundada na autoridade, uma autoridade que sabemos ser razoável, ainda que tal razão jamais se aproxime do núcleo que justifica a própria existência da autoridade como algo legítimo e real. A questão filosófica aqui é profunda, já que o fato histórico da autoridade é a única coisa que justifica a própria autoridade, o que não pode fazer a razão, pois o que é a autoridade? Ela é palpável, possui corpo físico, chora, adoece? E se ela é algo imaterial, como ela é percebida por nossa mente como um ente – uma coisa? E se ela não é um ente (e não é mesmo, sendo a autoridade apenas simbolizada como tal pela imaginação, para que seja possível concebê-la), como é que ela possui um poder a ponto de subjugar um país inteiro?

   Uma resposta que é possível quando experimentamos a história e os fatos é que a autoridade está em pessoas, na cultura, na moral, na língua, família, pais, nas leis etc., mas jamais possui um corpo independente; sendo imaterial, não obstante, ela é plenamente necessária e reconhecível como necessária apenas por meio da consciência individual que capta a estrutura da realidade, compreendendo a necessidade da autoridade para a manutenção da sociedade tal como a conhecemos. É óbvio que compreender isto não é possível por via de um pensamento materialista – laicista, digamos -, mas é possível para o ser humano que se encontra no pleno gozo do seu espírito, ou quando ele pode testemunhar a realidade como algo que se dá, e que se justifica a si mesma neste dar-se e nesta presença, que é a presença de tudo aquilo que existe – a realidade é revelação constante e eterna, portanto. A realidade – e mesmo gradação inferior da realidade que é a realidade material – possui um fundamento não fundamentado do qual não podemos nos desfazer – o que é impossível – sem o prejuízo do tudo ser reduzido ao nada.

   Aqui vemos o quanto a razão não pode justificar algo tão necessário como a autoridade, já que não pode justificar, por exemplo, um Fundamento Eterno. Por tanto a via da abstração pura – aquela que busca justificar a autoridade por meio da racionalização -, é impossível, já que esta, quando divorciada do Ser (aquele Fundamento não Fundamentado) é, em seus fins, inteiramente niilista. A autoridade, para ser o que é, necessita de um Fundo-Não-Fundamentado, que ainda que não seja justificável racionalmente pode ser testemunhável como algo absolutamente necessário para as nossas vidas. A Ideia do Fundamento-Não-Fundamentado, se raciocinado profundamente pode levar tanto ao niilismo ou à contemplação deste Fundamento; e é aqui nós esbarramos na intuição suprema da religião: o Ser, ou Fundamento não Fundamentado.

   A intuição suprema da Religião é a Ideia de Eternidade, do poder que traspassa a tudo e que a tudo justifica e que a tudo depõe, podendo dar sustentação ou não às coisas. A intuição individual/histórica do Fundamento da Religião é algo que confere um sentido absoluto à vida individual concreta, que é passageira e perecível no âmbito material. O sentimento religioso leva o homem à contemplação de um mistério insondável que é intuído na Ordem de todas as coisas, e que leva o homem a refletir em sua finitude, frente ao Eterno que permanece. Não é por acaso que a Bíblia comece na mitologia de Gênesis com a criação e ordenação de tudo aquilo que existe. É tal ordem, no campo do real, que funda a ordenação da alma individual, assim como convence o homem de sua finitude, o que o leva à contemplação da infinitude que é a Base-Eterna-de-Tudo e a Ordem Suprema de todas as coisas. O senso religioso, por isso, antecede qualquer civilização, pois se a civilização pretende organizar a alma humana é necessário compreender que homens de alma organizada é que fundaram civilizações, leis etc. Em tal “a priori místico”, ou seja, na percepção e contemplação da antecedência da Ordem – a partir de onde podemos organizar nossas vidas – é onde se encontra a fundamentação da moral, cultura, costumes etc.

   Mas como isso é necessário? Bem, deve ter ficado claro que se na esfera do racionalismo puro a razão e a autoridade não podem ser justificados, a moral, a cultura, a autoridade dos pais sobre os filhos, a autoridade do Estado, do Partido, das associações, dos homens ou do homem, também não podem. Mas com isso nem a própria realidade pode existir, já que a sua dinâmica é constituída de hierarquias. Assim – e caminhei par chegar justamente aqui – nem mesmo o Estado Laico pode ter uma autoridade legítima por si mesmo, pois seria necessário a investigação e justificação dos seus fundamentos – que, obviamente, só podem subsistir mediante uma autoridade absoluta a fundamenta-los. Compreender o contrário, afirmando que o Estado Laico possui uma justificação auto-evidente, sendo ele mesmo a base de sua própria autoridade, seria o mesmo que divinizá-lo – ou torná-lo Deus -, já que no pleno poder de exercer autoridade sobre tudo, arbitrar sobre tudo, sendo o padrão de julgamento até do bem o do mal. E é aqui que está o germe dos Estados Totalitários do século XX – o Nazismo e, principalmente, o Comunismo. A filosofia da divinização do Estado é, em todos os sentidos, a filosofia do Anti-Cristo, já que aqui prevalece a absolutização e divinização da vontade arbitrária do homem, sem uma autoridade superior a julga-la. 

   É aqui que a religião está um degrau acima da filosofia e das ciências: ela reconhece a existência do Fundamento sem o qual as ciências e a Filosofia nada são. Mas vamos à estrutura mitológica de uma religião verdadeira, pois o seu Fundamento, o infinito se manifesta no finito de maneira definitiva nos milagres. Tais milagres, na religião, em sua essência, antecedem a moral, as virtudes individuais, a razão e tudo o que é existente, conferindo, não obstante, um fundamento e sentido sem os quais nada destas coisas são o que são. E por que isso? No Novo Testamento vemos que a prova da ressurreição de Jesus e da veracidade das suas palavras estavam não em um argumento doutrinário ou racional, mas sim na distribuição liberal dos milagres, ou nas várias manifestações do Espírito Santo, sendo estes as testemunhas supremas da Ressurreição (Hebreus 2:2-4), os quais poderiam ser reconhecidos objetivamente unicamente através da consciência individual. Vemos aqui, por tanto, aquela eterna lei filosófica que afirma que a ordem do Ser (a própria realidade) é anterior à ordem do conhecer; e a ordem do conhecer (da razão e dos seus produtos) é posterior à ordem do Ser - já que se pensássemos a realidade sem vivenciarmos ela estaríamos, na verdade, fantasiando a mesma. Deus, em Cristo, testemunhou a si mesmo revelando o seu Ser, seu Poder e aquilo que Ele é, antes de haver uma doutrina formal sobre o cristianismo. A Palavra (O Cristo Eterno), por exemplo, é anterior às Palavras (a Bíblia). Esta é a ordem da realidade e a estrutura da Religião.

   Por tanto a ideia de legitimidade no campo da política ou dos costumes é fundamentalmente complicada, e mesmo a proposta de um Estado Laico é apenas um arranjo que busca estabelecer regras de convívio, mas este jamais pode ser considerado uma fonte da verdade. Um Estado pode ser Laico, mas seu fundamento é o povo – o poder constituinte -, que, por sua vez, possui uma moral, sem a qual o próprio Estado é impossível. Mais precisamente, o fundamento do Estado é o Homem, o Homem repleto de moral, de razões, de sentidos. A Religião ou a Igreja são matrizes fundamentais de moral (costumes) e de sentido; e ambos em suas estruturas penetram em uma realidade superior à esfera do Estado – vão além da esfera da razão e penetram na esfera do Ser. O Estado vive por causa da moral (que o sustenta), mas é a Religião quem justifica a moral, como procurei demonstrar. Aqui vemos uma fonte do Estado, já que este não pode ser separado do homem, dos seus costumes, de seu sentido sem a destruição do próprio homem. Também não se pode separar homens do Estado, pois isso o aniquilaria.

   Foi a própria civilização cristã que, permeada de seu senso de justiça e da concepção de não destruir aquele que não partilha de sua forma de compreender Deus, que possibilitou a criação do Estado Laico. Portanto existe, na própria razão de existência do Estado Laico, um sentimento cristão que compreende que salvar vidas é preferível a matá-las (Lucas 9:56). Por tanto, deixar o Estado Laico viver por si só seria levá-lo à auto-destruição, pois nem separado de sua origem (que é cristã) ele consegue se justificar, e nem de si mesmo pode viver.

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